Por Andreia Fidalgo Há não muitos dias, os dados publicados pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional revelaram que o número de desempregados inscritos em Maio nos centros de emprego do Algarve subiu 202,4% em relação ao período homólogo do ano passado. O Algarve foi, sem surpresa, a região portuguesa que registou o maior aumento de desemprego, o que, de resto, vem na tendência dos meses precedentes. Evidentemente, uma economia pouco diversificada e sobretudo alicerçada no sector turístico, seria sempre a que mais iria sofrer com o impacto de uma situação de crise pandémica como a que estamos a enfrentar. Por isso mesmo, desde muito cedo se foram erguendo várias vozes em defesa da ideia de que o Algarve, como a região continental a sofrer mais os impactos económicos da pandemia, deveria ser alvo, por parte do Governo, de um programa de recuperação e de apoio especial e mais adequado às suas especificidades. Algo que parece lógico e justo, e procura responder ao princípio da equidade. Pode ser falha minha, mas até ao momento não tive notícia de que qualquer programa especial que pensasse seriamente em minimizar os gravosos impactos económicos que esta crise está a gerar na região algarvia. Não só não se pensou, como numa lógica nacional de abertura de fronteiras e de recuperação do sector turístico, nem a TAP faz do Algarve, principal destino turístico português, uma estratégia… Se nunca o fez, por que haveria de o fazer agora?! Sejamos honestos: esta situação não causa grande espanto! Estamos perante um Algarve cujos interesses e reivindicações têm sido sucessivamente desprezados por parte do poder central. E esta é uma história que não é recente, tal como já tenho vindo a demonstrar, em diversas ocasiões, aqui no Lugar ao Sul. Temos, efectivamente, um problema de percepção relativamente às necessidades regionais. Poderemos questionar se se trata de um problema económico, ou político, ou de relação centro-periferia, entre outros, e certamente que a nossa resposta vai ser positiva para todos eles; porém, acima de tudo isso, questiono-me se, talvez, o problema algarvio não seja sobretudo um problema cultural, ancorado numa incompreensão multissecular das particularidades e idiossincrasias regionais. O isolamento crónico do Reino do Algarve, durante séculos, relativamente ao restante Reino de Portugal, aliado ao facto de ter sido a região mais islamizada do território português, o que se traduz em manifestações culturais próprias, poderão ter sido alguns dos principais factores a concorrer para a visão quase sempre distorcida que a nível nacional se tem sobre a região, e que ainda hoje teima subsistir. Nesta ordem de ideias, para o artigo de hoje decidi invocar aqui alguns trechos sobre o Algarve que constam no Guia de Portugal, de 1927. Numa altura em que o turismo ainda dava os primeiros passos, e que o sol e praia não eram moda, que motivos teria o viajante de há 100 anos para visitar o Algarve? E qual era a visão generalizada que do Algarve se tinha, a nível nacional? O Guia de Portugal foi uma obra, em cinco volumes, cuja publicação se iniciou na década de 20 do século passado e que resultou da iniciativa de um grupo de intelectuais portugueses. Em 1919, o historiador Jaime Cortesão foi nomeado director da Biblioteca Nacional de Lisboa, cargo que ocupou até 1927. Foi durante esse período que se formou o chamado «Grupo da Biblioteca», ao qual pertenceram vultos de relevo da cultura da época tais como: o escritor e jornalista Raul Proença, os escritores Aquilino Ribeiro e Raul Brandão, o poeta Afonso Lopes Vieira, o médico, escritor e historiador Reinaldo dos Santos, entre outros. Este grupo foi responsável por uma importante acção cultural e, sob a chancela da Biblioteca Nacional de Lisboa, promoveu a publicação do Guia de Portugal. Os três últimos volumes só seriam publicados entre a década de 40 e o final da década de 60, já sob a chancela da Fundação Calouste Gulbenkian e coordenação de Sant’Anna Dionísio. Ficou ao cargo de Raul Proença a coordenação dos dois primeiros volumes do Guia, o primeiro publicado em 1924 e dedicado a Generalidades, Lisboa e arredores, e o segundo publicado já no final de 1927, que incluía a Estremadura, Alentejo, Algarve. Contando com diversas colaborações dos intelectuais que integravam o «Grupo da Biblioteca», o Guia pretendia reunir simultaneamente informações práticas (transportes, museus, hotéis, restaurantes…), descrições do clima e geografia e conteúdos relativos à história e etnografia dos vários locais. O segundo volume segue, no que diz respeito ao Algarve, a tendência de desvalorização dessa região um tanto comum à época. A região padecia ainda dos efeitos nefastos do prolongado afastamento em relação ao restante território português, resultado de séculos de isolamento derivado, sobretudo, das suas características geográficas próprias. A serra muito densa a norte, difícil de transpor, era impeditiva de comunicações frequentes, e, por isso, a região e suas especificidades culturais – feição da população, usos, costumes… – e a sua vincada herança islâmica eram mal conhecidas e incompreendidas no restante País. À data de publicação do Guia esse isolamento tinha já sido parcialmente colmatado com a linha do caminho-de-ferro, mas os seus prolongados efeitos ainda se faziam sentir. Não é, pois, de estranhar o quadro algo negativo traçado por Raul Proença no que toca à descrição da população algarvia. Da mulher algarvia diz que se aplica no cuidado do lar, mas “este cuidado, este esmero pela habitação não o aplica, porém (…) aos trajos que enverga, geralmente sem garridice e sem cor, que nem seduzem pela variedade e claridade dos tons, como no vestuário da minhota, nem realçam a graça natural das formas (…) como os da varina e da tricana. Aliás, a mulher algarvia não prima pela beleza. O sangue mourisco corrompeu-a. A luz intensa e a excessiva secura do ar gretam-lhe a pele. É débil, pequena, encarquilhada, sem viço nem frescura – um fruto passado ao sol, como as suas uvas e os seus figos”. O retrato dos algarvios também não é o mais simpático: “uma população mais de mouros ou de beócios que de gregos das ilhas, aparentemente um pouco cândidos de sentimentos, mas no fundo interesseiros, mesquinhos, poucos hospitaleiros, estreitos de espírito, não vendo nada para além da sua nesga de terra ou do seu barco de pesca, cultivando diligentemente o solo, mas sem capacidade de iniciativa, satisfeitos com o fruto que lhes cai nas mãos e o peixe que lhes vem ter à borda de água, ciosos do seu torrão natal, que estão sempre prontos a exaltar desde que lhes não exijam sacrifícios”.
Mesmo no que respeita ao património cultural edificado, Raul Proença afirmava assertivamente que “pouco interesse que tem o Algarve sob o ponto de vista artístico e monumental. Nada mais banal, por exemplo, do que as cidades da província sem monumentos, sem parques e sem jardins e cuja arquitectura regional, tão pitoresca, foi substituída por uma série de construções sem carácter e sem lógica, absolutamente divorciadas do ambiente e das tradições, nos modelos mais torpes e mais chinfrins” – creio que, neste ponto, até Proença levaria as mãos à cabeça, hoje em dia, de horrorizado com o aspecto infame das cidades algarvias, sacrificadas em prol da construção desregrada. Nem tudo no Guia é negativo; antes pelo contrário, pois aí ficaram registadas algumas das mais belas descrições sobre o Algarve, sobre a sua paisagem e as suas povoações, de que há notícia até hoje. Ademais, os textos, sejam os de Raul Proença ou de qualquer outro colaborador, devem ser enquadrados na sua época e no seu devido contexto. Naquele período, a etnografia estava em voga, e interessava registar os usos, costumes e tradições próprios de cada região, assim como os traços mais característicos da população. A nível do património cultural, a concepção vigente na época ditava que apenas eram considerados de interesse os grandes monumentos, e as correntes historiográficas valorizavam sobretudo a época medieval e o período da expansão marítima – o Algarve, última região a ser conquistada e integrada no Reino de Portugal, ficou menos beneficiado a nível de património monumental edificado, e nem o interesse da região para a expansão marítima foi suficiente para contrariar esta tendência. Ainda assim, creio que será legítimo questionar se estas visões negativas sobre os algarvios e mesmo sobre o património cultural da região (ou falta dele!) não se terão transmutado e permanecem ainda hoje bastante vincadas, a outros níveis, na visão que se tem da região e das suas gentes? Quando o Algarve ganhou interesse turístico, a partir da década de 60 em diante, foi a concepção generalizada de que o seu património cultural tinha pouco interesse que deu azo à destruição arquitectónica e à construção desenfreada e desregrada nas nossas povoações; esta mesma concepção permitiu que se construísse um modelo assente no binómio “sol e praia”, como se nada de maior interesse existisse na região – modelo este que, apesar de todos os esforços recentes de valorização cultural da região, tem sido muito difícil de contrariar. Quanto aos algarvios, periodicamente estalam polémicas e acusações de estes serem “interesseiros, mesquinhos, poucos hospitaleiros”, sobretudo por parte de alguns portugueses que nos visitam e nos desprezam pela exploração do sector turístico. Esquecem, aqueles que fazem acusações, da imensa precariedade dos trabalhadores desse sector, sujeitos à sazonalidade, aos recibos-verdes e aos contratos a termo… Todas estas fragilidades são, na actual situação, notórias, gritantes e verdadeiramente chocantes. Gostava e quero acreditar que estes exemplos são excepções e não a regra… Mas questiono se não se trata isto de um problema cultural? De uma herança demasiado enraizada e bastante difícil de extirpar, na qual impera uma certa tendência negativa relativamente à região e à sua população, ainda que muitas vezes inconsciente, por parte do restante “Reino de Portugal”? Considerando que os nossos governantes são o espelho daqueles que os elegem, devemos realmente esperar que o Algarve seja visto, numa situação de crise em que está mais afectado do que as restantes regiões do território, com uma especial consideração? Diz o dito popular que “mais vale esperar sentado”… Mais uma vez não tenho respostas concretas e deixo aqui apenas algumas reflexões.
6 Comments
Miguel
2/7/2020 16:02:48
Mais um excelente texto Andreia, subscrevo integralmente.
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Álvaro
2/7/2020 17:57:33
Subscrevo na íntegra o seu comentário Miguel. Excelente apreciação, ao nível do artigo da Andreia.
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Miguel
2/7/2020 23:14:18
Obrigado caro Álvaro, algarvios de gema ou de coração, temos a obrigação de lutar pela nossa região com firmeza; como em tudo na vida, adquirindo conhecimento e munindo os nossos concidadãos com o mesmo, este blog e todos os seus autores sem excepção fazem um óptimo trabalho nesse sentido, bem haja!!
Maria
3/7/2020 09:38:37
Adorei o comentário 👍 como algarvia de gema, a minha alma é realmente uma amalgama de sol e praia, consciente das riquezas do nosso Algarve 🌼
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Elsa
3/7/2020 11:22:49
Neste caso o senhor Raul Proença, intitulado no grupo dos intelectuais da época, escreveu sem conhecimento de causa e sem análise concreta da região. Valia lhe o título de escritor de que se fazia louvar... E, por ignorância, os que lêem muitas vezes assumem como verídico tudo o que está escrito... Desvalorizar a passagem islâmica e a riqueza dos Algarves, mesmo a época revela muita incipiencia na matéria...
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João Lelo
3/7/2020 05:33:13
Excelente.
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