Por Sara Luz
Nos últimos tempos, fomos inundados com o termo “ilegal” em virtude da acesa e fervorosa “luta” entre os enfermeiros e o Ministério da Saúde. Face aos contornos das alegadas ilegalidades, comecei a questionar-me se o significado da palavra “ilegal” teria mudado. Ainda que a resposta fosse óbvia, precedentes como o Acordo Ortográfico incitaram-me a confirmar. Confesso também que, por momentos, presumi que o Estado de Direito pudesse ter os dias contados. Mas, quanto a isso o Sr. Ministro da Saúde (MS) fez questão de relembrar, em todas as suas mui pertinentes intervenções, que essa jamais seria uma possibilidade. Mas é no tom frenético com que se pronuncia acerca do modo como os enfermeiros se manifestam, usando e abusando de termos como “ilegítimo, imoral e ilegal”, que realmente abre espaço para interrogações sobre as acusações que faz e suas verdadeiras pretensões. Permitam-me, então, uma análise dos casos que marcam a “ilegalidade”. O primeiro caso remonta a final de junho de 2017, quando os Enfermeiros Especialistas (EE) em Saúde Materna e Obstetrícia iniciaram um movimento designado por Movimento Nacional de EESMO (tema que pode ser recuperado aqui). Neste caso, o MS considerou o movimento não só ilegítimo como ilegal, demonstrando um total desrespeito à língua portuguesa ao adjetivar um substantivo com recurso a dois sinónimos. Fora isso, mas não menos importante, manifestou ter dúvidas quando à legalidade do protesto já depois de o ter considerado “ilegítimo e ilegal”. Não só foi demagogo como antecipou “assim como quem não quer a coisa” o resultado do Parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR), que só viria a ser conhecido uns dias mais tarde e, calcule-se, sem que tivessem sido explicitadas as razões apontadas pelo MS no pedido efetuado. Nos "entretantos", é iniciado o processo negocial da Carreira de Enfermagem através da assinatura de um memorando de entendimento entre a Federação Nacional de Sindicatos de Enfermeiros (FENSE) e os Ministérios da Saúde e o das Finanças, razão pela qual o protesto foi suspenso, assim como a greve prevista entre os dias 31 de julho e 4 de agosto. No final do mês de agosto, e referindo-me ao segundo caso, assistiu-se a uma retoma do movimento EESMO e à criação de outros tantos movimentos por parte de Enfermeiros de outras Especialidades, em virtude do incumprimento do Governo nas negociações. Os EE destacaram a falta de compromisso do MS, assim como a sua incapacidade de tomada de decisão e gestão de conflitos. Certamente uma blasfémia contra alguém que nem sequer marcou presença física em reuniões de índole tão “vital”. No seguimento, e como nada de novo nos protestos era ilegal, bastou os EE decidirem suspender o seu título de Especialista na Ordem dos Enfermeiros (OE) (título esse adquirido exclusivamente às custas dos próprios!) para a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) considerar esse um ato ilegal. A ACSS argumentou que a suspensão do título de Especialista não era possível sem que houvesse suspensão da inscrição como Enfermeiro, o que contradiz claramente os Estatutos da OE. O terceiro caso diz respeito à greve em curso, convocada pela FENSE a 23 de agosto, mas que por todas as razões e mais algumas foi também considerada ilegal. Neste caso em concreto os Ministérios não pareceram alinhados na “estratégia” do MS, uma vez que o Ministério das Finanças não concordou com as irregularidades apontadas pelo Ministério do Trabalho. Divergências à parte, a ACSS não se acanhou em emitir uma circular informativa para relembrar todas as entidades de saúde sobre “os termos legalmente definidos quanto ao cumprimento do dever de assiduidade”. Um louvor para esta atitude que, apesar de não parecer, faz muito sentido. Ora se em todos os casos houveram ameaças de processos éticos e disciplinares, faltas injustificadas, ou outro tipo de consequências em situação de delito, não parecia bem agora fazer diferente. Ainda assim, e porque vivemos num Estado de Direito, aguarda-se a decisão do Tribunal Arbitral. Face ao exposto, terminaria com duas considerações. Primeiro, a frequência com que tem sido utilizada a palavra “ilegal” é tal que a “Geringonça” é capaz de perder a pole position em 2017, o que suspeito não ser do agrado de muita gente. Segundo, era interessante que nesta perseguição em que se reavivam os tempos áureos da “caça às bruxas”, o MS tivesse a audácia em resolver de uma vez o conflito, pronunciando-se sobre a legalidade de “coisas” que talvez possam verdadeiramente importar. São caso disso, os enfermeiros que estão na sua grande maioria no primeiro de 11 escalões de progressão e necessitarem de trabalhar cerca de 50 anos para atingir um hipotético topo de carreira; os enfermeiros que com 20 ou 30 anos de experiência, competências acrescidas ou especialidade têm o mesmo salário que recém-licenciados; os enfermeiros que com um contrato de funções públicas trabalham 35 horas semanais e outros com contrato individual de trabalho trabalham 40 horas; os enfermeiros que nunca serão Enfermeiros Principais porque em Portugal nunca abriu um único concurso para o efeito, ainda que à luz da “carreira” em vigor desde 2009 estejam contempladas as categorias de Enfermeiro e Enfermeiro Principal… Legal ou ilegal: eis a questão! Nota: A autora não garante total imparcialidade na opinião manifestada.
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