Por Gonçalo Duarte Gomes Há dias, e a reboque de uma tragédia que teve tanto de abominável quanto de anunciada, surgiu, qual profeta, um novo herói para povoar o imaginário nacional das bizarrias: o homem-couve. No âmbito de uma coisa a que a CMTV insiste chamar reportagem, um imberbe ardina plantado à porta do local de um brutal infanticídio, estende, por entre badaladas de sino semelhantes ao que os elefantes tocavam no Jardim Zoológico de Lisboa a troco de alcagoitas, e com excitação a raiar o orgasmo precoce, o inconfundível microfone vermelho para fora do enquadramento, prometendo o testemunho de um morador que conhece o senhorio da família. Eis senão quando surge um indivíduo, de óculos escuros e, em estrito cumprimento das (des)orientações da Direcção-Geral de Saúde, máscara no rosto. Mas não uma máscara qualquer. Uma imponente, viçosa – quase gulosa – folha de couve, messiânica, capaz de figurar, imortalizada, em qualquer baixela da colecção Bordallo-Pinheiro. Verifica-se então que não é afinal um morador, mas que efectivamente é um tipo que às vezes vem visitar um fulano seu amigo que alugou (os amigos alugam sempre, nunca arrendam) a casa ao pai e madrasta da criança, confessos homicidas. E o que sabia ele daquela família? Nada. Comme il faut, obviamente. E, afinal, o que interessa isso? Rémi Gaillard, famoso e infame humorista francês, explica: c'est en faisant n'importe quoi qu'on devient n'importe qui. Numa tradução pessoal, direi que será qualquer coisa como “é fazendo não interessa o quê, que nos tornamos não interessa quem”. Interessa é ser alguém, nem que por breves minutos. De caminho, o serviço público de dar a conhecer ao mundo o homem-couve... estava feito. Pouco mais de minuto e meio de brilhante nulidade jornalística bastou para, com uma cheia mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, inscrevermos um novo Encoberto (seria este o prometido por Gonçalo Annes Bandarra?) nas nossas mentes e, arrisco dizer, corações.
Mas o que torna o homem-couve tão especial? Pelo anonimato, é qualquer um. É, pelo nada que sabe do tema, um qualquer. Será o seu carácter genérico a feromona intelectual que o transforma neste “guilty pleasure” icónico? Por poder ser todos nós? O gajo da tasca, o taxista que diz que as leis são como as meninas virgens – para ser violadas –, o tipo que sabe que a culpa é sempre "deles", o vivaço que acha que são todos iguais mas não diz o nome de nenhum, porque como somos todos iguais mas às vezes uns são mais iguais do que outros, convém deixar aberta a porta para passar de uns a outros. Sente-se nele, novamente, o pulsar de Raphael Bordallo-Pinheiro, já não pela faiança, mas pelo latente potencial de manguito (toma!) do Zé Povinho. Será porque o homem-couve é eco? A sua máscara é, realmente, verde. A sua máscara é biodegradável. A sua máscara é caldo-verde, é bacalhau com todos, é cozido à portuguesa. É protecção e sustento. E é também, por afinidade familiar crucífera, nabo. Residirá na sustentabilidade do homem-couve o seu segredo? Ou será porque o homem-couve é, simultaneamente, Batatinha e companhia? Será porque é o palhaço que faz um teatrinho para animar mas é também o arrumador que a todos mete dentro da tenda do circo mediático? Talvez, até porque dentro da tenda da CMTV cabe o circo de um Portugal inteiro. Mirar aquela epifania vegetal, pespegada no oculto frontispício do afinal transeunte, foi como encarar um abismo existencial. E tal como Nietzsche alertou, quando olhamos prolongadamente para o abismo... o abismo olha-nos de volta. No caso, com uma folha de couve na cara. A CMTV não é uma latrina noticiosa ou um bordel jornalístico, ao contrário do que muita gente diz. É só um espelho. Do nível para o qual a nossa sociedade foi conduzida e se deixou alegremente conduzir. Darwin explica. Ao observar os tentilhões (parece que não são bem, mas não quero aqui entrar em preciosismos taxonómicos) das Galápagos, o mais famoso naturalista da História – pobre Humboldt – observou como os bicos destas aves apresentavam uma grande variabilidade, consoante diferentes grupos se adaptaram, ao longo do tempo, a especializações nutricionais. Cada alimento, seu bico, no fundo. Na selva jornalística, a coisa dá-se ao contrário. O jornalismo é “bicado” por essa grande passarada que somos nós, o público. Vai daí, neste tão contranatura caso, é o alimento que se adapta ao bico. O Correio da Manhã – precursor da CMTV e sua contraparte em papel ensopado em sangue – foi na verdade pioneiro, visionário mesmo. Topando à distância a crescente e inexorável perda de dentes da opinião pública e da massa crítica nacional, rapidamente evoluiu para uma papinha mole, fácil de mastigar, com pouca estrutura ou substância, que pouco informa mas muito entretém, que enche o olho e bate em cheio no reptiliano do nosso cérebro, saciando macabros, sádicos e inconfessáveis apetites básicos. Passou de mediático a puramente mediatizado. E inegavelmente vingou. Ao ponto de fazer escola e, lenta mas seguramente, arrastar para junto de si todos os outros – pelo menos os que queiram sobreviver sem dificuldades. Novamente ao contrário de certas teorias, este jornalismo dito de sarjeta não é predatório, nem se alimenta de nada nem de ninguém. É alimentado à boca. Assim, transformado em mero negócio e prostituição, expurgado de quaisquer valores que não os pecuniários e com o aval de uma suposta Entidade Reguladora para a Comunicação Social (a mesma que permite que órgãos de comunicação social como o Postal do Algarve façam, aqui na região, exactamente a mesma coisa ou às vezes ainda pior), o jornalismo definha enquanto o entretenimento vinga. E nós aceitamos, com tudo o resto que isso implica em termos de cultura e democracia, e com reflexos claros em períodos de crise como esta, em que, mais do nunca, precisamos de ser inquietados em vez de amedrontados e informados em vez de entretidos (períodos em que, a propósito, injectámos 850.000.000 de euros no Novo Banco, sem folhas de alface a cobrir quaisquer vergonhas, como tão bem explica Pacheco Pereira aqui)… Questionar-se-á, com propriedade: foi esta a mais grave falta jornalística a que se assitiu em Portugal? Não, nem de perto nem de longe! Mas, caramba, esta tinha um homem-couve...
2 Comments
Miguel
14/5/2020 14:32:37
Sabíamos que ia aparecer algo assim Gonçalo, talvez não exactamente nestes moldes, mas situações de caricata pandemia, bound to happen, estava mais a espera de uma máscara homem cavalo, mas a couve serviu bem.
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Gonçalo Duarte Gomes
14/5/2020 21:49:56
Precisamente, Miguel.
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