A reflexão em torno do tema da descentralização e da regionalização, que tem vindo a ser promovida no Lugar ao Sul, recebe hoje um contributo muito especial. A Inês Morais Pereira, que é pessoa interessada e informada sobre questões de administração e gestão pública, bem como confessa apaixonada pelo Algarve, gentilmente acedeu ao convite para partilhar a sua perspectiva sobre o que pode ser o futuro da região, no âmbito deste processo. Fogo à peça, Inês. E obrigado. Gonçalo Duarte Gomes Por Inês Morais Pereira Estas linhas versam sobre uma temática verdadeiramente apaixonante: descentralização de competências/regionalização. No Algarve todos sabemos a regionalização desperta confessados amores e renegadas desconfianças. Declaração de princípio: não sou, por ora, uma entusiasta da regionalização. E não o sou, porque não creio que a regionalização seja a varinha mágica que resolverá todos os problemas, falências e carências do Algarve e dos algarvios, ao contrário do que muitos políticos e opinion makers querem fazer crer. Sim, o Algarve é uma região, potencialmente, com condições favoráveis e convergências para a implementação de uma região administrativa. Como afirmou o Eng. João Cravinho (que liderou a Comissão Independente para a Descentralização) numa conferência promovida em Faro a propósito desta matéria, “não há questões de mapa, sabe-se onde termina o Algarve e há uma identidade histórica. Depois, as distâncias não são grandes e não há montanhas a afastar as pessoas”. Tudo isso é verdade, mas o Algarve é também um território cuja monocultura económica alicerçada há muito no turismo e atividades relacionadas o torna pouco resiliente, com um inquietante enquadramento laboral com caraterísticas sazonais acentuadas, com debilidades várias ao nível da mobilidade, com questões preocupantes na área da saúde só para nomear alguns dos problemas sérios com os quais a região se debate. Ainda assim o Algarve também consegue mobilizar-se em torno de boas causas. Exemplo disso são o Programa cultural 365 Algarve que tem conseguido mostrar, e bem, o outro Algarve, denotando que a região tem muito mais para oferecer que apenas o tão conhecido e apetecível binómio sol e mar e a mais recente candidatura de Faro a Capital Europeia da Cultura 2027. E se recuarmos 4 décadas lembrar-nos-emos da génese da implementação da Universidade do Algarve. Contudo, o Algarve é também, lamentavelmente, um território que ainda não conseguiu capitalizar a conveniente massa crítica e união em torno de pilares estruturantes que uma Região, digna desse nome, necessita. Uma leitura atenta do Relatório da Comissão Independente para a Descentralização, um documento de mais de 350 páginas, disponível aqui, fruto do envolvimento e participação de várias individualidades e entidades, que traça um aprofundado enquadramento para a análise da problemática em questão é um excelente ponto de partida para quem queira tomar posição sustentada sobre estas matérias. Como sabemos para haver política pública propriamente dita, é necessário, em primeiro lugar, que o tema objeto dessa mesma política pública esteja na agenda. Posto isto, consegue o Algarve colocar o tema da regionalização na agenda política? Sabemos por um lado que o atual Presidente da República não é um aficionado da regionalização e que por outro, está em curso um processo de descentralização de competências visto por muitos municípios com reservas várias. Nos dias 24 e 25 de janeiro, em Portimão, realizou-se o XVII Congresso Nacional da ANAFRE – Associação Nacional de Freguesias, com a presença do Primeiro-Ministro e da Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública. A descentralização administrativa é uma pedra angular do poder autarca. Destarte, as autarquias têm que estar à altura do exercício dessas competências. Fará sentido continuarmos a ter municípios e freguesias subdimensionados face à realidade social e económica do país, num mundo em constante mudança tecnológica? Fará sentido ter equipas autárquicas a trabalhar num paradigma esgotado e ultrapassado? Fará sentido os cidadãos continuarem a ser prejudicados na prestação de serviços públicos fundamentais em condições de eficácia, eficiência e equidade, para manter um status quo que a poucos beneficia? Não falo de reformas como a operada no âmbito da extinção de freguesias levada a cabo pelo Ministro Miguel Relvas em 2013 que, como recentemente foi evidenciado por um estudo académico, não trouxe poupanças significativas, nem uma melhor prestação de serviço público. Há contudo um bom exemplo de reorganização administrativa recente, ocorrida em Lisboa, em 2012, com o seu atual mapa de freguesias, assente no princípio de subsidiariedade, que dotou as mesmas de escala e recursos para concretizarem um conjunto de competências. Esta reforma, de iniciativa local, também vingou porque foi participada e porque os diversos stakeholders foram envolvidos. Apesar dos bairrismos tão caraterísticos e sobejamente conhecidos, os fregueses lisboetas viram naquela reforma a expetativa de efetiva melhoria da prestação do serviço público. Propugno que o processo de descentralização de competências que agora ocorre pode ser aproveitado no Algarve para operar um conjunto de alterações necessárias e incontornáveis, as quais podem ser o alicerce para um melhor desempenho da região como um todo e consubstanciadoras de um enquadramento, esse sim, mais propício para uma potencial implementação de regiões administrativas. E porque sim, acredito que o Algarve não precisa de ser uma região-piloto (como muitos advogam apesar de não ter qualquer acolhimento constitucional) para ser materialmente uma região de referência. Basta que cada entidade na medida do seu quadro de atuação cumpra o seu papel. E sim, isso significa que a AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve comece a atuar como tal e não como a soma de 16 municípios que se reúnem mensalmente. E que todos os serviços e organismos periféricos e desconcentrados da administração do Estado sejam dotados de trabalhadores capacitados e motivados, que trabalhem em Rede em prol de um serviço público de qualidade e adequado às necessidades dos cidadãos. E que a CCDR – Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional intensifique a sua ação no sentido de aprofundar a coesão, a competitividade e a equidade e reforce a sua intervenção em domínios estruturantes do ponto de vista regional. E que a Universidade do Algarve se afirme como polo académico de investigação das dinâmicas de desenvolvimento territorial. Creio que o novo quadro de descentralização administrativa exige soluções inovadoras que podem ser testadas e replicadas, e que passam por dinâmicas de colaboração e cooperação que permitam, mormente, a partilha de recursos, boas práticas e conhecimento e que valorizem a formulação e implementação de políticas públicas mais ajustadas à diversidade territorial existente e aos desafios hodiernos. Realço o papel fulcral da participação cívica individualmente considerada e das associações e movimentos de cidadãos enquanto agregadores de interesses legítimos, como aliás ficou bem patente a propósito da exploração de petróleo na costa algarvia e que é conveniente aconteça agora também a propósito do tema das alterações climáticas, mormente no que respeita ao uso racional dos (escassos) recursos hídricos da região porque temas com esta seriedade e impacto não podem, nem devem, ser deixados, única e exclusivamente na mão dos decisores políticos. Quem é algarvio/a, seja por nascença, seja “por adoção”, oriundo de Faro, Portimão, Olhão, Lagos, Tavira, Vila do Bispo, Albufeira, Castro Marim, Loulé, Alcoutim, Monchique, Aljezur, Silves, Lagoa, São Brás de Alportel ou Vila Real de Santo António, sabe que quando perguntado de onde é, responde invariavelmente que é do Algarve. Se esta pertença identitária acontece naturalmente quando estamos em Lisboa, no resto do País ou no estrangeiro, seria desejável que esse mesmo sentimento fosse vocacionado, de forma organizada, na abordagem a tantas e tantas questões que nos dizem respeito e que têm impacto no nosso dia-a-dia e para as quais todo o nosso contributo é essencial. Em jeito de nota final, atentemos que o mais importante é que todos e em primeiro lugar os cidadãos destinatários primeiros de uma reforma administrativa tomem consciência de que esta deve ser pensada, estruturada, analisada, implementada, monitorizada e avaliada de molde a melhorar o processo de tomada de decisão, a participação, a governação e a qualidade das decisões públicas e neste campo cabe promover continuadamente o debate sobre estes assuntos. E sim, as opções nesta matéria são estratégicas, com impacto também na credibilização e confiança no sistema político e democrático e consubstanciam a visão de Estado e Administração que queremos. Inês Morais Pereira, servidora pública por convicção, apaixonada pelo Algarve, a caminho dos 40 anos, licenciada pela Faculdade de Direito de Lisboa e a preparar tese na área da Gestão e Políticas Públicas. Pós-Graduada em Administração e Desenvolvimento Regional pela Faculdade de Economia da Universidade do Algarve, fez também a parte curricular do Doutoramento em Gestão e Inovação do Território na mesma Faculdade. Exerceu advocacia e foi Presidente da CIVIS – Associação para o Aprofundamento da Cidadania. Mais recentemente ingressou na Administração Pública, sendo diplomada do Curso de Estudos Avançados em Gestão Pública do INA. Exerce atualmente funções no Centro de Competências Jurídicas do Estado – JurisAPP.
Adora viajar, fotografia e fazer petiscos para os amigos. Com raízes transmontanas, divide a sua vida entre Lisboa e o Algarve e tem a certeza que gozará a merecida reforma numa casa com vista para a bela Ria Formosa. Sempre que pode gosta de escrever, o que já fez inclusivamente e com muito gosto para o jornal regional online Sul Informação. Entusiasta do debate sobre a res publica, ter sido convidada para escrever no Lugar ao Sul pelo Gonçalo Duarte Gomes foi encarado como um verdadeiro desafio. E os desafios são o que a move!
1 Comment
Miguel
7/2/2020 15:54:17
Óptima reflexão sobre um tema central para o futuro do Algarve.
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