Por Gonçalo Duarte Gomes Fosse o Shakespeare um moço algarvio, e o Hamlet não perderia tempo a babujar nessa espuma intelectual do "ser ou não ser". Qual quê! Desde logo, a coisa não se passava nas cinzentas terras dos bracos, mas sim num principado mais prazenteiro, como por exemplo, sei lá, a Fuseta. E aí, banhado pelo Sol e pelo calor, as grandes questões da vida passariam não pela dilacerante dialéctica de uma certa malucagem existencialista, mas sim por temas realmente fracturantes: "sardinha ou carapau?", "imperial ou sangria?" ou, quiçá, “praia ou centro comercial?”. Porque afinal de contas, no Algarve, a vida é para se ir vivendo nas calmas... E ainda bem que assim é.
Uma propensão para o existencialismo provavelmente levar-nos-ia colectivamente à loucura, tais não são as assimetrias, incongruências e dislexias que marcam o passo deste Algarve. O Algarve dos fantásticos e amplamente cantados valores naturais mas que militantemente se artificializam, seja com relva, asfalto ou betão; o Algarve do Sol, mas que o Governo, mentira após mentira – ou apenas com uma verdade que ninguém quer ver, dadas as branqueadoras lentes destes novos tempos –, empurra para os hidrocarbonetos e não para as energias renováveis; o Algarve onde os pobrezinhos e os burgueses, em fraterna e democrática – ao menos isso – igualdade, ocupam selvática e ilegalmente o território (no entanto, como neste caso ninguém quer ser milionário, “Je suis ilhéu” é fantasia que vinga mais facilmente), em processos que não têm paralelo num País já de si selvagem, sem que rei ou roque parem por estas bandas; o Algarve onde o ânimo e o desenvolvimento se medem mensalmente pela quantidade de camas e lençóis que temos para fazer e para lavar; o Algarve onde a prosperidade está sempre a mais um resort de distância (desta é que é!), mas em que o trabalho é menos – fora a eufórica época dos campos de trabalho turístico –, menos diversificado, menos qualificado e menos bem pago. Vale-nos, neste Algarve, a nossa consciência colectiva anestesiar-se e esgotar nas imagens que de nós construímos para os outros (que não apenas o proverbial inglês) verem. Vai daí, anualmente peregrinamos – como neste preciso momento – em feliz romaria à Bolsa de Turismo de Lisboa, onde o Algarve, em reverente prostração, se vende (e esta expressão – que é oficial – é tão eloquente), sempre como o mais quente pãozinho de uma cesta perfeitamente normalizada. Mesmo que seja através de estereótipos prostituídos, que nos levam numa onírica viagem, hoje em dia filtrada pela docemente enganadora altitude do voo do drone, que em artístico passing shot cinematográfico nos traz uma região que, de segredo tão bem guardado, por vezes se esconde até dos que nela residem, talvez por andarem a fazer contas a vidas bem mais frugais, que os desviam do gozo deste “photoshopado” Éden, aparentemente tão à mão de semear... Nada mau, para quem ainda há bem pouco tempo criticava os lirismos românticos de António Ferro (filho de mãe algarvia, note-se) para a promoção “daquele” Algarve rústico, da sorridente moçoila de lenço à cabeça junto a uma alva chaminé algarvia, inserido no restante Portugal rural, embevecido pela cândida e pura castidade que molda a alma dos simples da terra, ignorando minudências como a insalubre ausência de infra-estruturas básicas, consanguinidades, analfabetismo e iliteracia, tacanhez de pensamento e visão ou falta de amor-próprio. Hoje em dia, felizmente, o que está varrido para debaixo do tapete são coisas diversas daquelas (se bem que nem todas), mas a farsa continua. O turismo assim obriga, jogo de (doces) enganos que é por natureza, como se o Algarve vivesse permanentemente mergulhado nas autoritárias mensagens subliminares do “They live” de John Carpenter... Até porque, afinal de contas, não discutimos o turismo e a sua virtude. Não discutimos a região e a sua identidade. Não discutimos a autoridade e o seu prestígio. Não discutimos a estratégia e o seu resultado. Não discutimos a glória do servir e o seu dever. O fado não se contraria, e as inevitabilidades são isso mesmo. Ou não? O blasfemo conceito de questionar as inevitabilidades algarvias é precisamente o mote de uma reflexão identitária regional em curso, na 2ª edição dos Encontros do DeVIR (www.encontrosdodevir.com), uma organização DeVIR – Actividades Culturais | CAPa – Centro de Artes Performativas do Algarve. Através de um conjunto de iniciativas, desde projecção de documentários a momentos de reflexão, através de “conversatórios”, pretende-se, sem a presunção de ter ou obter receitas milagrosas para as grandes questões da região, procurar novos caminhos, que saibam preservar e enaltecer o muito que de bom por aqui se faz, potenciando o muito que de bom por aqui ainda temos para dar, mas que permanece por explorar. E sempre com uma identidade muito vincada. Hoje à noite, em Quarteira, na Galeria Praça do Mar, a partir das 21:30h, decorre um desses "conversatórios", a que se seguirão outros, ficando desde já o desafio e o convite à participação em todos, seja para lançar novas ideias ou defender o status quo. É disso que se faz o progresso: diálogo. Para ver se tiramos o provinciano do Algarve, mas sem tirar o Algarve da província.
2 Comments
G. Viegas
18/3/2017 16:11:51
Gostei do texto.
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Gonçalo Duarte Gomes
20/3/2017 11:06:39
No acto da compra do Algarve, para além de um comprador, houve... vendedores!
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