Por Gonçalo Duarte Gomes Nos últimos dias vimo-nos mergulhados no universo da série cinematográfica Mad Max: um mundo distópico, pós-apocalíptico, em que as estruturas sociais colapsaram a par do modelo de consumo, e as fontes de energia, com o petróleo e seus derivados à cabeça, são disputados à facada e ao tiro. Neste cenário de selvajaria, as débeis estruturas de Governo reagem como podem e, quase instintivamente, protegem-se a si e aos seus interesses mais próximos, abandonando todo um vasto território à sua sorte. Um épico, portanto. No entanto, se a adaptação portuguesa a este universo foi, em geral, muito semelhante ao segundo filme da sequela, já a versão algarvia assemelhou-se muito ao primeiro: uma produção de baixo orçamento, que até gerou uma receita jeitosa, bem como um seguimento de culto, mas que olhada com mais atenção, está repleta de falhas. Tornar-se-á boa, de tão má que é? Nestes dias de secura automóvel, tivemos de tudo: pânico, alarmismo, corrida muitas vezes desnecessária aos postos de abastecimento, açambarcamento, desorientação generalizada, ganância desmedida e desavergonhada (gasosa a 1,80 € a litrosa é filantropia pura!), entre outros mimos. Ah, pessoas...
Em boa verdade, mais até do que combustíveis, escasseou presença de espírito. Sobre a greve ou sobre a justiça das reivindicações do Sindicato, ou ainda acerca das razões para a insatisfação dos trabalhadores do sector – umas e outras nem sempre coincidem – não sei dizer muito, principalmente por falta de informação suficientemente sólida para formar uma opinião fundamentada. Parecem-me infinitamente mais interessantes os efeitos que uma greve que envolve umas meras centenas de profissionais, consegue ter sobre a dinâmica de um País e, dentro deste, de uma região. E aqui a coisa divide-se em duas vertentes: uma política e outra operacional. Do ponto de vista político, nada de novo: Portugal é Lisboa, com uma extensão no Porto, e o resto é paisagem. Foi por isso que o Governo, ao decretar serviços mínimos, os entendeu estritamente como aqueles necessários para manter em funcionamento estas duas áreas metropolitanas. Ou isso, ou julga o restante País livre destas minudências do crude e seus vis derivados. Mas, e porque estamos na Quaresma, época marcada pela caridade, pela oração e pelo jejum, o Governo lá reagiu, a contragosto. E então, perante a míngua de combustíveis e as pungentes rezas daquela massa indistinta que só serve para pagar impostos, lá se encheu de pena e pensou em sacudir uns jerricans de pitroil para cima do restante Portugal, como quem asperge, magnânimo, hereges com água benta. No caso do Algarve, perante a desdita petrolífera, eriçou-se o pêlo de uma fera geralmente mansa, porque aqui d’el-Rei, agarra que é ladrão, que estamos cheios de turistas, e o nosso modelo económico espectacular é na verdade um gigante com pés de barro, susceptível a qualquer brisa. Não deixa de ser curioso verificar que o costumeiro alarde da intelligentsia da região nestes momentos, com a recordação do seu contributo para a economia nacional através do turismo, seja recebido por sucessivos Governos com reacções que nos levam a pensar que o Algarve é afinal aquela rapariga com que todos nós, em algum momento ou contexto, já nos cruzámos e, que embora engraçadinha, se acha muito mais bonita do que realmente é, acabando por cair em situações de confrangedor choque com a realidade... como este, em que tem que lhe ser delicadamente explicado que não é afinal a Barbie reencarnada. Ou então, o pelintra que tem um Aston Martin à porta da barraca, e anda sempre a cravar os outros para o conseguir atestar. É que seria de esperar que uma região tão rica, em pleno Séc. XXI, e após décadas de milagre turístico, já se tivesse dotado de estruturas e processos alternativos, em termos de transporte e de cadeias de abastecimento e distribuição, que mitigassem esta dependência do transporte rodoviário e dos combustíveis. Se não por iniciativa pública, então por iniciativa privada. Só que não, pois é precisamente no folheto turístico que se esgota a razão de ser da região. E os folhetos, já se sabe, enganam. Por isso o Algarve continua a ser apenas uma matéria-prima que se consome, e não um valor em que se invista. Usa-se e deita-se fora. E é nestes momentos que se desmontam dois mitos: que o Algarve é importante, e que o Algarve é uma região que produz riqueza. A menos que uma e outra estejam muito bem escondidas, já que o tecido empresarial, as oportunidades de trabalho, os níveis salariais, a tesouraria dos Municípios e o desenvolvimento e dinâmica global da região o desmentem. Mas gostamos mais de ser cigarra do que propriamente formiga. E por isso entregamo-nos ao acaso, que é o caso do modelo económico de monocultura, no caso turística. O que se repercute depois em tudo, desde a energia ao ordenamento do território e à paisagem que se (des)constrói, passando inevitavelmente, pela massa crítica da região. Muito concretamente, esta pequena crise limitou-se a sublinhar um problema antigo, e que nos leva à parte operacional: a debilidade e fragilidade da mobilidade no Algarve, assente exclusivamente no transporte rodoviário e individual. Mobilidade física, mas também social. Porque nos dias que correm, para o bem e para o mal, a agilidade e a velocidade marcam o ritmo, pelo que processos e localizações são altamente voláteis. Assim, o acesso a transportes públicos é também nevrálgico na criação de uma igualdade de condições de acesso às oportunidades de ingresso e progresso no mercado de trabalho. Mais ainda numa região que funciona com base em complementaridades (interurbanas, Barlavento/Sotavento, interior/litoral, aeroporto/tudo o resto), e em que o emprego escasseia, pelo que frequentemente é necessário procurá-lo fora da localidade ou até concelho de residência. Já para não falar de ganhos ambientais, que não quero ficar com fama de hippie. Ora esta é a região que repetidamente coloca entraves ao transporte público com base na diminuta procura, que gera uma ausência de escala capaz de sustentar o negócio. Esta é uma treta que se explica com recurso à minha amiga Rita. Há dias perguntava-me acerca de carreiras de autocarros entre S. Brás e Faro. De cabeça lá lhe dei uma estimativa, alertando que desde os tempos em que era utente diário (1996 a 1999) podia ter mudado alguma coisa. Mas fui confirmar no site da Eva, e lá encontrei o horário desse circuito. Que é, pasmem-se as almas, uma digitalização ranhosa do mesmíssimo modelo de horário de bolso que eu usava há mais de 20 anos, com as mesmíssimas carreiras! Se a montra é assim, imagine-se o armazém. Trajectos e horários que não mudam há décadas, dificilmente respondem às reais carências de transporte no Algarve. Não apenas às dos residentes, que já se sabem insignificantes no grande quadro das coisas, mas também às dos sacrossantos turistas, que passariam a poder recorrer a transportes públicos, algo que de resto estão habituados a encontrar em países ditos desenvolvidos, principalmente na Europa. Talvez aí se conciliasse oferta com procura. Porque, de outra forma, os passes de transportes até podem ser de borla, que não interessam a ninguém. Da mesma forma que terão interesse reduzido caso esta revolução não se passe também ao nível da articulação intermodal. Aí, e olhando para o capítulo da ferrovia, é ainda preciso que se olhe para as infra-estruturas e material circulante, onde a reformulação da Linha do Algarve – que leva um ligeiríssimo atraso – já é quase uma anedota. Esse sim, seria um desígnio regional a abraçar pela região a uma só voz, pois revolucionaria ordenamento territorial e urbanismo (a capital Faro, que se candidata a altos voos, devia perceber finalmente que há muitas cidades vibrantes e profundamente ligadas às suas frentes ribeirinhas, mesmo com linhas ferroviárias integradas), potenciaria novos sectores económicos. Caso contrário, ruas intercaladas com troços de estrada, que se esquivam por entre um tecido vítima de alguma da pior conurbação a que este País já assistiu, continuarão a ser o nosso fado, à sombra de uma Via do Infante reservada a extravagâncias e dias de festa. Com isto não se pense que no Algarve somos mal-agradecidos e não saibamos apreciar o privilégio de pagar impostos e contribuir para os sistemas de transportes públicos do resto do País e respectivos apoios a tarifas sociais, agradecendo o desprezo recebido em troca, até em alturas de crise, energética ou outra. É só que às vezes o braço cansa-se, de estar sempre estendido…
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