Por Gonçalo Duarte Gomes Minha aldeia, voltei! Avé-Marias… Evocou-se em mim este poema de Bernardo Passos, intitulado “Regresso”, a propósito da notícia, fresquinha, de que quatro aldeias algarvias – Alte, Cachopo, Paderne e Parises, respectivamente dos concelhos de Loulé, Tavira, Albufeira e São Brás de Alportel – se vão preparar para integrar uma candidatura ao selo “Aldeias de Portugal”, uma rede nacional “de aldeias autênticas e genuínas”. Não beliscando a bondade de qualquer iniciativa que pretenda dinamizar áreas de interior –mais ainda estando a sua dinamização por cá nas mãos da Associação In Loco, que tem provas dadas – há aspectos nestes programas que merecem alguma cautela. É destacado o enfoque que o título “Aldeias de Portugal” tem no potencial turístico de aldeias “autênticas e genuínas”, tendo por objectivo “preservar, valorizar e dar a conhecer a essência da vida nas aldeias”, através da consolidação dos “valores culturais” em que assenta a sua identidade e do incentivo à “partilha do estilo de vida dessas aldeias e dos seus habitantes, oferecendo aos visitantes uma experiência única de convivialidade e contacto com um Portugal autêntico”.
As quatro aldeias seleccionadas possuem claríssimas diferenças entre si, quer estruturais, quer funcionais. No entanto, partilham entre si – com excepção de Paderne – um padrão de desumanização e abandono. Olhando para os dados dos censos populacionais à escala da freguesia, entre 1981 e 2011, Cachopo e Alte perderam, respectivamente, 63% e 51% da sua população. Em sentido contrário, em igual período Paderne aumentou a população em 13%. No caso da aldeia de Parises – a mais bonita de todas elas, digo desde já com confesso enviesamento – é mais difícil obter dados, já que o concelho de São Brás de Alportel possui uma única freguesia. No entanto, se considerarmos que nos dois terços da área desse concelho que são cobertos pela serra, correspondendo a cerca de 10.122 hectares, dificilmente se encontra 5% da população do mesmo, ou seja, nem 530 pessoas, dá para ter uma ideia do que por lá se possa estar a passar. Se a isto juntarmos o padrão de regressão nas actividades tradicionais destas zonas rurais, nomeadamente na agricultura, pastorícia e silvicultura “tradicional” (termo arriscado, eu sei), falamos exactamente de quê, quando nos propomos preservar, consolidar, vivenciar e partilhar estilos de vida? O próprio conceito das aldeias se proporem trabalhar para ser genuínas e autênticas é potencialmente problemático, pois faz imediatamente soar o alerta da folclorização, seja ela ao nível da arquitectura, dos hábitos, dos trajes, dos dizeres, entre muitas outras coisas. É que genuinidade e autenticidade construídas para uma candidatura… são artifícios. E parques temáticos já temos muitos. Acresce que nestas coisas do turismo como fio condutor, é sabido – no Algarve de forma traumática – que a obsessão pela criação de “produtos” é meio caminho andado para esvaziar a essência das zonas bafejadas por tal milagre, deixando bonecos ocos que, em tempos como o presente, nem para miolo de enxergão servem e que o tempo apaga sem marca positiva deixada, de resto como outros programas no passado. Dir-se-á, até pelo cenário demográfico já invocado, que pouco há para estragar, nesse capítulo. E poderá até bem ser verdade, mas só se pede particular cuidado com isso. Outra questão prende-se com o pensar as aldeias sem pensar as paisagens em que se inserem. Estando nós num contexto de vocação mediterrânica, a aldeia não existe sem a paisagem envolvente – de onde retira o sustento – da mesma forma que a paisagem depende em muitos aspectos das dinâmicas da aldeia, seja para organização e manutenção de estruturas ancestrais, seja para animação de vários processos. Há portanto uma dimensão telúrica e de profundidade paisagística que não pode ser esquecida. Num programa como este, que pretende “estimular o surgimento de oportunidades locais de negócio através da valorização, promoção e comercialização de produtos locais, eventos tradicionais e serviços turísticos baseados nas experiências vividas”, como se processará este regresso ao campo, à aldeia, com turismo (lazer) a puxar por produção (labor)? Para onde se escoarão os produtos? Que camponeses híbridos daqui resultarão? i-agricultores, farm-villagers, de enxadas touch-screen? Poderemos ainda ser aquela “gente do campo”, simples e sem grande inquietação aparente, ao ritmo das estações, que “dorme e sorri [como] um passarinho, sob a asa da mãe agasalhado”? É que a sociedade da informação, nas suas diversas expressões, desassossegou-nos o espírito, e as alterações climáticas baralharam-nos as Primaveras e Outonos. Ou os novos rurais “apenas” entregam chaves, mudam camas e informam sobre passwords de wifi? Como (re)ruralizar? As paisagens resultantes da interacção da cultura contemporânea com um ecossistema em desequilíbrio e readaptação servirão este propósito? Já agora, esta coisa do próprio conceito de “interioridade”, que no Algarve surge de forma cada vez mais vincada e inaceitável, por força das crescentes assimetrias regionais, comandadas pela maior ou menor proximidade do buliçoso litoral, tem muito que se lhe diga. Nesta nossa fímbria de terra, isto equivale a dizer que numa ridícula distância que oscila entre os 30 a 50 km na direcção latitudinal, a região se cliva por completo, passando da massificação para o despovoamento. Se pensarmos esta distância na unidade pela qual contemporaneamente a medimos, e que é o tempo, no intervalo de no máximo uma hora – mais coisa menos coisa – de caminho, o Algarve eclipsa-se. A par de rejuvenescidas aldeias, e em seu auxílio, talvez a ideia de uma verdadeira coesão territorial no Algarve não fosse mal pensada… Bernardo de Passos era um poeta romântico, em que saudade e passado são temas constantes. E o romantismo é muito importante, na medida em que aporta a componente sentimental que é fundamental que esteja presente em tudo o que seja humano. Mas não pode estar só. O delicado desafio que se coloca perante estas quatro aldeias, a equipa que vai gerir e acompanhar o processo e todas as comunidades e agentes envolvidos será o de descobrir as melhores respostas possíveis para estas, e muitas outras questões que seguramente surgirão, com o necessário compromisso entre esse romantismo bucólico e o necessário pragmatismo, fugindo ao pastiche e a uma interpretação urbana do rural. Que o consigam, aqui se deixando votos de sucesso!
6 Comments
Filipe Monteiro
7/8/2020 18:40:14
Parabéns Gonçalo pela informação e pelo texto que não poderia ser mais claro.
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7/8/2020 20:28:16
Caro Gonçalo, obrigado pela preocupação com as Aldeias, as suas comunidades e a paisagem onde se integram. Partilhamos das tuas cautelas e receios, não fossem os nossos trinta e dois anos de experiência de animação territorial e de trabalho de intervenção direta neste território e o facto do conceito subjacente às Aldeias de Portugal estar testado e aperfeiçoado com muito sucesso, por outras associações de Desenvolvimento Local no Norte e Centro, o que nos dá confiança e segurança para os desafios da adaptação e implementação desta estratégia no centro do Algarve, em estreita parceria com todas as pessoas e organizações, públicas e privadas, de cada uma destas Aldeias. Estamos certos de que também aqui será um sucesso e que irá inspirar muitas outras Aldeias. Estás desde já convidado para acompanhar e colaborar nesta iniciativa! Toda a ajuda e colaboração será bem-vinda. De ti e de de quem mais se quiser juntar a esta iniciativa que pretende contribuir para a necessária e urgente revitalização cultural e económica das Aldeias de Portugal, um património esquecido mas fundamental para o equilíbrio e a sustentabilidade nacional. Obrigado pela disponibilidade e interesse.
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Gonçalo Duarte Gomes
21/8/2020 10:39:24
Artur, conforme destaquei no texto, são esses vossos pergaminhos que aqui alimentam a esperança de que este programa marque uma diferença positiva relativamente a outros anteriores.
Gonçalo Duarte Gomes
21/8/2020 10:38:55
Muito obrigado, Filipe.
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Miguel
8/8/2020 18:03:47
Uma iniciativa que, pelos seus objectivos, merece todos os aplausos, mas que gera sempre a inevitável desconfiança face à Realpolitik, com os receios que elucidou.
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Gonçalo Duarte Gomes
21/8/2020 10:37:59
Precisamente, Miguel. É que para manequim animado, estilo autómato em parque temático, pouca gente tem vocação...
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