Por Gonçalo Duarte Gomes E ainda por cima, marchent par paires de trois! Eugène Delacroix cunhou, em 1830, a efígie da República, no quadro “A Liberdade guiando o povo”. Nesse quadro, Marianne, figura-tipo do povo, surge imponente e inspiradora, à cabeça dos seus concidadãos, erguendo bem alto a bandeira de França, em celebração da deposição da monarquia em terras gaulesas, compondo uma imagem de tal forma poderosa que viria a ter repercussões na iconografia republicana de outros países, como por exemplo Portugal. Nos últimos dias, e curiosamente em simultâneo com um polémico anúncio surgido na página de Facebook do Aeroporto Internacional de Faro, em que uma campanha propunha aos turistas a fuga da estival “confusão algarvia”, rumo às idílicas paragens de Marselha (!), foi descoberta uma outra versão dessa emblemática pintura. Nesta, em vez de Marianne, liderando a populaça francesa rumo à putativa liberdade com que os promotores do regime republicano acenavam, surge Maria Ana da Liberdade, moça marafada de Besteiros, à cabeça de uma horda de turistas, devidamente equipados, em feroz debandada rumo ao Sul de França, escapando do caótico Sul de Portugal. Os haters vão dizer que é Photoshop, que é falso, um ultraje e sabe-se lá que outras vilanias. Mas o que raio sabem eles sobre arte? Em tempos de silly season, a aeroportuária calinada deu para animar e, obviamente, indignar. No entanto, não passou obviamente de um efémero epifenómeno, ou então, e porque o summertime é pródigo em estrangeirismos, um faits divers, mas que acaba por ser trendsetter para o zeitgeist. Em termos de gestalt, foi mais uma prova da fragilidade do Algarve, o super-destino turístico que treme à mais ligeira brisa. Muita gente questionou, e bem, a passagem da mensagem, o seu canal, o seu contexto e a sua oportunidade, o termo de comparação… mas menos foram os que, em consciência e de forma fundamentada, desmentiram o seu teor. Este problema não é algarvio, mas sim nacional: uma paixão arrebatada por questões de forma e um desprezo atávico pelo conteúdo. De resto, anunciada prova disso é a sequela do filme “MadMaxiano” em que o Algarve, com os seus estratégicos 22 postos de abastecimento (número magicamente dissecado pela Vanessa há dias), está prestes a mergulhar – apenas 4 meses depois do primeiro – com a greve dos motoristas de transporte de substâncias perigosas, agendada para daqui a poucos dias. Surgiu entretanto ao fundo do túnel aquela que muitos consideram ser a panaceia para todos os males do Algarve, imunizando contra inconsequentes dislates ou profundos desastres: a possível definição de uma região administrativa em 2021. Tal possibilidade surge inscrita no extenso relatório elaborado pela Comissão Independente para a Descentralização, publicado anteontem (disponível aqui) que conta com a participação, entre outros, do ex-reitor da Universidade do Algarve, Professor Adriano Pimpão. Este documento vem sublinhar um conjunto de características que são de há muito conhecidas: a identidade histórica da região, a coerência entre os seus limites biofísicos e administrativos, as deficiências estruturais, os paradoxos (o PIB per capita e a produtividade do trabalho [em milhares de euros] ao nível de boa parte das regiões da Europa Central, mas elevada incidência de prestações sociais, a par de desemprego e factores de exclusão social – permitindo a conclusão de que as receitas geradas nas empresas não têm retorno sob a forma de investimento socialmente relevante, nem sequer em termos de salários ou estabilidade laboral) ou o seu afastamento dos grandes eixos de inovação (o quadro da repartição da despesa em I&D por sector de execução é particularmente assustador, pois fora da Universidade nada se passa). Na altura de propor um modelo de governo para essa possível futura região administrativa, existem no entanto sérias chamadas de atenção, principalmente relativamente aos perigos de que o novo nível decisório fique refém das forças e objectivos (leiam-se partidos políticos, a sua gente de confiança e respectivas agendas particulares) que já hoje capturam todo o restante aparelho do Estado, aniquilando assim a tão desejada representatividade, identificação, independência e compromisso dos decisores regionais para com um projecto efectivamente relevante para a região e seu futuro. Que é no fundo o que mais falta faz ao Algarve: peso e compromisso na altura da decisão. Juntaria uma outra preocupação: é que não restando dúvidas quanto à necessidade de uma maior autonomia regional em diversas matérias, importa não perder de vista a coerência nacional. Defendi-o em tempos, já aqui no Lugar, através de uma “regionalização táctica” (disponível aqui). Resta-nos acompanhar a evolução da aplicação deste documento, elaborado por gente de reconhecido mérito e competência. Enquanto isso, vamos sobrevivendo como podemos à guerrilha estival que o mês de Agosto traz às estradas, ruas, praias, supermercados, cafés e restaurantes de boa parte do Algarve, continuando a indignar-nos com quaisquer outros que tenham a ousadia de constatar tal realidade.
2 Comments
Miguel
3/8/2019 18:22:01
Caro Gonçalo, todas as decisões acarretam benefícios e riscos, sendo que o beneficio de o Algarve usufruir de maior capacidade de gestão e administração comporta (segundo diversos especialistas, estudos e diria mesmo reflexão pessoal ponderada) é superior ao risco.
Reply
Gonçalo Duarte Gomes
5/8/2019 09:45:10
Miguel, os regionalismos em Portugal fazem todo o sentido, uma vez que a identidade das regiões é histórica, cultural e ambientalmente notória. No entanto, esse sentido perde-se se retirado o contexto da coerência nacional.
Reply
Leave a Reply. |
Visite-nos no
Categorias
All
Arquivo
October 2021
Parceiro
|