Por Nuno Beja (convidado) No Dia da Europa o Lugar ao Sul recebe um convidado especial com um texto inspirador sobre os tempos em que vivemos e sobre o futuro. Convidei o Nuno Beja a publicar este texto que é também sobre a condição humana. Boas leituras. (Bruno Inácio) Sobre o Nuno Beja, na primeira pessoa "Sou um moço que veio de Coimbra para os confins do reino (sim, para a malta lá de cima, "os Algarves", na altura dos noventas, eram muito, muito longe!) e estive a trabalhar como arqueólogo na Ualg e no Museu Municipal de Faro durante uns bons anos, até que a paixão pelas coisas das artes, mais concretamente do cinema (que me levou a integrar durante uns anos o Mítico! Cineclube de Faro) da música, do teatro, e o pilar disto tudo, a cultura na educação, falaram muito alto e levaram-me a deixar os "cacos" e a integrar a equipa da Divisão de Cultura da CM Faro onde adoro estar e trabalhar." O texto de Nuno Beja O que é o tempo? Um mistério: é imaterial e omnipotente. É uma condição do mundo exterior; é um movimento ligado e mesclado à existência dos corpos no espaço e à sua marcha. Mas deixaria de haver tempo se não houvesse movimento? Não haveria movimento sem o tempo? É inútil perguntar. Olhou o relógio de ouro, com tampa de mola e monograma, que, nessa solidão desolada, continuava a tiquetaquear, viva e lentamente, semelhante ao seu coração, o comovente coração humano a pulsar no calor orgânico do tórax... Thomas Mann, “A Montanha Mágica” Sonhar o sonho impossível, Sofrer a angústia implacável, Pisar onde os bravos não ousam, Reparar o mal irreparável, Amar um amor casto à distância, Enfrentar o inimigo invencível, Tentar quando as forças se esvaem, Alcançar a estrela inatingível: Essa é a minha busca. Miguel de Cervantes, “D. Quixote de La Mancha” Coragem, Esperança, Beleza e Liberdade! Voltámos a abraçar-nos! Timidamente, mas já nos conseguimos abraçar. Lembram-se? lembram-se daquele tempo, daquele ano de 2020 em que o outro era sinal de perigo? Em que todos os nossos alarmes de medo nos invadiam? O medo…Sim, pela primeira vez na vida tivemos medo. Medo por nós, pelos nossos filhos, pelos nossos pais, pelos nossos amigos, pelos nossos colegas de trabalho, pelos nossos vizinhos, pelas pessoas que víamos todos os dias no café, na mercearia, no quiosque, na rua… Nunca na vida tínhamos pensado estar em casa três meses seguidos! Sair para ir ao supermercado era de uma angústia quase sufocante, como se nos faltasse o ar ao entrar numa casa sem janelas nem portas! E as outras pessoas…fugir delas como se fossem a própria encarnação do mal. Sim…nunca mais fomos os mesmos, nunca mais a vida foi a mesma. A Europa, melhor, a União Europeia não é a mesma. Ficámos, naquele ano, novamente divididos entre os que estavam no olho do furacão e os outros que se fechavam, erguendo muralhas de palha contra um inimigo invisível. Não foi o nosso melhor momento. Mas que raios! Ainda assim a nossa União foi o melhor que conseguimos fazer em tantos séculos de desunião de nações, impérios hegemónicos e guerras inúteis. Ainda é! a nossa União continua, com algumas fissuras, mas cá continuamos juntos, com muitos a pensar e a agir como se fôssemos todos um só; e somos! Com as nossas identidades, histórias pesadas e outras não tão pesadas, com linguagens diferentes mas únicas na sua riqueza, com os nossos medos, singulares e agora comuns. É verdade! Foi muito difícil. As economias foram depauperadas, o desemprego abundava e subiram aos pódios aqueles que muito vociferavam contra a democracia e a solidariedade e que gostavam de acabar com a nossa União. Não conseguiram! Estamos em nossa casa, juntos, mais unidos que nunca, a cuidar de todos os que ficaram destruídos na luta. Nesta nossa casa, gostávamos que a nossa relação com a Natureza não fosse a mesma que até então tinha sido; já estava a mudar, mas, apesar de ainda termos um longo caminho pela frente, a nossa interação Humano/Natureza não mais será igual; assim como o olhar e a relação com o outro, que é diferente, que não conhecemos; queremos mesmo saber, pensar, quem é, quem são? É o nosso dever, é a nossa condição de seres humanos a viver na mesma casa. Fomos corajosos! Fomos tão corajosos a lutar diariamente contra o mal; fomos tantos a bater à porta de quem estava sozinho, desamparado, a perguntar, a saber a confortar. Foram tantos os que deram a sua vida para que outros vivessem. O que nos resta quando o medo do mal nos invade? O que fica quando um medo até então desconhecido, inconcebível e palpável se torna parte permanente das nossas vidas? O que temos quando a ignorância e a estupidez nos tentam dominar? A esperança e a beleza. Tantos dos nossos artistas, mulheres e homens da cultura estiveram, desde o início, na primeira linha de combate contra a desunião, o desânimo, a depressão, a desesperança. Uma luta sem quartel, levando no estandarte os símbolos da imaginação e da poesia. O mundo mudou. Não mais foi o mesmo. E o que é agora foi fruto das escolhas que então fizemos. Tínhamos, então, ao nosso alcance, dois caminhos que podíamos escolher para o futuro das nossas sociedades: um caminho de desunião onde a vigilância permanente de todos os cidadãos e o seu controlo por meios virtuais se tornaria permanente mesmo após a emergência, levando a totalitarismos; e outro onde a democracia, a formação e informação de todos os cidadãos, tornando-os ativos na defesa de uma sociedade de partilha, de valores, ética e solidariedade, fossem condições essenciais para o futuro. Graças à cultura é às artes, escolhemos o segundo. O mundo mudou. Nós mudámos. Mas trouxemos connosco a coragem, a esperança, e a beleza. Lembram-se? “Hoje o nosso tempo requer leveza, humor, encantamento e poesia. Não é mais a luta do bem contra o mal, representada por Guerra nas Estrelas, mas a utopia da vida bela. Descobrir o instante de beleza que a poesia nos dá, a inspiração que nos lembra que estamos na vida não só para trabalhar, lutar, brigar, mas também para amar, sorrir, dançar, abraçar, sonhar. Vivemos um tempo em que o mais revolucionário é ser poeta.” Marta Porto, “Imaginação. Reinventando a Cultura”. Nuno Beja
1 Comment
Miguel
14/5/2020 10:47:10
Tem toda a razão Nuno, o que seria de nós agora e em outros tempos menos dramáticos se não fosse a beleza das artes, da literatura, de tudo aquilo que nos relembra a condição humana. Que o maior tempo que tenhamos disponível seja utilizado para reflectir sobre isso e que se traduza quiçá, em mudanças que bem precisamos, começa-se frequentemente pelo próprio quintal, cumprimentos!!
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