Por Andreia Fidalgo Já por várias vezes tenho referido que, no que à história do Algarve diz respeito, importa resgatar o dia 16 de Janeiro do esquecimento. Em 1773, quando o projecto de Restauração do Reino do Algarve empreendido pelo Marquês de Pombal estava no seu auge, o dia 16 de Janeiro foi absolutamente fundamental em termos legislativos e redefiniu por completo a configuração administrativa regional. Por alvará régio de 16 de Janeiro de 1773 foram criados os concelhos de Lagoa e de Monchique, que repartiram entre si parte do vasto território do então muito empobrecido concelho de Silves. Esse mesmo alvará extinguia o concelho de Alvor, que passou a lugar do termo de Vila Nova de Portimão. Estas alterações do mapa administrativo da região foram de tal forma importantes que, tal como sabemos, ainda hoje configuram parte do Algarve administrativo tal como o conhecemos. Por outro lado, nesse mesmo dia se estabeleceriam, por decreto real, as condições da Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve, criada no dia antecedente. Esta companhia foi a última das companhias monopolistas pombalinas a ser constituída. Substituía o anterior sistema das almadravas e garantia o controlo e intervenção do Estado sobre os peixes considerados privilegiados ou reais, a corvina e o atum, os mais lucrativos, reservando aos restantes o comércio livre. Também por alvará de 16 de Janeiro, Pombal procurou obviar uma situação algo preocupante na região: a exploração que, por intermédio de contratos ilícitos, os grandes senhores fundiários faziam dos lavradores, cobrando-lhes censos considerados usurários. Estabeleceu-se então uma junta que procurava averiguar a legitimidade dos ditos contratos e abolir todos os que não estivessem em conformidade com a lei. As intervenções pombalinas que no Algarve se fizeram por essa altura deixam antever uma situação de grande desigualdade social, em que predominava uma pequena elite que era simultaneamente a proprietária da terra e a que ocupava os cargos da governança local. Pombal preocupou-se particularmente em limitar este grupo de “senhores poderosos” – assim descritos nas fontes da época – e acudir às necessidades daqueles que por eles eram explorados. Ora, perante uma situação social de grande desigualdade na região, talvez não seja assim tão estranho que, no meio da legislação que então saiu sobre o Algarve no dia 16 de Janeiro de 1773, assim como nos dias imediatamente anteriores e imediatamente subsequentes, se encontre uma outra peça legislativa de altíssimo interesse para o contexto nacional, mas que também se refere muito particularmente ao contexto regional: um alvará desse mesmo dia, 16 de Janeiro, alusivo à escravatura. Leia-se o seu preâmbulo: “… depois de ter obviado pelo outro Alvará de dezanove de Setembro de mil setecentos sessenta e um aos grandes inconvenientes, que a estes Reinos se seguiam de se perpetuar neles a Escravidão dos Homens pretos, tive certas informações, de que em todo o Reino do Algarve, e em algumas Províncias de Portugal, existem Pessoas tão faltas de sentimentos de Humanidade, e de Religião, que guardando nas suas casas Escravas, umas mais brancas do que eles, com os nomes de Pretas, e de Negras, e outras Mestiças; e outras verdadeiramente Negras; para pela repreensível propagação delas perpetuarem os Cativeiros por um abominável comércio de pecados, de usurpações das liberdades dos miseráveis nascidos daqueles sucessivos e lucrosos concubinatos, debaixo do pretexto de que os ventres das Mães Escravas não podem produzir Filhos livres, conforme o Direito Civil. Este alvará havia sido, portanto, precedido de um outro, datado de 19 de Setembro de 1761, que abolia o comércio de escravos para o Reino de Portugal (mas não para o Império, note-se!). Agora, determinava-se a abolição gradual da escravatura, também no Reino: todos os que nascessem da publicação da lei em diante seriam inteiramente livres, mesmo que as mães e avós permanecessem sob o jugo da escravidão.
Não vou entrar aqui pelas controvérsias associadas ao pioneirismo – ou não! – desta legislação pombalina, nem do seu contributo para a abolição gradual da escravatura e do comércio de escravos em Portugal, que apenas se viria a efectivar bem mais tarde. Assumo, com toda a humildade científica, que nunca estudei aprofundadamente o assunto para conseguir sobre ele tecer algum considerando que realmente tenha algum valor, ou acrescente algo de novo ao que os especialistas já sobre ele disseram. No entanto, não me parece de somenos importância notar a alusão específica ao Reino do Algarve – a que se juntam, é certo, “algumas províncias” não discriminadas –, o que denuncia que, provavelmente, os abusos perpetrados contra os escravos seriam particularmente acentuados nesta região do país, assim como notar que o alvará aparece associado a uma data e a um período específico em que o Reino do Algarve estava a ser alvo de um pacote de medidas legislativas que visavam a sua recuperação económica e reorganização administrativa. Coincidência? Não creio… As questões que se me oferecem deixar em aberto, para futuro esclarecimento e investigação, são as seguintes: até que ponto as averiguações específicas sobre a situação social e económica na região algarvia teriam despertado novo interesse de Pombal para o problema da escravatura, tendo acabado por resultar numa nova peça legislativa a esse respeito? Considerando que, em larga medida, é possível caracterizar a sociedade algarvia da época como uma sociedade desigual, pautada por grandes desequilíbrios e pela exploração que os grandes proprietários faziam aos lavradores que amanhavam as terras, será assim tão pouco plausível considerar que aí se perpetrassem de forma mais acentuada os cativeiros e os abusos? Não tendo respostas para as questões, termino com a alusão de que ainda hoje nos rodeiam, bem próximos, exemplos de exploração, de abuso e de escravidão, que se escondem sob as mais diversas formas. Se o século XVIII, isto é, o século das Luzes em que Pombal se insere, inicia toda uma reflexão civilizacional que procurava caminhar para uma sociedade mais humanitária e mais justa, estamos hoje ainda muito longe desses ideais. Estaremos a afastar-nos cada vez mais deles?
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