Por Gonçalo Duarte Gomes Imagine-se um carro, que circula numa estrada em excesso de velocidade. Quem deve ser multado? O aspirante a Fittipaldi que conduz o veículo e o leva a circular àquela velocidade, ou o próprio veículo? Por surreal que possa parecer a pergunta, a verdade é que, no caso do apuramento das causas do incêndio de Monchique, a discussão tem-se aproximado destes termos... No enunciado anterior, troque-se o carro pela exploração de eucaliptos, e o condutor pelos produtores florestais, que optam por esta espécie, em detrimento de outras, e está configurada uma das discussões nacionais favoritas no que a fogos diz respeito.
Sendo que a multa está a cair maioritariamente sobre, justamente, o automóvel. A questão que se coloca a seguir é então: multar o automóvel, vai prevenir a repetição do excesso de velocidade? Dificilmente. Sendo certo que partilho da ideia de que o eucalipto é uma das espécies menos interessantes em termos de contributo para um modelo territorial dinâmico e coeso, temos que perceber o seu contexto. Em concreto, o facto de ser uma das espécies florestais com maior e mais rápida viabilidade económica, graças ao seu rápido crescimento e precoce aproveitamento, especificamente para a fileira do papel. Para além disso, não é uma espécie que careça de grandes cuidados ou operações de manutenção para vingar. E são essas, ninguém duvide, as suas características mais atractivas. As que levam a que o eucalipto registe uma tendência constante de aumento de área desde há pelo menos 20 anos, ao ponto de se assumir como matriz florestal de Portugal, dominando com 26% da área total de espécies florestais (ligeiramente acima dos 23%, ex aequo, do sobreiro e do pinheiro-bravo – dados do 6º Inventário Florestal Nacional, realizado pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P.). Em Monchique representava, antes deste incêndio, pouco mais de 40% dos cerca de 40.000 ha de área total do concelho (e 70% da área florestal). Isto contra cerca de 20% de área concelhia ocupada por sobreiral e outras folhosas, como castanheiros. Mas, se dadas as características e o aproveitamento económico do eucalipto é fácil perceber o porquê de ser escolhida, resta saber o como. É que, e simplificando bastante a coisa, não potencia grandes subprodutos nem dá quotidianamente muito que fazer a muita gente. Nesse caso, por que razão haveria o concelho de Monchique, ou qualquer outro, entregar-se a esse modelo económico, ainda para mais sabendo-se que a propriedade privada da terra se divide em áreas que, em média, não excedem os 2 ha? Como pôde tanta gente entregar a sua terra a um modelo tendencialmente absentista e monofuncional? De forma a procurar alguns indicadores, recorri a dados referentes a estatísticas agrícolas e arrolamentos de gado ao longo do século XX, compilados e publicamente disponibilizados por Henrique Pereira dos Santos na sequência da sua tese de doutoramento em Arquitectura Paisagista e Ecologia Urbana, intitulada “Evolução da paisagem rural do continente português no século XX” (parcialmente adaptada num pequeno livro, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, sob o título “Portugal: Paisagem Rural”, cuja leitura se recomenda pelo desafio reflectivo que encerra). Analisando a informação para o concelho de Monchique, verifica-se que entre 1960 e 1999, há uma redução muitíssimo significativa de áreas ocupadas por culturas associadas à alimentação das populações, como olival, leguminosas (ocupando a fava papel de destaque), grão, feijão, milho, centeio e trigo – partindo do pressuposto relativamente seguro de que Monchique não foi nunca ponto de produção comercial ou de exportação. No caso do grão, centeio e trigo, a redução foi mesmo de 100%. Só a batata se mantém neste intervalo, sem alterações significativas. Também em termos de gado, houve redução do número de cabeças (vacum em mais de 50% e ovino em cerca de 34%), mantendo-se o caprino inalterado e tendo o suíno conhecido um aumento de 3.740 cabeças para 27.522 (!). Em período homólogo (1960-2001), e de acordo com os censos populacionais, Monchique perdeu 53% dos seus habitantes, passando de 14.779 almas para 6.974. É também a partir da década de 60 do Século XX que se localiza o início do desenvolvimento da exploração de eucalipto na Serra de Monchique. Perante este conjunto de dados (que naturalmente tem aqui um hiato carente de actualização, mas cujas tendências não se prevêem entretanto alteradas, sendo que em termos de população sabemos até que se agravaram), e correndo o risco de uma interpretação errónea dos mesmos, parecem reunidas as condições para a sacramental pergunta: quem surgiu primeiro? O abandono rural em Monchique ou a presença do eucalipto? Parece-me que a análise das causas e efeitos do abandono rural é a discussão fundamental na questão dos fogos, mais ainda do que uma qualquer espécie, por muito estuporada que possa ser. Porque é uma matriz paisagística de abandono e desumanização aquela que se expande pelo Algarve e pelo País rural, originando as condições propícias à propagação dos fogos, independentemente da génese da ignição. É esse processo de desmantelamento e colapso das estruturas sociais e ecológicas (indissociáveis umas das outras) que mantinham viva e vivida a paisagem, que criou a necessidade de implementar modelos de rentabilização que não dependessem da presença de gente. Num cenário de proprietários de terras muitas vezes idosos e ainda mais vezes ausentes, o eucalipto surgiu em Monchique como a melhor solução para um problema para o qual mais ninguém apresentava resposta: a rentabilidade da terra. Porque a terra, para lá da sua poética telúrica e do seu papel ecológico, acarreta também uma componente económico-financeira e pragmática, com o pagamento de IMI dos prédios rústicos ou a ameaça de coimas por falta de limpeza (que tem custos), já para não falar da expectativa de lucros por parte de quem dela vive ou quer viver. E aí, eucaliptos, pinheiros ou qualquer outra promessa de lucro rápido e fácil vai soar a música. Em Monchique, a melodia parece ter gerado um entusiasmo tal, que as densidades de exploração foram levadas ao limite e para lá dele, a par de uma deficiente gestão de combustível no sub-coberto. Esta perigosa combinação de ganância, irresponsabilidade e ignorância só podia resultar no que resultou. Como foi possível, ainda para mais face ao dramático histórico de fogos, responda quem souber e conseguir... É que, em matéria de incêndios, mais determinante do que a espécie de árvore tende a ser a densidade da sua exploração e o material vegetal (combustível) que existe no sub-coberto. Nesse capítulo importa notar, e de acordo com dados do Instituto Superior de Agronomia, que o eucalipto tem características de combustibilidade (facilidade de ignição e dificuldade de extinção do fogo) inferiores à do pinheiro-bravo, e contribui menos do que este para a severidade dos incêndios. Parece-me que só depois de resolvidas as questões estruturais e de modelo podemos partir, com certezas de eficácia, para a discussão de tudo o resto. Da abordagem em termos de combate operacional a incêndios ao sentido ou dimensão de Estado deste Governo no tratamento dos fogos, ou à forma descontraída como a classe política no seu todo nos serve sorridentes e fotogénicos atestados de estupidez e menoridade. Neste particular, uma nota para a ausência de vítimas mortais como sinal de sucesso: é apenas sinal do normal cumprimento da mais primordial obrigação do Estado. Zelar pelas nossas vidas e pelo nosso bem-estar não é um favor que qualquer partido que ocupe o poder executivo nos faz. É só o nosso mais básico direito. Quando isto falha, aí sim, podemos falar de excepções. 114 excepções, por exemplo, materializadas nos cadáveres que os incêndios do ano passado deixaram. 27.000 ha ardidos, dezenas de feridos, chamas às portas de cidades, um Concelho destruído pela metade, outros dois afectados, milhões de euros em prejuízos materiais e incontáveis outros em prejuízos ambientais, não serão nunca um “sucesso”, nem “excepção” que confirma uma regra. A não ser a regra da morte da paisagem e do esvaziamento do País, que se agrava de ano para ano. É nessa que temos que colectivamente pensar. Mas apenas se tivermos a intenção e determinação de fazer algo quanto a isso. De outra forma, é deixar arder. Até não sobrar nada.
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