Por Gonçalo Duarte Gomes Ninguém vive sem conceder ao irracional, ao inexplicável. Pode não ser sempre. Pode mesmo ser quase nunca. Mas, quer lhe chamemos fé, paixão ou mero escapismo, está lá, bem fundo, e emerge, mesmo que em, e por, momentos fugazes. Este é um desses raros momentos de concessão. Por isso, apelando à indulgência, falo hoje de futebol, utilizando-o mais como pretexto do que fim em si mesmo. Porque do ilógico também se extrai raciocínio. Começo pela obrigatória declaração de interesses: sou inabalável sportinguista, e este título, por razões objectivas e de contexto, deixa-me muito feliz, apenas por "nós", enquanto comunidade abstracta, tribo ligada nestes estranhos, intangíveis e frágeis laços de afinidade que unem perfeitos estranhos – o Desmond Morris decifra. Ninguém perdeu, fomos apenas “nós” que ganhámos – o que imediatamente introduz a dívida de glória aos vencedores, mas sem que se possa negligenciar a merecida honra aos vencidos. Existe algo de mágico no futebol. E existe e subsiste, mesmo no futebol que o negócio desalmadamente roubou ao desporto e que, eventualmente, irá matar. Para já, no meio de tanta artificialidade e materialismo, há ainda espaço para a magia das grandes histórias. Histórias de superação, histórias de inconformismo, histórias de não aceitar o peso da História, histórias de vencer as probabilidades. Histórias, no fundo, de acreditar. Que são aquelas que nos encantam. Histórias que se contam com coisas simples. A minha conta-se com este cartão, datado de 1980. O Sporting Clube de Portugal está presente na minha vida desde o início. Por casualidade. Faz parte de mim porque integra a minha circunstância – parece que assim me torno explicável pelo Ortega y Gasset. Por sorte, digo eu. Porque, pelas mais sinuosas e obscuras vias, sinto que ganhei, ao longo da vida, com os valores do ecletismo, com a ousadia de que, sonhando, devemos almejar ser tão grandes como os maiores, com a ideia de que esforço, dedicação e devoção são os pilares sobre os quais assenta a glória. Ou então foi "apenas" a educação que me foi dada pelos meus pais, e apenas estou a projectar. Seja como for, compõe a narrativa. Outros terão os seus referenciais, nem melhores, nem piores, apenas diferentes. Explicações? Não há. Não são necessárias. Não são sequer desejáveis. Caso contrário, escapar-nos-ia o sortilégio que fez com que ontem, corações jovens – que me perdoem os menos jovens – batessem mais rápido e se enchessem de alegria. Tal como havia acontecido no dia 14 de Maio de 2000, quando foi interrompido um outro longo jejum de campeonatos nacionais de futebol masculino. Também aí vibraram, com plena paixão, crianças e jovens de tenra idade, sem memória de glória ou de conquista, perante a incompreensão de muitos – se são as vitórias o único alimento da grandeza, de onde vem então tal fervor? Não há explicações. Não são necessárias. Não são sequer desejáveis. Porque precisamos de deslumbramento. De rasgo. De crença. E, depois, de determinação para fazer acontecer. E é por isso que nos cativam as lágrimas do Dário Essugo, um menino que aos 16 anos chorou de alegria por entrar em campo com os seus ídolos, enquanto seu par, ilustrando na perfeição o que Bill Shankly queria dizer, ao afirmar que o futebol não é uma questão de vida ou de morte, mas algo muito mais sério! É por isso que lembramos Maria José Valério e a sua paixão inspiradora por este clube. É por isso que olhamos com admiração para a abnegação de Sebastián Coates que, contra o descrédito generalizado que sobre si pendia, chamou a si a liderança, e tornou-se herói e personificação de uma equipa à qual tudo pesava como lastro: o passado longínquo e recente, a longa e densa sombra projectada por Alcochete, o presidente, a juventude da equipa, o preço e inexperiência do treinador (devo-lhe aqui, também eu, um pedido de desculpa), os incomparavelmente superiores investimentos dos rivais, entre outros “pesos”. Com tudo a provar e margem nula para errar, partindo de trás, e contra todas as expectativas, esta equipa vingou. Mas e para que serve afinal tudo isto? É que, ultrapassada a euforia desta distracção, a vida continua. E o mundo real aí está, o país real aí continua, com todos os seus inúmeros e graves problemas, que continuam por resolver. Momentos como o de ontem não recuperam o que mais de um ano de pandemia destruiu para tanta gente, não saram a dor da saudade dos tantos que perderam entes queridos, não acabam com as carências de tanta gente, não matam a fome, não sanam desigualdades ou injustiças, não apagam a corrupção que nos tolhe o futuro. Mas servem para aquilo que a magia serve: para inspirar, fazer acreditar, motivar. Para transpor para o mundo real o que neste mundo de fantasia valorizamos. Concretamente, transponhamos para o mundo real a paixão, intensidade e, acima de tudo exigência. É mais difícil e penoso, bem se sabe. Mas fundamental. Portanto, sem tirar os olhos do elementar, festejemos. Fiéis da fé, pagãos e ateus, todos em conjunto – a alegria serve apenas para partilhar e unir, e nunca para apartar. E logo de seguida, voltemos a lançar mão à obra. Olhando uns para os outros tendo em mente o que disse Rúben Amorim na sua chegada ao Sporting: “perguntam-me, e se corre mal? Eu faço a pergunta: e se corre bem? O que nós podemos mexer com esta gente? O que esta gente precisa?”. Na vida como no futebol, é no final que se fazem as contas, e só é derrotado quem nem sequer tenta. P.S. – as tristes cenas que acabam por macular os festejos populares do título em Lisboa revelam tensões que não podem, por muito mais tempo, ser negligenciadas. Não me compete, nem consigo, analisar com total propriedade, as reais causas ou dimensões do que se passou. No actual momento desta crise colectiva que atravessamos, as pessoas precisam de extravasar alegrias (sportinguistas ainda mais!) e ter alguma perspectiva de recuperação de uma normalidade afectiva e social, para lá de visões puramente distópicas da sociedade, que o “novo normal” parece querer impor. As forças de segurança cumpriram o papel que lhes foi ingratamente atribuído, com os seus homens e mulheres inseridos num contexto de elevado risco, exposição, dificuldade e nervosismo, a que se junta um já elevado grau de saturação, porque são também pessoas, a atravessar o mesmo que todas as outras. Talvez excesso de zelo e défice de responsabilidade, de parte a parte, consigam explicar aquilo a que ontem se assistiu. Para que não fiquemos entregues à adivinhação, aqui também era importante haver esclarecimentos, e não apenas a magia da omissão, a que já vimos sendo habituados.
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