Por Gonçalo Duarte Gomes Pois é. Nem travões, nem estradas. No que diz respeito ao turismo, aqui o menino atanchava era com uma vacina para a coisa, bem na bochecha do rabiosque do Algarve, só assim por causa das tosses. Camilo Castelo Branco bem se poderia ter inspirado na relação entre a nossa região e o turismo para escrever "Amor de Perdição". Isto porque, no limite, a paixão entre este canto à beira-mar estragado e as hordas de meias brancas em sandálias é toda uma novela que, peripécia após peripécia, se encaminha para uma tragédia romântica em que os amantes se amam, perdem-se, e morrem amando. Um tal amor escalpeliza-se com recurso às palavras de Manel Cruz, imortalizadas pela voz de Vítor Espadinha no arrepiante epílogo da balada “Ouvi dizer”, dos saudosos Ornatos Violeta: A cidade está deserta, Ora para uma doença deste calibre, uma vacina é o melhor remédio. Antes de tudo o resto, impõe-se lembrar que a culpa desta saudável lavagem de roupa suja, no preciso dia em que se comemoram os 25 anos dos cursos de Gestão Hoteleira e Turismo da Universidade do Algarve, é do Luís Coelho e do Bruno Inácio, que, com os seus textos desta semana neste Lugar, resolveram questionar a vaca sagrada do Algarve. Ora, se há bitoques difíceis de mastigar, este é um desses casos.
Confesso-me mais próximo da visão do Luís, defendendo desde há muito a necessidade de refrear a euforia turística que, juntamente com a água do banho, deita fora o bebé, e centrar o discurso numa região equilibrada, onde quem não está engajado nos campos de trabalho turístico também possa viver, com sonhos e legítimas aspirações. Em boa verdade, discordo da perspectiva do Bruno, na reclamação de investimento público para o turismo do Algarve. Porque, nesse capítulo, o Estado já abonou o Algarve muito para lá do razoável. A começar no desordenamento do território, em que ao turismo foi dado uma condescendente e embevecida carta branca estatal para todas as tropelias e vilanias e a terminar nas mais-valias decorrentes das transformações fundiárias e operações urbanísticas de toda a “indústria turística” (termo curioso, num sector que tem paulatina e autofagicamente destruído as matérias-primas naturais e culturais, não renováveis) que foram direitinhas para bolsos particulares, enquanto os custos da sua infra-estruturação e manutenção caem que nem bombas anuais nos orçamentos públicos e nos bolsos dos residentes, que pagam todo o ano a folia de alguns durante alguns meses. Ora esta já longa cadeia de privatização dos proveitos com base na socialização dos encargos é, em si, uma benesse que é dada ao turismo e que, devidamente contabilizada, deve dar um subsídio engraçadito. Além do mais, um sector que reclama para si a pujança de que o turismo algarvio se gaba, não precisa de ajudas. Estará é (felizmente), muito pelo contrário, em posição de estender uma solidária mão de ajuda à região em que se insere. Ou será que, na verdade, não há é cobras que cheguem para tanto vendedor da sua banha? Talvez o problema esteja na confusão entre receitas e desenvolvimento económico. O Algarve realmente gera receita turística. Mas, a julgar pelos restantes indicadores da região, essa receita não se converte em investimento no pleno desenvolvimento da região – economicamente blasfemando, e com a liberdade artística que a ignorância desculpa, há aqui uma deriva da curva de Lorenz para longe da recta. Talvez porque o modelo vigente, que permite ao turismo colocar-se pairando, qual deus no seu Olimpo, acima da região, seja precisamente o busílis da questão. Enquanto a região apenas interessar e fizer sentido como consumível do turismo, e não o contrário, leia-se o turismo como mais uma de muitas actividades ao serviço do progresso da região, a porca não arredará pata das couves. E talvez por isso o Estado não invista realmente no Algarve, e onde devia. Se gera a fartazana de graveto que alardeia, para quê investir na adaptação do sector primário de modo a torná-lo atractivo e a servir de base de suporte ao abastecimento regional? No Algarve até ofenderá comer algo não importado! Para quê investir nos transportes públicos de modo a permitir a mobilidade física que potencia a mobilidade social? Passes e autocarros são coisa de gente pobre, e os algarvios têm todos um Ferrari à porta – de tal modo que bom mesmo é sangrá-los com as portagens na Via do Infante! Para quê investir nos equipamentos de saúde, se toda a gente a Sul tem médico particular? Para quê perder tempo e dinheiro a investir na criação de condições atraentes para a fixação de investimentos em sectores económicos reprodutivos, menos dependentes dos humores e caprichos alheios, se todos nadam, quais Tios Patinhas, em piscinas de carcanhol? No meio de tanto talvez, uma certeza: não vivemos no El Dorado que o turismo sempre prometeu. Pior. Aos sonhos perdidos juntou-se uma realidade perversa. Porque, justamente, de há muito tempo a esta parte, entrámos num pastoso paradoxo, em que o “nosso” turismo é um corpo estranho, que empurra a identidade do Algarve para a condição de marginal, esmagando e apagando os seus traços característicos, sem espaço ou tempo num tempo de geografia genérica. De tanto querer agradar e fazer sentir em casa, deixamos de ser nós para tentar ser eles. Já o escrevi antes e repito: quanto mais genérico e incaracterístico for o Algarve, mais descartável se tornará. Esta gentrificação de larga escala, que sacrifica e esgota a utilidade dos autóctones no serviço que possam prestar aos alóctones, em breve condenará a alma algarvia a ser mais um Maio, inexpressivo e mudo, na beira da estrada, servindo apenas para decorar e uma ou outra selfie. O turismo é, de facto, uma doença de amor. Mais, viajar ou receber viajantes, conhecer e contactar outras realidades e modos de vida, é viciante. Controlando a sua febre, é um exercício de diálogo, convivência e aprendizagem que propicia o desenvolvimento económico e humano, a evolução e progresso da região. Por isso mesmo, uma vacina. Uma que não nos imunize completamente ao turismo. Mas antes que nos dote dos anticorpos necessários para resistir equilibradamente à sua infecção, sobreviver-lhe, e disso sair mais forte, mais resistente, mais saudável. Porque o que não mata, engorda.
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