Por Gonçalo Duarte Gomes Hoje é dia de greve climática! Ainda por cima numa Sexta-feira, o que dá sempre jeito, e garantiu que alguns veteranos da greve aderissem, mesmo sem ter grande noção daquilo ao que vão. No centro deste movimento, qual Mário Nogueira da coisa (embora sem bigode, mas igualmente sem pôr os pés numa escola há muito tempo), uma jovem de 16 anos: Greta Thunberg. A adolescente sueca, que tem sido figura central da reivindicação por uma acção política global para fazer face às alterações climáticas, viu-se ainda mais na berlinda depois do discurso inflamado que proferiu recentemente na Cimeira da Acção Climática, em Nova Iorque. A sua resposta contundente (e algo descompensada) à pergunta sobre qual a mensagem que trazia para os líderes mundiais ali reunidos, polarizou a opinião pública. Entre a canonização instantânea e a diabolização, passando pelo insulto, pela euforia, pelo achincalhamento ou pelo carinho, houve de tudo. Curiosamente, mais em torno do mensageiro do que da mensagem. O que é sempre mau sinal. Confesso que embora ache a Greta Thunberg uma miúda incrível – principalmente porque luta por aquilo em que acredita, e por um futuro melhor, não apenas para si, mas também para outros, e inspirando muitos – discordo da exposição abusiva de crianças, pois é das situações em que recuso a escola maquiavélica, mesmo se considerado o objectivo dessa exposição nobre e meritório. Mas estes são os tempos que vivemos, alimentados por ícones. Erguidos a qualquer custo, privilegiando forma acima de conteúdo. Adereços de um espectáculo, porque apenas o espectáculo tem a mínima hipótese de captar a atenção das pessoas e, esperançosamente, arrancá-las da sua letargia. E Greta tornou-se isso mesmo, um símbolo. Daí que se tenha tornado peça central de um mecanismo que claramente não controla, e que a envolve num argumento porventura demasiado pesado para a sua idade. Mas, novamente, o que interessa é o seu efeito, ou não houvesse já um muito vendável e orelhudo “efeito Greta”. No entanto, antes de “ser Greta” ser cool, já muita gente o era. Bolas, até o Steven Seagal foi, com um par de filmes um bocado azeiteiros sobre ambiente, na década de 90 do século passado. Passe a imodéstia, eu próprio incluo-me nessa gente. Sem escala, impacto ou atenção comparáveis, e obviamente sem a mesma pinta, optando sempre pelo possível em detrimento do ideal. E para tal bem-intencionado mas irrelevante activismo ambiental muito contribuiu a inspiração vinda de gente fantástica e venerável, que já era Greta há muito mais tempo, inclusivamente quando ser Greta não só não era cool, como era potencialmente perigoso. Nesses outros tempos, certas contestações podiam levar a incómodos significativos, entrevistas musculadas e até, ocasionalmente, sacudidelas da verdura do pessoal, à base de um cascudo ou outro. Contribuiu também uma outra Greta, uma canadiana de 12 anos chamada Severn Cullis-Suzuki, que na Conferência do Rio, em 1992, alertava o mundo para a emergente emergência, que então poucos consideravam urgente. Severn, como a Greta, padecia dos mesmos “embaraços” para o status quo: criança, rapariga, reivindicativa, vinda de contextos altamente privilegiados – se Greta é filha de artistas de sucesso, Severn é filha do cientista David Suzuki – e com uma mensagem incómoda. Severn tinha ainda outra desvantagem: falava cedo demais.
Nada disto desvaloriza o que Greta Thunberg tem feito, ou as consciências que tem despertado. Apenas o coloca em perspectiva, e sublinha como muito mais importante do que o mensageiro, são os destinatários, a atenção que prestam, ou não, e, obviamente, a mensagem. Que tarda em passar. Pelo menos para lá da simpatia do tema, para lá da moda (neste capítulo, os nossos partidos políticos são fashion victims exemplares, correndo agora atrás de agendas ambientais que olimpicamente têm ignorado). Mas Severn e Greta parecem-me partilhar ainda outro traço comum: a fraca pontaria. Porque ambas apontaram aos líderes mundiais. Sendo óbvio que são peças fundamentais, já não são alvos prioritários. Não porque seja uma esfera cada vez mais deserta de estadistas e pontuada por idiotas e populistas (reflexo e consequência de um longo processo de degradação democrática, cuja responsabilidade recai inteirinha sobre aqueles que durante longo tempo se arrogaram herdeiros naturais da liderança do sistema e hoje destilam uma despeitada, vã e insustentável superioridade moral, porque assente em axiomas), mas porque o poder não reside efectivamente neles. Hoje as corporações e grandes empresas ombreiam com os Estados em termos de poder e influência no desenho dos destinos colectivos, inclusivamente dominando-os. Males do capitalismo, ouve-se abundantemente. Por isso mesmo, a mudança de paradigma tem que acontecer não no sentido top to bottom (para usar terminologia estrangeira, que parece sempre mais profunda), mas sim das bases para o topo. Numa espécie de “capitalismo marxista”, temos que reificar os riscos naturais, integrando-os nas nossas dinâmicas sociais e de consumo, gerando um sentido de classe: a classe do risco climático. Uma classe chata, porque embora os nossos gestos individuais sejam estatisticamente irrelevantes no cômputo geral das alterações climáticas, são eles que, somados, compõem o problema. E injusta, já que, regra geral, os que menos contribuem para o problema – leia-se os estratos mais pobres, e menos imersos na sociedade de consumo – são os mais expostos e vulneráveis aos efeitos negativos. E profundamente perturbadora, porque nos obriga a reflectir sobre quantos somos e podemos ser, sobre padrões de conforto e comodidade, sobre o que fazemos, comemos (principalmente como se produz, Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra!), sobre como, quanto e quão longe nos deslocamos. Assim sendo, admiramos a Greta? Queremos ser como a Greta? Queremos apoiar e valorizar o seu trabalho? Queremos mudar o mundo, alertar consciências? Comecemos por nós, pela nossa rua, pelos nossos vizinhos. Comecemos pelo Algarve, pelos nossos autarcas. Sem lados, sem trincheiras. Com a consciência de que todos partilhamos o problema, e que este é imediato. Trabalho não nos falta. E o Mundo seguir-nos-á.
2 Comments
Miguel
27/9/2019 11:47:14
Gonçalo, é sempre um prazer ler e comentar os seus textos, embora pouco possa acrescentar de relevante visto que quase sempre refere aquilo de mais importante, acutilante e incisivo nos mesmos.
Reply
Gonçalo Duarte Gomes
30/9/2019 14:52:40
Caro Miguel, realmente o Algarve tem um atraso estrutural em termos de civismo que é altamente condicionante, e que é também fruto da sua reduzida escala, diminuta rotatividade e renovação de agentes e responsáveis públicos.
Reply
Leave a Reply. |
Visite-nos no
Categorias
All
Arquivo
October 2021
Parceiro
|