Por Gonçalo Duarte Gomes Corria o ano de 1940 quando Winston Churchill proferiu, na Câmara dos Comuns do Parlamento do Reino Unido, o épico discurso comummente designado We Shall Fight on the Beaches (Lutaremos nas praias). Nessa obra-prima da oratória, o então Primeiro-Ministro Britânico alertava para o perigo de uma invasão da Grã-Bretanha por parte da Alemanha nacional-socialista de Hitler, animando o povo para a eventual necessidade de uma resistência que, se necessário, se faria porta a porta de cada casa. Não sem antes passar pelas praias, naturalmente. Quase 80 anos depois, é nas praias algarvias que alguns vêem uma outra luta, encarniçada e fratricida, prestes a desencadear-se: a de classes! Não, não falamos da eterna luta entre os que têm chapéus-de-sol e os que apenas levam toalha para a praia. Não entramos também na discussão fracturante entre Bolas de Berlim com ou sem creme. Tão pouco se aborda a questão Kierkegaardiana em torno do bikini ou fato-de-banho, até porque o primeiro esmaga por completo o segundo, não havendo, em boa verdade, nada para sequer hesitar nessa questão. De acordo com notícia publicada no Sul Informação, o deputado à Assembleia da República pelo Partido Comunista Português eleito pelo Algarve, Paulo Sá, veio recentemente questionar a autorização para construção de moradias de luxo na Praia da Galé Oeste, em Albufeira, numa zona onde houve mesmo investimento público para preservação do ecossistema dunar. Não posso concordar mais. Mas depois espalhou-se ao comprido, estabelecendo um paralelo com a situação das construções ilegais nas Ilhas-Barreira da Ria Formosa. Declaração de interesses: discordo, por princípio mas sem prejuízo de casos pontuais – que dificilmente passarão por casos de habitação – o justificarem, da construção em cima de dunas, pois trata-se de um uso estático implantado sobre um sistema elástico, que no processo destrói valores naturais que prestam importantes serviços ecológicos de protecção e estabilização biofísica. Ou seja, é estarmos a pedir sarilhos, aumentando riscos (para os próprios que ali se implantam e para todos os outros que dependem da integridade do sistema que passa a estar em causa) e provocando uma clara degradação ambiental. No caso do deputado Paulo Sá, não consigo acreditar que assim seja. Isto porque, se agora se choca com construções aparentemente enquadradas a nível de titularidade (terrenos privados, desafectados do Domínio Público Marítimo [DPM] conforme previsto na lei) e de regulamentos (pelo menos no Plano de Ordenamento da Orla Costeira, restando saber se é, por exemplo, um uso compatível com a Reserva Ecológica Nacional que ali previsivelmente incide), ainda há poucos meses, participou da defesa intransigente e inflamada das ocupações ilegais do DPM nas ilhas-barreira da Ria Formosa… em pleno cordão dunar ou mesmo com os pezinhos dentro de água. Portanto, isto da protecção das dunas contra a construção de casas, depende das dunas, depende das casas e… depende da conta bancária do promotor. A selectividade do deputado Paulo Sá tem obviamente subjacente um condicionamento ideológico ou hierárquico, em que as veleidades territoriais aceitáveis aparentam evoluir na proporção da condição económica. Não me competindo a mim julgar crenças religiosas, sejam elas quais forem, preocupa-me, enquanto cidadão, constatar que as visões sectárias de um deputado ou de um partido (na circunstância Paulo Sá e o PCP, mas qualquer outro binómio serviria) se sobrepõem a questões como o Estado de Direito. É devido a esta forma de encarar a política que temos, por exemplo, uma ampla satisfação no Parlamento – até dá para o Primeiro-Ministro ir alegremente a banhos – quando há 64 cadáveres à espera de explicações em Pedrógão Grande: a facção está acima do País e das pessoas. Aos olhos da lei, todos os cidadãos usufruem dos mesmos direitos e estão obrigados aos mesmos deveres. O exercício do ordenamento do território diz justamente respeito à expressão espacial desse princípio, organizando as actividades humanas em adequação às aptidões paisagísticas de cada área, com base numa apreciação integrada de aspectos biofísicos e culturais, com igualdade de oportunidades no aproveitamento dos recursos e de responsabilidades na salvaguarda dos valores. É, por definição, o melhor mecanismo de que um Estado dispõe para desenhar no terreno as bases de uma estratégia de desenvolvimento coesa, funcional, solidária e justa. Sabemos que a realidade não corresponde a este bonito ideal, e que há atropelos e que, sim, sem dúvida que em muitos casos o poder económico subverte (ou no mínimo contorna habilmente) a legalidade. Mas nesses casos são pessoas como o deputado que têm que nos explicar o porquê, já que o mandato que lhes é conferido é também de vigilância. Mas, sendo então óbvio que legalidade não equivale obrigatoriamente a moralidade, que moralidade tem a ilegalidade? O deputado que agora ataca um processo tramitado dentro da lei – fazendo fé na informação veiculada – é o mesmo que andou a defender processos de ocupações ilegais, que ainda para mais dispõem já de ampla jurisprudência contra si. Os erros do passado não legitimam os do presente, obrigam antes a que se lute pela correcção de todos por igual, sendo que aqueles que se consiga prevenir serão sempre a solução mais satisfatória. Certo é que este deputado, em conjunto com muitos outros – alguns por acção, outros por omissão, num autêntico pacto de regime – subscreveu a defesa dos interesses privados sobre os colectivos, fazendo prevalecer aqueles sobre os segundos. É irónico, mas sim, os comunistas, num tempo de maioria dita “de esquerda” (são cada vez mais relativos estes rótulos, num primado do populismo em todos os pontos cardeais do espectro partidário), tomaram parte activa e entusiasta, qual Brutus, no assassinato conceptual da figura legal do DPM, que dá expressão territorial a um princípio de universalidade de acesso, ou aliás, de autêntica nacionalização da orla costeira, implementada em meados do Século XIX pelo Rei D. Luís – curiosamente antes mesmo d’O Capital ser publicado ou Lenine ter nascido. Em Outubro de 2016, escrevi neste Lugar um texto intitulado Tuaregues montados em camaleões (disponível aqui), numa altura em que se discutiam as ocupações ilegais do Domínio Público Marítimo na Ria Formosa e o destino a dar-lhes, em que afirmei o seguinte: Estamos portanto perante uma escolha fracturante. Entre salvar um princípio de organização igualitária da sociedade ou fazer prevalecer as vontades individuais sobre o colectivo, entregando o que é de todos a alguns. A balança política e as opções governamentais e parlamentares entretanto penderam para uma legitimação oficiosa das ocupações ilegais na Ria Formosa, pulverizando o DPM, numa capitulação histórica e estrondosa do Estado de Direito. O deputado, que fez então a sua escolha consciente e ajudou deliberadamente a abrir a Caixa de Pandora do ordenamento territorial, não tem agora autoridade moral para questionar os que se movimentam dentro da lei, por chocante que possa ser o resultado. Esta fragilização moral e ética dos nossos representantes – porque, insisto, há muitos outros em igual circunstância, podendo dizer-se que Paulo Sá constitui uma “personagem-tipo” à moda de Gil Vicente – é dramática, pois retira credibilidade aos próprios e, no limite, a todo o sistema democrático. Mesmo considerando a máxima Maoísta em que “a prática é o critério da verdade”, penso que até Trotsky, a quem é atribuída a frase “tudo é relativo neste Mundo, apenas a mudança é constante”, consideraria a hipocrisia insustentável. Ou talvez a abordagem mais correcta seja, por maioria de razões, a de Estaline, que considerava que “um diplomata sincero é como água seca ou ferro de madeira”…
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