Por Andreia Fidalgo Não há muito tempo, num destes debates em formato remoto a que a pandemia já nos habituou, ouvi alguém afirmar convictamente que tínhamos todos de nos começar a libertar do discurso clássico e, aparentemente já muito fora de moda, de que “o Algarve é mais do que sol e praia”. Esta reivindicação, como sabemos, é muito comum por entre todos os que consideram que a região tem muito potencial para além do clássico turismo estival centrado em torno das praias mais badaladas. Ou seja, em termos turísticos, há mais para oferecer, seja uma oferta mais vocacionada para o interior algarvio, ou até para as suas singularidades históricas, culturais e patrimoniais; e em termos não-turísticos, o Algarve ou está largamente subaproveitado noutros potenciais sectores económicos, e/ou verifica-se uma discrepância gritante entre as actividades que se praticam e a necessária preservação dos recursos e valores naturais e patrimoniais da região (como, por exemplo, o rumo que leva a exploração agrícola intensiva). Confesso que fiquei algo perplexa com a peremptória afirmação, embora compreenda o seu alcance. A evidente noção de que o Algarve tem de ser mais do que sol e praia já é antiga e, em termos teóricos, o “sol e a praia” constituem um paradigma que já está mais do que ultrapassado, de tal forma é óbvio que se encontra esgotado. Mas, e em termos práticos? Considerando que climas amenos e praias bonitas há muitos pelo mundo fora, tem a região algarvia realmente apostado numa oferta turística realmente diferenciadora, que valorize as suas singularidades próprias, ou continua a depender quase única e exclusivamente de um turismo mais massificado que tanto poderia ir para Albufeira como para Biarritz? Eu apostaria mais nesta última hipótese, por isso não creio que o paradigma esteja já, de todo, ultrapassado, de tal forma não existe realmente uma mudança substantiva que concorra num sentido diferenciador. Ou, pelo menos, ainda não… A prova maior é que, chegada a época estival, já só se fala da retoma turística durante os três meses de Verão, da lotação dos hotéis, do problema das hordas de ingleses que ora chegam, ora partem, consoante as luzes verdes dos corredores aéreos… Se a estratégia de retoma da economia regional, fragilizada pela pandemia, se centra somente nos três meses de Verão, o que teremos nós, afinal, para oferecer noutras épocas do ano, de forma a combater a sazonalidade? Cumpre aqui recordar que o paradigma turístico a que nos habituámos a partir da massificação das décadas de 60-70 do século passado nem sempre foi este. Em períodos anteriores, quando as qualidades turísticas da região se começaram a evidenciar, os motivos que se invocavam para fazer do Algarve um destino turístico estavam sobretudo relacionados com a beleza da sua paisagem, com as suas especificidades culturais e com a tipicidade das suas gentes e localidades. O clima, sim, também era frequentemente invocado, mas – e espante-se o leitor! – dizia-se que o Algarve era bom para passar férias no Inverno! Um excelente exemplo destas virtualidades turísticas regionais, que hoje parecem tão distantes da nossa realidade, encontra-se bem espelhado na Panorama, Revista portuguesa de arte e turismo, que se começou a publicar em 1941. O nº 23, publicado em 1945, era parcialmente dedicado à região algarvia e o autor desse artigo, Américo Nogueira, num lampejo clarividente, referia-se ao algarve como a “Grande zona turística do futuro”, escrevendo que “se há região que reúna avultado número de condições para uma intensa e progressiva exploração turística, é, sem nenhuma dúvida, essa luminosa e suave faixa algarvia, com as suas três zonas geograficamente diferenciadas: a Serra, o Barrocal e o Litoral”. As condições a que o autor se referia e que explica, que a posteriori se revelaram muito menos clarividentes do que a acepção inicial, eram as seguintes: o clima, o património histórico-cultural, a tipicidade de algumas localidades algarvias e a paisagem natural. Para se justificar, recorria às descrições detalhadas do Guia de Portugal, de 1927, alusivas a esses tópicos, acrescentando oportunamente as suas próprias considerações. Assim, quanto ao clima, relembra que o Algarve é particularmente requerido no Inverno, embora isso não deva dissuadir o visitante de aí ir noutras épocas do ano: “Diga-se, embora, que o Algarve «é uma das mais admiráveis estações de inverno de toda a Europa, muito superior, pela amenidade da temperatura hibernal, à Côte d'Azur e à Riviera di Ponente» - corno se lê nos guias que não mentem; mas nem por isso deixe de lá ir quem deseje e possa, noutra qualquer estação do ano, gozar as delícias da beira-mar”. A singularidade do património edificado, fruto de uma herança histórica muito específica, não fica esquecido nas considerações: “A própria arquitectura urbana, nas mais características povoações algarvias, onde a impecável brancura das casas, as açoteias e as chaminés rendilhadas evocam a longa permanência dos árabes e o poderoso influxo da sua civilização”. Para o autor, o Algarve merecia visita turística sobretudo pelas suas povoações mais típicas: Olhão, Loulé, Alcantarilha, Moncarapacho e, como curiosidades arqueológicas, Silves e Milreu; a estas, acrescenta Alte, que considera estar ainda por descobrir e valorizar: “Assim, quando há anos se dizia: - «Se vai ao Algarve, não deixe de visitar Olhão, a terra cubista por excelência, que se diria inventada por Picasso na sua primeira fase inovadora; e vá também apreciar as açoteias e as chaminés de Loulé, que são das mais bonitas que se encontram em toda a província; e gaste algumas horas a desfrutar as graças plásticas das aldeias de Moncarapacho e Alcantarilha... » sabe-se, agora, que esse conselho era incompleto, devendo-se acrescentar que se impõe, para se fazer uma ideia mais ampla e mais justa do pitoresco algarvio, um passeio pelas ruas de Alte, numa noite de luar”. Da paisagem, invoca-se o arvoredo “quase cosido à terra”, composto de figueiras, alfarrobeiras, amendoeiras, e invoca-se o extenso cultivo, que se multiplica em vinhedos, hortas, searas, vergéis, onde amadurece a melhor laranja, a melhor romã e a melhor uva do país. Uma paisagem com uma flora de grande variedade: “Junto do litoral, predominam os pinheiros mansos, baixos e de espessas copas; nas serranias abundam os sobreiros, os azinheiros e os medronheiros, encontrando-se ainda noutras zonas - principalmente nas terras de Monchique - carvalhos e castanheiros. Ninguém ignora que a figueira é uma das mais típicas espécies botânicas da província, mas poucos sabem que a paisagem algarvia é valorizada por outro atractivo singular: a adelfeira (ou loendro), pequeno arbusto de flores cantantes e de macia folhagem que prefere adornar as margens bucólicas dos ribeiros”. Em suma, naquela época a região era valorizada turisticamente por motivos que hoje, em vão, invocamos como importantes, nomeadamente pela sua paisagem natural e pela sua herança histórica e cultural. É óbvio que não podemos desvalorizar o facto de as nossas praias e clima serem um dos maiores atractivos que actualmente temos para oferecer… Mas essa não pode ser a única aposta estratégica do turismo na região, tal como o turismo, per se, não pode continuar a ser a única aposta estratégica da economia regional. *Fonte bibliográfica das imagens aqui reproduzidas: Panorama, Revista portuguesa de arte e turismo, nº 23, 1945. Disponível online na Hemeroteca Digital de Lisboa.
2 Comments
José Lúcio Almeida
16/6/2021 13:52:07
Bom artigo, como é seu apanágio. No entanto, esto cansado de ler e ouvir comentários à "agricultura intensiva". Temos de saber o que queremos e...o que não queremos. Uma exploração de citrinos de 22 hectares ( é o meu caso ) é agricultura intensiva ? Qual o limite de uma agricultura não intensiva ? Uma courela de 1000 metros quadrados, económicamente inviavel ? Se não se quer nem o turismo de massas ( não gosto ) nem de uma agricultura minimamente viavel, o que se quer ? O turismo de cultura e natureza é muito bom mas pouco contribui para o emprego. Quanto à agricultura, o que se quer ? Voltar ás culturas de sequeiro que, no tempo do meu Avô, não davam nada ? Ou voltar ao regadio natural, a partir de noras e poços ? Assisti muiras vezes à rega de um pequeno pomar de laranjeiras. As árvores eram regadas uma a uma e, cada uma, demorava uns 10 minutos. Sei bem que o Algarve é muito escasso em agua. Mas tal devia servir para controlar /;travar a expansão desordenada do regadio, mas não diabolizá-lo. Há.muitss ideias sobre a agricultura, algumas correctas mas outras muito incorrectas. Seria assunto para uma conversa de viva voz. Um abraço.
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Miguel
17/6/2021 15:45:28
Questões e observações pertinentes levantadas pela autora do texto, e pelo autor da resposta; a ambos responderei: Havendo escassez de agua, pouco se tem feito para além da conversa de centrais de dessalinização - com todos os problemas associados às mesmas - urge reutilizar aguas residuais para diversos fins, aumentar a captação de agua da chuva, melhorar técnicas de irrigação, e evidentemente controlar a expansão de culturas desadequadas ao nosso bioma (encerrando mesmo algumas caso se encontrem em zonas de valor ecológico).
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