Por Gonçalo Duarte Gomes Morreu esta semana Quino, genial cartoonista argentino que deixou órfã a sua mais conhecida filha, a inquieta e reivindicativa Mafalda, que desenhou durante cerca de uma década, e que se afirmou como um ícone cultural e político. Eu não sou do tempo da Mafalda. Ela nasceu quase a meio da década de 60 do século passado, e eu só me juntei a ela no mundo uma arroba de anos depois. E só muito depois disso a conheci. Mas aprendi imenso com ela. A Mafalda, na inocência aguerrida da sua ficcional meia dúzia de anos de idade, e no fervor arrebatador da afirmação da sua ética humanista e feminista, discutiu as grandes questões do seu tempo, do mundo e da sua Argentina. Guerras e tensões políticas e sociais, degradação ambiental, desumanização da sociedade, hipocrisia, desigualdades, organização e funcionamento do Estado (o facto da sua tartaruga se chamar Burocracia diz muito), corrupção e nacionalismos foram temas fortes, por entre reflexões – ou aflições – em torno de uma democracia conturbada, em cujo horizonte se desenhava a depois concretizada ameaça de uma ditadura. E, claro, o assunto mais fracturante de todos: a sua aversão à sopa! Ora as questões do meu tempo, que é o nosso tempo agora, são outras: guerras e tensões políticas e sociais, degradação ambiental, desumanização da sociedade, hipocrisia, desigualdades, organização e funcionamento do Estado, corrupção e nacionalismos, por entre as convulsões de democracias que não parecem ter respostas para a emergência de autoritarismos de natureza e espectro político variado e que se precipitam para distopias que embora imaginadas, nunca pareceram concebíveis. Bem vistas as coisas, a Mafalda não tem tempo nem idade. Tal como a consciência. Esta semana também, no passado dia 1, o Lugar ao Sul assinalou o 4.º aniversário desde que os seus residentes assentaram arraiais neste espaço sem geografia. Desde Outubro de 2016 que este espaço virtual é partilhado por pessoas de diferentes formações, profissões, actividades públicas e interesses, que aqui se juntam para em conjunto reflectir sobre o Algarve e o seu futuro. Num espaço livre e plural – que bom é poder não concordar! – e que funciona como tribuna que se abre para vozes que de outra forma dificilmente chegariam à praça pública. Pensar o Algarve não é fácil. Pensar no Algarve muito menos. Porque é uma região complexa. Porque é uma região pequena, onde quem diz o que pensa se expõe em circuitos muito curtos e pouco dinâmicos, com fraquíssima taxa de renovação, em que a cultura democrática é, apesar de tudo, incipiente, e onde discordar é antagonizar e não apenas... discordar. Porque é uma região que, mais do que província, se mantém, em muitos aspectos, inexplicavelmente provinciana, no que isso de menos bom implica, com visões ultrapassadas, e que ultrapassadas se inscrevem nas pessoas e na paisagem. Não por atavismo ou falta de capacidade de se arrancar dessa condição, mas por falta de rasgo para o tentar. Condicionada falta de fé, de acreditar. Para depois se mobilizar e conseguir. A antítese da Mafalda, portanto. Porque a Mafalda, com o seu olhar e pensamento crítico sobre o mundo e as pessoas foi, e é, toda uma escola de lutadora cidadania, ingenuamente acutilante, ambiciosamente sonhadora e corajosamente desassombrada.
Num tempo em que os muros do extremismo, da intolerância e do medo cercam as pessoas, isolando-as, em que a falsa promessa de segurança abafa a liberdade, em que a normalização e a higienização – muitas vezes em nome da diferença – purgam espontaneidade e diversidade, aumentando o desafio de tentar pensar abertamente, gosto de imaginar que, se a Mafalda fosse algarvia... teria gosto em fazer parte do Lugar ao Sul. E que aqui ajudaria, não obstante a modéstia deste espaço, a mostrar que o Algarve é capaz de (se) pensar!
1 Comment
Miguel
3/10/2020 10:19:19
Tal como você, também descobri a Mafalda um bom tempo após o seu nascimento, já ela seria "trintona".
Reply
Leave a Reply. |
Visite-nos no
Categorias
All
Arquivo
October 2021
Parceiro
|