Por Gonçalo Duarte Gomes Assistiu-se esta semana ao “chumbo” do projecto do loteamento e obras de urbanização da denominada Cidade Lacustre de Vilamoura, em sede do respectivo processo de avaliação de impacte ambiental (AIA). Este projecto, que, simpaticamente, se propõe esventrar a margem esquerda do troço final da Ribeira de Quarteira, modificando-a ao ponto da total irreconhecibilidade, para edificação e navegação doméstica, constitui uma das maiores e mais admiráveis – há que reconhecê-lo – bizarrias ambientais já produzidas pela fértil imaginação da indústria imobiliária encapotada de turismo que se desenvolve no Algarve desde há décadas. Assim de repente, que lhe sejam comparáveis, apenas me recordo da “terrina” (marina terrestre) de Albufeira ou a ilha artificial sonhada para o troço costeiro de Vale do Lobo – embora aí tenha havido em tempos um sonhador que era, em si, todo um campeonato à parte. Para quem se preocupa com estas minudências do ambiente, do equilíbrio dos sistemas fundamentais da paisagem e do modelo territorial, este chumbo é uma boa notícia. Para quem já perspectivava uma engorda na conta bancária pela comercialização da mera ideia, é fácil de imaginar que não tenha sido assim tão boa. Mas também não deve ter sido nenhuma fatalidade. A Cidade Lacustre tem sido uma das principais “cerejas” com que se acena nas transacções do “bolo” de Vilamoura. Aliás, arrisco dizer que quando a Lone Star investiu em Vilamoura, este tenha sido dos dossiers mais escrutinados, já que se trata de um dos grandes filões especulativos incidentes sobre o Algarve, com um investimento estimado na casa dos 600/700 milhões de euros.
Melhor mesmo, só se quem dominasse Vilamoura também tivesse um banco ali à mão, já batido nas complexas – e sempre transparentes – operações de engenharia financeira que suportam empreendimentos desta natureza. Mas não, a Lone Star é apenas dona do Novo Banco, que, como qualquer contribuinte português sabe, não se mete em cavalarias dessas. O Grupo/Banco Espírito Santo é que se metia em complicações dessas... Porque o dinheiro nunca dorme (o que intrinsecamente não tem mal nenhum, note-se), assistimos apenas a um interlúdio, antes da próxima investida que seguramente existirá. Até porque este processo beneficia da “jogada” mais antiga na cartilha do bom malandro ambiental: a desagregação de determinado projecto nas suas variadas componentes, de forma a contornar ou mitigar, muitas vezes cirurgicamente, e por desfasamento cronológico, a apreciação cumulativa dos seus impactes ambientais. Neste caso, essa manobra mergulhou a cidade lacustre num paradoxo. Os seus lagos já foram avaliados aqui há uns anos, sem terem que se preocupar grandemente com a edificação que os tornaria citadinos. Ou seja, hoje avalia-se uma cidade lacustre de sequeiro, depois de se terem avaliado uns lagos urbanos sem urbanização. Confuso, manhoso e censurável? Sim. Condenável? Não, porque corre tudo dentro do legalmente possível. Preciosismos legais e éticos à parte, importa olhar para a substância da coisa. Se as alterações paisagísticas e os impactes ambientais decorrentes da edificação eram neste caso óbvios, já os lagos podem escapar entre os pingos da chuva. Porque recorrem a elementos naturais, porque configuram aspectos cénicos atractivos e amenidades apelativas, porque os patos e outras avezinhas chapinham felizes nas suas águas, etc., etc., etc.. Mas neste caso, os plácidos lagos enchem-se graças a alterações profundas na hidrografia da zona e nas dinâmicas ecológicas da várzea da ribeira. Principalmente pelo desvio do Vale Tisnado para a Ribeira de Quarteira e pela construção de um dique entre a Ribeira de Quarteira e a futura zona urbana (alterando as dinâmicas do leito de cheia), para além, obviamente, da criação de planos de água onde antes não existiam. Nesses planos de água, assiste-se então à intenção de alimentação com água salgada, convidando o mar a entrar várzea adentro, aumentando o risco de intrusão salina, neste caso sobre o Aquífero Miocénico. Se pensarmos que estas zonas estão para o sistema biofísico como os rins estão para o nosso organismo, e juntarmos a cidade ao lacustre, é fácil de perceber que isto é tudo muito “green”, "climate change friendly", “eco” e coiso, não é verdade? Não obstante, alguns, ou até muitos, dirão que estes sacrifícios ambientais, e os seus impactos no futuro da região, são justificados pelo dinheiro que isso injecta no Algarve, e pelo que faz mexer em seu torno, a começar pelos empregos, que são prometidos sempre aos milhares – uma chantagem emocional que, em tempos de aflição como este, funciona com uma eficácia desumana e predatória, aproveitando-se da natural indisponibilidade para projectar o futuro além do agora, por parte de quem tem fome e desespera. Eu não sou de contrariar as pessoas, mas aí gostava que alguém explicasse o que correu mal em todos os outros investimentos da mesma natureza deste, e que trouxeram o Algarve ao seu presente e lastimável estado de total vulnerabilidade, frágil dependência e, acima de tudo, aguda emergência social – agravada ainda pela desigualdade na distribuição da riqueza, que estatisticamente exclui a região de diversos mecanismos de apoio. Imagino que aí a realidade fique a falar por si. Parece então que o momento é não tanto de respirar de alívio, mas antes de aproveitar para recuperar o fôlego, e esperar pelos próximos capítulos...
2 Comments
Nelson Mendes
28/11/2020 20:14:20
Os meus Parabéns Caríssimo Gonçalo pelo óptimo Ensaio. A Lone Star quer apenas comer uma fatia do bolo que os patos-bravos se têm lambuzado no Algarve...É de louvar quem chumbou com bom-senso ou por falta-de-óleo instituicional. Assim de repente penso no "meu" Alfamar envolvido nas contrapartidas dos submarinos e que para os autóctones não deu em nada. Bom fds
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Gonçalo Duarte Gomes
11/1/2021 11:22:19
Nelson, de facto, estes supostos "botes salva-vidas" económicos, invariavelmente a galope de uma betoneira, raramente acomodam mais do que os promotores.
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