Por Gonçalo Duarte Gomes Nestes tempos difíceis – e ainda só vamos com uma semana de reclusão – não são raras as alusões ao Apocalipse. Soa bastante dramático, ainda por cima quando, ao fim de tão pouco tempo – e quando se adivinha que tanto tempo difícil está à nossa frente – parecem os poetas, gurus da auto-ajuda e engraçadinhos de WhatsApp e demais redes sociais estar a queimar já todos os cartuchos, sejam eles palavras bonitas, frases inspiradoras ou piadolas em vídeo. Principalmente agora, que começamos a ter as primeiras vítimas nacionais para lamentar, é quando mais precisamos de manter a calma, o ânimo e, já agora, aproveitar para fazer alguma introspecção e colocar as coisas em perspectiva. Para isso, recorro a outro livro bíblico, no caso o Evangelho segundo Lucas, concretamente a parábola do filho pródigo (Lucas 15: 11-32). Segundo este relato, Jesus terá, perante a acusação de partilhar a mesa com pecadores, contado um conjunto de três parábolas, a última das quais acerca de um filho que, depois de estoirar a sua parte da herança cobrada em vida a seu pai, a casa torna, desgraçado e miserável, em busca de ajuda. De acordo com a história, e ao fim de várias peripécias, o progenitor terá perdoado o filho arrependido, acolhendo-o com um amor imaculado. Nesta nossa relação com o COVID-19, vejo como que uma versão enviesada desta parábola, mas em que somos nós os pais pródigos, esbanjadores, que se confrontam com um filho, no caso virulento, que não sabemos bem como nos vai tratar no final… O COVID-19 é um vírus que aparenta primar pela correcção ambiental.
Muito rapidamente conseguiu reduzir as emissões de CO2 para a atmosfera e irá, provavelmente, provocar a primeira contracção na procura de petróleo desde há mais de 10 anos, realizando aquilo décadas de política internacional e consciencialização não foram capazes de alcançar, e que se julgava mesmo impossível. Greta, vê e aprende, caté choras dozólhes… No caso do Algarve, este período até “trouxe” uma chuva que – aguardamos para ver – poderá mitigar o estado crítico de seca em que a região se encontra. A ver vamos também o que resultará deste novo balanço, entre a folga que a ausência do pico de consumo causado pela procura turística origina nos nossos recursos hídricos e o aumento dos gastos domésticos e das necessárias medidas de higiene. No entanto, numa perspectiva mais abrangente, a génese do COVID-19 poderá estar precisamente associada aos desequilíbrios provocados pelo nosso voraz modelo global de consumo de recursos. O que desconhecemos da Natureza ultrapassa largamente o que conhecemos, algo difícil de assumir num tempo de renovadas Luzes. Vai daí, quando perturbamos, de forma abrangente e profunda os equilíbrios dinâmicos (e muitas vezes frágeis) que permitem ao planeta funcionar – sempre numa perspectiva antropocêntrica, claro está, porque o terceiro calhau a contar do Sol é, em boa verdade, indiferente à nossa presença, tal como à de tantas outras espécies entretanto surgidas e já esquecidas – fazemo-lo com a elegância e delicadeza de um elefante numa loja de porcelana, com a agravante de estar vendado. Não porque não tenhamos capacidade de nos munir de conhecimento, mas fundamentalmente porque não investimos tempo ou meios suficientes para permitir aos ramos da Ciência que se dedicam a tais estudos acompanhar o ritmo alucinante do tal consumo de recursos planetários. Vai um bom exemplo? O trabalho do Miguel Bastos Araújo, biogeógrafo laureado com o Prémio Pessoa, que conseguiu, entre outras coisas e simplificando muito a coisa, caracterizar o nicho ecológico do SARS-CoV-2 e utilizar essa informação para prever possíveis adequações climáticas ao redor do Mundo, para desenvolvimento do vírus (ver aqui). Além disso, desconsideramos todas as indicações que não validem as conclusões necessárias à manutenção do status quo. Várias linhas de investigação têm demonstrado que, ao desequilibrar dramaticamente ecossistemas, por vezes com impactos bio regionais, continentais ou globais, potenciamos não “apenas” o desaparecimento de espécies ou processos ecológicos, mas também a libertação de agentes biológicos potencialmente nocivos para a espécie humana (não apenas vírus, como este ou o bem conhecido Ébola, mas outros elementos patogénicos), que eram mantidos em equilíbrio, ou simplesmente confinados, pelas espécies, condições ou processos ecológicos (de controlo) entretanto desaparecidos. Karma planetário, bitches, como que a provar que Lovelock, e a sua teoria de Gaia, estava certo. Junte-se a isso o facto de alegremente brincarmos aos deuses através da manipulação em laboratório – para fins que não medicinais – desses agentes, e temos um potencial tremendo para que algo, ou tudo, corra muito mal. Embrulhando tudo isto na profunda ganância autofágica que globalmente caracteriza os nossos tempos e na constante desumanização da nossa sociedade, em que os indivíduos são cada vez mais números inseridos numa amálgama indistinta – num paradoxal ponto de convergência entre modelos capitalistas e marxistas – temos então um lindo presente para oferecer ao nosso futuro. Não acredito grandemente que aprendamos algo com este período de aflição, em que tanto do que tínhamos como certezas absolutas é colocado em causa. Mas, tal como Thomas More em relação à descrição da República de Utopia por Rafael de Hitlodeu, desejo-o ainda que o não esperando. Idas e esquecidas as dificuldades, que não se inicie uma renovada e quiçá ainda mais desenfreada corrida à repetição dos erros, e que o indubitável drama económico e social que esta crise vai provocar não sirva de maquiavélico fim que justifica os meios. Não esqueçamos que estamos a perder vidas – não obstante o heróico esforço dos profissionais de saúde – e estamos reféns do medo, presos numa realidade distópica – quebrada por outros tantos heróis nas cadeias de abastecimento, nas produções, na recolha do lixo, entre tantos outros anónimos serviços de retaguarda – que as gerações mais recentes consideravam inimagináveis, excepto no argumento de uma qualquer série de ficção. Que isto se inscreva em nós, para que depois pensemos se queremos ser o escroque que açambarca o papel higiénico e tudo o resto para privar os demais ou revender de forma criminosa, ou se preferimos ser quem cuida dos mais frágeis e canta à janela para animar e confortar o próximo. O Algarve, à sua escala, tem muitas lições a tirar de tudo isto, assim o queira. E o tempo de pensar nisso... foi ontem.
1 Comment
Miguel
21/3/2020 13:00:26
Esperemos que no meio desta distopia tornada real, aprendamos de facto algumas lições, espero e desejo, mas duvido que assim seja, pelo menos ao ritmo e dimensão que seriam necessários, será sem duvida a população que teria de tomar essa decisão através do voto, da cidadania, porque os lideres de hoje não estão preparados para mais nada (salvos raras excepções) a não ser serem meros gestores e contabilistas.
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