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Bem-vindo

No Algarve, goste-se ou não, manda a abstenção

1/10/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

​Sim, sim, é mais um texto sobre as recentes eleições autárquicas.

Desculpem lá, mas tem que ser, até para fazer um trio (em conjunto com este texto e estoutro), ou um tripé, que sempre é mais equilibrado.


Antes de mais, gosto sempre de recordar que, nestas coisas de eleições, não havendo fraudes ou falcatruas diversas, nem o cercear do direito de votar, os resultados são sempre bons, e os mais correctos, pois expressam a livre vontade dos que às urnas se dirigem.

Parecendo esta uma coisa simples, parece não entrar em muitas cabeças e estômagos, principalmente derrotados, que não ultrapassam a ignorância e fraco discernimento do povo que, tolo, neles não votou…

A democracia é um exercício de escolha, e não apenas de confirmação dos resultados apriorísticos que cada um desejava.

Portanto, parabéns a todos os eleitos, com votos de bom trabalho, na difícil execução dos mandatos agora conferidos e da pesada responsabilidade depositada sobre os seus ombros.

Mas o que resultou afinal da escolha dos algarvios?

Em termos de resultados, o panorama compôs-se desta forma, nos diferentes órgãos autárquicos (infografias Sul Informação, clicar nas imagens para ampliar):
As análises que desde então têm sido promovidas centram-se, naturalmente, nas mudanças de cor política de algumas autarquias ou na manutenção, reforço ou fragilização de outras.

Isto é compreensível, face à paixão, verdadeiramente clubística (em forma, substância e profundidade ideológica), que se vive em torno dos grandes blocos e interesses partidários. Mais ainda depois da autêntica governamentalização destas eleições autárquicas, em que a democracia local foi instrumentalizada e reduzida à condição de mero prolongamento do poder central, por exemplo com a famosa “bazuca” do Plano de Recuperação e Resiliência a ser acenada como “cenoura” reservada aos concelhos que, bem comportados, se alinhassem com a cor do Governo.

Mas o que é facto é que esse, bem como outros truques de prestidigitação propagandística, teve um único condão: afastar os eleitores.

O Algarve registou o segundo maior nível de abstenção entre os distritos de Portugal continental, com uma preocupante percentagem de 54,15%, atrás apenas do distrito de Setúbal (54,37%) e largamente acima da média nacional, de 46,35%. Dentro da região, e nos extremos da abstenção, Alcoutim destacou-se pela positiva (22,96%) e Loulé pela negativa (59,29%).

Mais, esta tentativa de polarização do voto resultou antes numa redistribuição de votantes, relativamente aos partidos veteranos (clicar nas imagens para ampliar):
Como é possível constatar, os ganhos de eleitores acontecem no PAN, nos movimentos de cidadãos (muitos deles com antigos responsáveis partidários à cabeça) e no grupo que engloba o CDS-PP e coligações (sem PSD), ao que não será alheio o que aconteceu em Portimão.

Junta-se a este quadro o resultado do estreante Chega, que conseguiu tornar-se a 4.ª força mais votada na região.

No entanto, pese embora a busca por uma maior diversidade na representação, nem novas nem velhas propostas foram capazes de atrair mais eleitores às urnas, relativamente às Autárquicas de 2017.

Na noite das eleições, quase todas as forças e candidatos perdem algum tempo a verter algumas lágrimas sobre o fenómeno da abstenção. Mas, iniciado o frenesim de reclamação universal de vitórias – grandes, pequenas, de Pirro e até… as que não o são – a coisa está esquecida, tornando-se no não-assunto preferido das oligarquias.

A principal utilidade da abstenção reduz-se à de uma zona cinzenta, onde muitos, iludidos, gostam de pôr a pastar bodes expiatórios – “se os abstencionistas tivessem votado, ganhava!” – ou agregar uma fatia crescente do eleitorado sob um atestado de menoridade e/ou irresponsabilidade.

Opta-se assim por ignorar que a abstenção é a sombra onde cresce a insatisfação com o esvaziamento moral da política, com o distanciamento entre os interesses dos partidos e os interesses das populações, com a sensação de que a voz dos cidadãos é ignorada, de que tudo se decide a outro nível, onde se esquecem as pessoas, os desfavorecidos, onde se agrupam os desencantados e os esquecidos pelo sistema que diz não deixar ninguém para trás, os que já perceberam que nunca lhes tocará a vez no elevador social. E é, principalmente, o substrato ideal onde medra o desespero que alimenta os extremismos (muitos dos quais já despontam, constando mesmo dos boletins de voto), à espera de canais adequados que, surgindo e servindo para dar voz à desesperança, nunca servirão nada excepto o caos e o oportunismo que a acompanha.

Entretanto, e porque o erro mora sempre nos outros, lá seguimos com o doce optimismo de Pangloss: “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”.

Até daqui a 4 anos.

P.S. - O Lugar ao Sul faz hoje 5 anos. Ao fim deste tempo, e como costumo dizer, continua a não dar dinheiro, a requerer tempo e esforço, e ainda nos expõe e sujeita à azia alheia. Tudo isto num tempo em que valores como o diálogo, a tolerância ou o respeito na discordância se encontram em profunda crise.  
No entanto, não altero a perspectiva de que, na sua reduzida dimensão, tem dado um contributo para a promoção e organização do pensamento em torno de uma região que se quer cada vez melhor, mais equilibrada e mais feliz.
Só por isso, continua a valer a pena!
Parabéns a nós e obrigado a todos vós.
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Dia de reflexão

24/9/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Cumpre-se amanhã o dia de reflexão que antecede a ida às urnas dos cidadãos, para depósito dos três boletins de votos que ditarão a escolha das pessoas que orientarão os destinos dos municípios portugueses, durante os próximos quatro anos.

O dia de reflexão serve para as pessoas terem um descanso da barrigada de promessas que o período eleitoral traz, permitindo a sua digestão, com calma, num período de trégua. Ora, face aos novos tempos, em que os canais de comunicação proliferam e operam com frenesim, 24 sobre 24 horas, são pessoais, personalizados e (quase) intransmissíveis e, acima de tudo, chegam a tudo e todos, estamos perante um arcaísmo eleitoral.

Mas a obsolescência do dia de reflexão corre cada vez mais o risco de ter uma outra faceta. Porque, num dia em que terminam as duas semanas de campanha (pelo menos oficial, porque nos meses antes, a campanha que se fazia era uma não-campanha), será que o esforço dos candidatos, e o conteúdo dos respectivos programas, deixa alguma semente de pensamento nos eleitores, merecedora de qualquer reflexão?

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No Algarve, são 16 os Municípios que vão a votos, numa região que, embora raramente fale internamente, só faz sentido se entendida como um conjunto.

Numa percepção – e apenas isso – muito pessoal, fica a sensação de que as preocupações para estas eleições autárquicas não passaram por uma discussão real de futuro. Esgrimiram-se ofertas para tentar seduzir votos, mas sempre, e apenas, centradas nos “umbigos” municipais.

Talvez deve ser assim, e nada mais do que assim. Provavelmente, uma discussão em termos mais alargados diria muito pouco aos eleitores de cada cubículo camarário.

Mas fica sempre a sensação de que estes momentos são oportunidades perdidas para construir um pensamento mais articulado na região, num adiamento perpétuo de uma conversa que, inevitavelmente, terá que ocorrer. Seria bom que fosse feita entre candidatos, cujo pensamento e discurso é sempre muito mais aberto do que depois, já convertidos em titulares de cargos decisórios, com toda a carga de responsabilidade e compromisso que implicam.

Numa insatisfação novamente muito pessoal, fica a ideia de questões como a paisagem e os desafios que sintetiza (desde a água ao ordenamento do território, passando pela habitação, gestão de risco ou economia) terem estado completamente ausentes.

Podem até ter marcado presença no discurso, mas sem real substância. Porque isso significaria pensar cada município na relação com os restantes.

Como se fala de adaptação às alterações climáticas, sem pensar as estruturas biofísicas no seu todo, percebendo que a ribeira que aqui desagua pode atravessar dois ou três concelhos a montante? Como se pode contribuir para a gestão da ocupação litoral, se municípios vizinhos não articulam opções que façam sentido no quadro das dinâmicas dos troços litorais? Como se pensa a revitalização dos territórios interiores sem abarcar a totalidade dos montes e vales que perfazem uma serra, espartilhando o pensamento na artificialidade dos limites administrativos? Como se discute a mobilidade sem juntar à mesa origens, destinos e percursos intermunicipais, olhando de forma integrada para questões como infra-estruturas, habitação e emprego, em cada um deles e no seu conjunto?

Parece que vamos ter que nos ficar por um “a ver vamos”.

Seja como for, no Domingo votem.

O cardápio tem algo para toda, mas mesmo toda, a gente. Para os que acreditam na candidata fulana ou no candidato sicrano. Para os que, de forma clubística, sempre votaram naquele, para os que querem experimentar o outro.

Tem até solução para os que não acreditam em ninguém ou em nenhum, bastando deixar o boletim em branco.

Só não encontra lá escolha quem não quiser saber do futuro.

​Mas lembre-se depois de que também isso é uma escolha.
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“Quem é tê pai, mê menine?”, ou quem vai afinal a votos?

17/9/2021

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“A eleição municipal a Zé Povinho”, por Raphael Bordallo Pinheiro (1881)
Por Gonçalo Duarte Gomes

Começou esta semana a campanha eleitoral para as próximas eleições autárquicas.

Ou antes, começou oficialmente. Porque, na verdade, já corre há meses. O que muda, então? Não muito, excepto, claro está, a necessária dispensa oficial das pessoas, concretamente dos seus compromissos profissionais, para se poderem dedicar às lides de seduzir e convencer o povo a confiar-lhes o seu voto.

No Algarve, são 16 os Municípios em que se confrontarão opções para a orientação futura das autarquias.

Mas e que afinidade existe entre essas propostas e os anseios das pessoas?

A julgar pela evolução da abstenção em eleições autárquicas, não muita.
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Evolução da taxa de abstenção em eleições autárquicas. (Fonte: Pordata)
Este gráfico ilustra o que tem sido o distanciamento das pessoas face ao voto, mesmo quando este se destina a eleger os titulares dos cargos que mais directamente podem afectar o quotidiano, ao nível da rua de cada um. A nível nacional, a abstenção em 2017 (45%) reduziu ligeiramente face ao acto eleitoral anterior (47%), mas a tendência anterior é de notório crescimento. No Algarve, entre 2013 e 2017, manteve-se constante, nos 52%. Seja a que nível for, é preocupante verificar que praticamente metade das pessoas não querem saber.

Dentro dessa massa de gente, seguramente há muitas razões. Desde as pessoas que confiam plenamente em qualquer candidatura até às que desconfiam igualmente de todas, passando por outras que entendem que os interesses dos partidos – que dominam o cenário eleitoral – não têm nada a ver com os das comunidades ou as que são simplesmente negligentes face a um direito que é simultaneamente um dever.  

Transversal a toda essa panóplia de motivações é a profunda degradação da confiança no processo democrático e nas suas instituições. O que vai causando estragos cada vez mais profundos.

Os partidos ditos tradicionais têm respondido a isto com um encolher de ombros, invertendo um clássico dos rompimentos de relação, e afirmando ao eleitor “o problema não sou eu, és tu”.

Essa soberba é o erro de palmatória que, deixando cada vez mais vazios, tem alimentado fenómenos de populismo e extremismo – em vários quadrantes – que, sem verdadeiro programa ou propostas para além de pegar fogo à tenda (mesmo que queime toda a gente no processo), capitalizam sobre o descontentamento daqueles que são tantas vezes menorizados e desprezados pelo status quo partidário.

E qual a propriedade dessa oligarquia?

Vejamos a representatividade dos partidos com assento na Assembleia da República (o Livre perdeu-a entretanto, com a passagem da deputada Joacine Katar Moreira a não inscrita), confrontada com os resultados das últimas eleições legislativas.
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Nota: a percentagem de "Eleitores votantes em partidos" incorpora já o desvio da abstenção
Este é um exercício muito simples, e sempre relativo, mas que, não obstante a desactualização dos dados referentes ao BE e as lacunas relativas a PAN e Livre (com um apelo ao fornecimento de melhores informações, com indicação de fonte, mas arriscando dizer que os seus números não excederão os dos demais), permite constatar que os partidos não podem, nesta fase, afirmar-se representativos de muito mais, para lá das suas estruturas internas. Mesmo sendo inquestionável que podemos concordar com determinado ideário sem estarmos inscritos na estrutura que o promove, a ausência de filiação nos partidos é significativa.

Isto é relevante mesmo a nível local, onde tantas vezes se diz que interessam mais as pessoas que os partidos, pois os blocos partidários não assumem as autárquicas como um somatório de resultados micro, mas antes como divisões de um resultado macro, lutando de forma encarniçada para alcançarem o estatuto de “maior partido autárquico nacional” – afinal o importante é o partido.

Em certos locais e comunidades no Algarve, mais importante do que a pessoa que se apresenta a outrém, é a filiação parental, exigência materializada pela magnífica expressão – variável consoante seja no interior, litoral, barlavento, sotavento – do “quem é tê pai, mê menine?”

No caso das eleições autárquicas, regra geral, as pessoas que integram as listas são bem conhecidas. Nossos vizinhos, do dia-a-dia. Conhecemo-los. Ainda assim, e talvez para garantir o importante aval do conhecimento de “tê pai”, é certo que hoje em dia os partidos ensaiam cada vez mais a integração de independentes nas suas listas – estas eleições são exemplo disso – mas esse mecanismo tarda em produzir efeitos ao nível da aproximação, seja porque a desconfiança face aos partidos se sobrepõe à confiança nos rostos, seja porque a independência dos independentes não é assim tanta, ou porque não tem peso suficiente face ao restante.

As estruturas partidárias tentam igualmente outras vias, como a composição e/ou enriquecimento dos seus programas com recurso a auscultações directas à população, num exercício em que o equilíbrio entre prós e contras é delicado.

Mas, mesmo assim, parece cavar-se um fosso que nos pode conduzir a cada vez mais poder local, e menos democracia local.

Na noite de 26 de Setembro teremos mais informação. Até lá… é ouvir o que nos propõem.
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De acordo com os Censos, o Algarve é um balão

30/7/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Foram recentemente divulgados os resultados provisórios dos Censos 2021 (aqui), e ficou a saber-se que, a nível nacional, entre 2011 e 2021, das duas únicas regiões (NUTS II) a registar aumento populacional, o Algarve foi líder, com 3,7% de crescimento
(ainda que continue a ser a menos povoada do território continental), deixando a Área Metropolitana de Lisboa, com os seus míseros 1,7%, a milhas!
 
A notícia parece estar a gerar algum entusiasmo, ou pelo menos a causar algum impacto, neste nosso canto. Verdade seja dita, posta assim a coisa, pouco ou nada diz. Estando a silly season mesmo aí à porta, também não interessa grandemente.
 
Mas devia, porque de pouco adianta ter mais gente, se isso servir apenas para diluir a qualidade e acessibilidade aos serviços de interesse geral (ver a potencial importância do tema aqui), já de si profundamente desequilibrada.
 
De qualquer modo, vamos a números.
 
Dos 16 municípios algarvios, 11 aumentaram a sua população, enquanto que 5 perderam. O campeão dos ganhos foi o município de Vila do Bispo (8,8%), com Albufeira (8,2%) e Lagos (7,9%) a completar o pódio. Na ponta oposta da tabela, Alcoutim (-13,6%) liderou as perdas, seguido de Monchique (-9,6%) e Castro Marim (-4,6%). Pelo meio, uma surpreendente – ainda que não muito significativa – perda populacional em Olhão (1,7%). No “top 10” dos crescimentos concelhios a nível nacional, o Algarve conta com 4 representantes: Vila do Bispo (5.º), Albufeira (7.º), Lagos (8.º) e Portimão (9.º, com 7,7%).
 
Desenhado sobre um mapa, o panorama é o seguinte:
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Variação populacional nos Municípios algarvios 2011-2021 (Azul - perda / Salmão - ganho. Fonte: INE)
​Se a distribuição populacional pelos concelhos já revela uma tendência preocupante de perdas populacionais no “interior” (conceito muito relativo no Algarve, em que a distância máxima ao litoral se mede em meia centena de quilómetros) e nas periferias, e um consequente acentuar das assimetrias regionais, interessará ainda mais olhar para o cenário ao nível das freguesias.
 
Aí verificamos que há um esvaziar global do interior algarvio, com as freguesias interiores a apresentarem perdas significativas, conforme ilustrado no mapa seguinte:
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Variação populacional nas freguesias algarvias 2011-2021 (Fonte: INE)
​Recorrendo novamente aos “tops” para tentar ter uma ideia do enquadramento da realidade algarvia no contexto nacional, a região conta com 4 das 10 freguesias de maior crescimento: União de Freguesias de Conceição e Cabanas de Tavira (Concelho de Tavira, em 4.º lugar, com 36,2%), Barão de S. Miguel (Concelho de Vila do Bispo, em 7.º, com 30,6%), Armação de Pêra (Concelho de Silves, em 9.º, com 23,3%) e Luz (Concelho de Lagos, em 10.º, com 22,9%).
 
Em sentido inverso, conta com a 4.ª freguesia que mais perdeu população em Portugal: Giões, Concelho de Alcoutim, com 40,6% de perda populacional. Fora do “top”, mas com números muitíssimo preocupantes, temos também as freguesias de Cachopo (Concelho de Tavira, em 14.º, com perdas de 34,2%) e de Vaqueiros (Concelho de Alcoutim, em 20.º, com perdas de 33,0%).
 
A tabela completa das freguesias algarvias apresenta-se de seguida (incluindo também os municípios, identificados com códigos de 4 algarismos):
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Fonte: INE
​O cenário populacional algarvio, naquilo que foi a sua evolução na última década, é então o de um balão: aumentou o volume, inchou, mas no meio é vazio, tendo apenas ar.
 
O aprofundar das assimetrias da distribuição populacional regional, com o aumento da concentração litoral, vem apenas confirmar uma das doenças demográficas crónicas do Algarve, que é a desumanização das paisagens interiores, maioritariamente associadas a tecidos rurais, social e economicamente deprimidos.
 
Ora, minha gente, sem gente não há gestão de paisagens. E aí, deixamos estas áreas entregues a dinâmicas que podem não ser, do ponto de vista da competitividade, da coesão territorial ou da gestão do risco, as mais agradáveis. Por exemplo, se calhar é mais fácil combater fogos com escolas e centros de saúde em Giões, Odeleite ou Alferce, do que com aviões e bombeiros a arriscar a vida. E mais barato, e mais saudável.
 
Há muito que se fala nisto – houve inclusivamente umas Comissões Técnicas Independentes que até escreveram uns relatórios – mas pouco se tem feito. Ou conseguido fazer, sejamos justos.
 
De caminho, fica também demonstrado que ideias como coesão territorial (perdoem-me a repetição do chavão), reforço da atractividade do interior, e outras coqueluches de oratória, não conseguem passar do papel, e os modelos que realmente se implementam na paisagem, inclinam a região em direcção ao mar. E, mesmo dentro desse modelo, importa perceber que fortes apostas na terciarização (principalmente associadas ao turismo e ao imobiliário para fins turísticos), mesmo em freguesias urbanas, resultam em perdas populacionais (por exemplo, a freguesia de Olhão, com uma perda de 4,7%) e esvaziamento vital – mesmo que o dinheiro circule, não há gente a viver – das próprias urbes.
 
Estas tendências – importa dizê-lo – são muitíssimo mais amplas que o Algarve. A nível nacional, cerca de 50% da população nacional concentra-se em 31 municípios, sendo que a fatia de leão se localiza maioritariamente nas duas principais áreas metropolitanas (Lisboa e Porto).
 
Esta análise, muito simples, carece naturalmente de complemento e ponderação com outros factores e indicadores. Mas, para já, é inequívoco o progressivo e inexorável esvaziar populacional do interior algarvio.
 
É agora necessário saber se queremos fazer algo quanto a isso, se o conseguimos fazer, quando estamos a pensar fazê-lo, e se vamos novamente esperar resultados diferentes da aplicação das mesmíssimas receitas do passado.
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Escapismo urbanístico

16/7/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Olhando a mais recente intervenção de “arte urbana” na Vivenda Vitória, em Olhão, é impossível não experimentar sentimentos mistos, oscilando entre a admiração e o lamento.

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​Este edifício integra a História contemporânea da cidade, e por ela passam memórias da indústria conserveira, que marca o Século XX olhanense – mais alguma informação disponível aqui. Mergulhado num processo de degradação que a posse pública não estancou ou reverteu (não foi sequer alvo de classificação como imóvel de interesse municipal), o seu estado de conservação agudiza-se continuamente. Eis então o lamento.

Como forma de mitigar visualmente (apenas) esta situação, têm sido promovidas algumas acções de arte urbana nas fachadas. A mais recente, em linha com anteriores, denota traços de enorme talento por parte dos seus autores – os quais, desconhecendo, saúdo, revelando a admiração.
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​As aspas que anteriormente enquadraram o conceito de arte urbana para identificar estas pinturas prende-se com a ideia, meramente pessoal e nada especializada, de que essa forma de expressão artística tem uma forte componente de activismo (social, ambiental, económico, etc.), destinada a provocar, no espaço público, debates geradores de novos discursos e gestos culturais, urbanos mas não só. Ou seja, tem uma forte componente de análise crítica, muito para lá da mera estética – ao ponto de se poder questionar se uma obra de Banksy, expoente máximo desta circunstância artística, exposta em galeria, respeita ainda o espírito da sua criação.

Arte urbana não é assim um prenúncio de morte sussurrado aos edifícios ou espaços intervencionados, como parece acontecer, por exemplo, em Portimão, onde há um mês foi noticiada a intenção de aquisição de imóveis devolutos (desconheço a sua relevância arquitectónica, ou falta dela) que há já longo tempo haviam sido objecto de intervenções artísticas, tendo como fim a sua demolição para abertura de uma nova rua entre o Largo do Dique e o Largo 1º de Dezembro. A arte urbana é antes a tentativa da sua inserção num contexto, ou criação desse mesmo contexto, razão pela qual também não pode nunca ser confundida com o mero vandalismo, ou deixar que esse tente parasitar aquela. Mesmo quando intervém sobre edifícios degradados ou outras situações dissonantes, e mesmo que o contexto pareça discutível, o que, desejavelmente, será sempre.

Quando, há mais de uma década, o Programa Crono – de que Alexandre Farto [Vhils] era um dos curadores – ocupou, por exemplo, as fachadas de edifícios devolutos na Av. Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, com obras de grandes nomes internacionais da street art (em inglês tem sempre mais élan), como Blu, “Os Gémeos” ou ARM Collective, marcou aquele que é, porventura, o primeiro grande momento de “turistificação” deste fenómeno na capital. Sabemos, por amarga experiência própria, que o turismo como fim em si próprio, tende a esterilizar o substrato em que germina (tanto mais que, 11 anos volvidos, os edifícios continuam devolutos e as obras... foram conspurcadas com tags, graffitis e o tal mero vandalismo!). Mas, sendo a questão lançada a um debate que é público e aberto, tem o seu espaço.
​
Outro exemplo positivo, a intervenção do artista Styler (João Cavalheiro) na Av. Estados Unidos da América, no final do ano passado e também em Lisboa, criando um mural de homenagem ao Arq.º Paisagista Gonçalo Ribeiro Telles, por ocasião da sua morte.
​Igualmente, em Faro foram recentemente instaladas obras de Bordalo II (Artur Bordalo), no campus de Gambelas da Universidade do Algarve e também na Praia de Faro, com o cavalo-marinho e ameaças que sobre a espécie impendem na Ria Formosa, como mote.

Estes escassíssimos exemplos demonstram como a arte urbana tem um – forte – papel a desempenhar nos diálogos que o espaço público promove, devendo ser encarada como manifestação de toda uma circunstância social que procura os seus canais e linguagem, de forma a contribuir para a construção do seu tempo.

Por isso mesmo, e independentemente do seu valor intrínseco, não deve nunca servir como escapismo urbanístico.

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Razão pela qual importaria que o magnífico trabalho gráfico que hoje decora as paredes da Vivenda Vitória, e outros casos similares, um pouco por toda a parte, não fosse apenas uma mortalha, enquanto se aguarda pelo colapso...
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O fungágá da bicharada

2/7/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

O Parque Natural da Ria Formosa (PNRF) tem andado nas bocas do Algarve, em tempos recentes, pela aparente impotência face a diversos atropelos que ocorrem nesta área protegida, em plena luz do dia e de forma reiterada e perfeitamente descarada.

Já (aqui) houve oportunidade de tentar analisar as causas para as limitações e desautorizações que afectam o PNRF e o seu organismo tutelar, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P. (ICNF). Entre elas, e talvez à cabeça, encontra-se o desfasamento entre a magnitude das suas atribuições e os meios – humanos, materiais e financeiros – afectos à tarefa.

A ajudar à festa, a publicação do Decreto-Lei n.º 46/2021, de 11 de Junho, veio também, entre outras alterações, acometer ao ICNF competências no domínio... dos animais de companhia!

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Assim, a um Instituto humana e materialmente já assoberbado no desempenho das suas normais competências, decidiu-se assim atribuir um novo conjunto de incumbências, com implicações ciclópicas e que, na prática, se antecipam inexequíveis.

​E que fundamentalmente introduzem, a martelo, nos afazeres do ICNF matérias que nada têm a ver com o seu âmbito e que, sob vários aspectos, são antagónicas à sua essência.

Entre estas encontram-se a definição e aplicação das políticas de bem-estar, detenção, criação, comércio e controlo das populações de animais de companhia, a definição de estratégias adequadas à protecção desses mesmos animais de companhia em situações de acidentes graves e catástrofes, ou ainda assegurar o cumprimento das regras aplicáveis à detenção, criação, comércio e exposição de animais de companhia.

Coisa pouca, portanto.

Na génese do que hoje é o ICNF está o Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, fundado em 1975, no âmbito da organização da Secretaria de Estado do Ambiente. Destinava-se a inventariar, estudar e gerir paisagens e sítios e respectivos elementos caracterizantes, definindo áreas de protecção e a promulgação de medidas que protegessem os respectivos valores presentes (naturais e culturais), entre as quais a constituição de Áreas Protegidas e a elaboração e dinamização dos seus planos de ordenamento. Tudo isto numa óptica de valorização paisagística, cultural, cívica e física, sempre orientada para as populações e inserida numa lógica de coesão territorial.

Desse organismo de visão abrangente, de organização política, territorial e de perenidade, hoje pouco resta. Por circunstâncias várias (que aqui não cabem), a sua missão está sectorialmente mais restringida, centrando-se em matérias de conservação estrita, nomeadamente em termos de áreas protegidas e classificadas.

Com a presente alteração, ainda menos sobrará.

Para além das óbvias questões ontológicas encerradas no confronto entre perspectivas urbanas e rurais que a atribuição destas competências traduz, há questões imediatas, práticas, que saltam à vista.

Hoje em dia, o fenómeno dos animais de companhia assilvestrados (seja por fuga, por abandono ou por desorientação) representa uma ameaça séria para a conservação de várias espécies da fauna selvagem que se tornam alvo de comportamentos predatórios, bem como factor de desequilíbrio para as dinâmicas de certos habitats e populações.

Quando confrontado com o dilema entre ter que salvaguardar espécies selvagens e conter populações ou comunidades de animais de companhia assilvestrados, o que fará o ICNF?

Mais, atentando na redacção do novel Artigo 2.º-A do Decreto-Lei n.º 46/2021, lemos que, bem-estar animal é entendido como “estado de equilíbrio físico e mental de um animal em relação às condições em que vive e morre, incluindo a ausência de fome, sede e má nutrição, de desconforto físico e térmico, de dor, lesão e doença, de medo e stresse, bem como a oportunidade de expressar o seu comportamento natural”.

A conceptualização num tema destes não é fácil, muito menos consensual mas, à luz desta visão, não terá então o ICNF a obrigação de, por exemplo, libertar todos os animais enclausurados em apartamentos exíguos ou outras condições inadequadas e até insalubres, onde passam boa parte dos seus dias fechados, sozinhos, impedidos de “expressar o seu comportamento natural”? E se, ao “expressar o seu comportamento natural”, estes animais colocarem em risco outras espécies, concretamente espécies protegidas, como se sana este conflito, desde logo interno, do ICNF?

Torna-se claro que este acrescento orgânico é uma resposta à pressão política que cresce em torno dos animais de companhia. Esta traduz, no seu cerne, uma evolução positiva relativamente à forma como a sociedade encara os animais e à ética que devemos emprestar ao seu tratamento. No entanto, se esta visão se desconectar de um quadro mais amplo e, principalmente, se descontextualizar de princípios ecológicos (como, por exemplo, as relações de predação ou a dominância de espécies), e a sua concretização passar pelo prejuízo de uma política integrada de conservação da natureza, seja por conflito de competências ou desvio/reafectação de recursos manifestamente escassos, representará apenas um retrocesso.

As instituições da Administração representam e servem o Estado, não o Governo.

Assim, se há um interesse, por exemplo partidário, no quadro de alianças parlamentares, em ceder a agendas animalistas – que, regra geral, acrescentam zero – e outras visões sectoriais e sectárias nesse domínio, seguramente que o ICNF não é a sede própria ou veículo adequado para tal.

Até porque, a médio e longo-prazo, tanto a inviabilidade do modelo como a sua contradição intrínseca não só não representarão qualquer mais-valia para os animais de companhia e para a resolução das faltas de que são vítimas, como gerarão um efeito diametralmente oposto.

Entre bichanos e bicheza há diferenças fundamentais, que também institucionalmente devem ser preservadas.

Caso contrário, tudo se tornará um fungagá da bicharada.
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Um novo tempo velho

25/6/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes
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Sendo este um espaço de partilha, e preferencialmente sob a forma escrita, é interessante também, de tempo a tempo, parar para breves – mas fundamentais – reflexões.

Num tempo em que as palavras correm soltas, percorrendo instantaneamente geografias insondáveis através desse espaço que as não tem, que é a internet – concretamente nas redes sociais virtuais – e, ao mesmo tempo, censores e inquisidores de pacotilha as dissecam militantemente em busca da descontextualização mais conveniente à promoção de agendas que, na sua base mais profunda, contêm apenas ódio (aos vocábulos e ao Homem que as profere), é cada vez mais importante pensar nelas.

Sem falar do estado lastimável da ortografia (esse sim, tema capaz de sugar toda a alegria de qualquer pessoa que minimamente goste das palavras).

Para essa reflexão ganha, nesta fase, crescente atractivo – pelo menos para este escriba – o exercício de escrita “à moda antiga”, com recurso a ferramentas que obriguem, no próprio gesto de escrita, a uma maior reflexão e cuidado, um mais apurado critério de pensamento e selecção das palavras.

Foi assim que, em complemento à imortal escrita à mão, me decidi a trazer de volta ao activo uma veterana máquina de escrever de família, ferramenta de trabalho de antanho que, fechando uma circunferência de proverbial economia circular, se vê de volta às lides.
​
Em busca de maior sentido e propriedade para as palavras, num tempo em parecem valer pouco, e cada vez menos.

Porque houve neste processo um contributo significativo dos maravilhosos poemas dactilografados de José Carlos Barros – alguns deles aliando à poética uma estética sublime – para o agudizar desta curiosidade e inquietação, impõe-se um sincero agradecimento e, modesta e insignificantemente, a dedicatória desta publicação.
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A co(n)gestão da Ria Formosa

11/6/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Nas últimas semanas, têm-se sucedido os alertas, por parte de grupos de cidadãos, relativamente a intervenções nas margens da Ria Formosa, que violam as normas do Parque Natural da Ria Formosa (PNRF), concretamente as impostas pelo seu Plano de Ordenamento, para além de outras servidões administrativas.

Sendo os aspectos administrativos importantes, bem pior é a realidade que está subjacente a estes episódios. Movimentações de terras abusivas em zonas sensíveis, abate de árvores de porte significativo, perturbação de zonas consagradas a regimes de protecção, criação de situações que potenciam situações de erosão de margens e contaminação do plano de água da Ria, entre outras.

Na sequência dessas denúncias (ver aqui, aqui ou até aqui!), o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P. (ICNF), entidade tutelar do PNRF, desencadeou um conjunto de procedimentos, concretamente de levantamento de autos e embargando as obras em curso.

Como consequência disso... tudo continuou a acontecer, como se nada fosse.

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Ocorrendo dentro dos limites de uma área protegida como a Ria Formosa, estas situações são particularmente gritantes, mas o facto é que se repetem com crescente frequência, um pouco por todo o lado. O poder e autoridade das entidades públicas responsáveis pela salvaguarda de valores e recursos naturais está completamente minada, e verifica-se um desplante cada vez mais aberto por parte daqueles – empresas com alguma relevância e particulares com grande capacidade financeira e/ou de influência, bem entendido – que decidem violar planos e regulamentos a seu bel-prazer. Acresce a este panorama o facto da capacidade de intervenção destas entidades ser muito limitado.

As causas são bem conhecidas: uma reiterada fragilização política de áreas temáticas como ordenamento do território, ambiente, conservação da natureza ou paisagem, a par do desinvestimento nos meios e recursos ao dispor dos organismos públicos com responsabilidades na matéria.

Aqui, o caso do ICNF é paradigmático. Quando surge, em 2012, pela fusão do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade e da Autoridade Florestal Nacional, numa aplicação idiótica do Compromisso Eficiência, assumido pelo Governo de Passos Coelho – e da ministra responsável pela pasta, Assunção Cristas – na ressaca da bancarrota consumada pelo Governo de José Sócrates, representa um retrocesso de décadas em política de conservação da Natureza. Foi assim deitado ao lixo todo o esforço anterior para conseguir autonomizar, por pleno direito, uma política de conservação da natureza, subjugando esta ao poderoso sector florestal que, por definição, possui aspectos antagónicos – entre conservação e produção haverá sempre pontos de atrito, apenas conciliáveis se ambas as actividades se encontrarem em pé de igualdade, em termos de peso político.

Foi assim destruída uma herança que vinha de 1976, do pioneiro e francamente notável  Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico e de toda a política de ambiente que então, nas mais difíceis condições sociais e políticas, se conseguiu erguer, para as populações e com as populações.

Uma herança que nenhum Governo subsequente teve vontade ou sequer interesse em recuperar.

No meio deste processo, existe um vasto conjunto de pessoas que, trabalhando diariamente, tentam operar o milagre das omeletes sem ovos, ao serviço destas entidades. Com falhas – como todos nós no desempenho das nossas actividades quotidianas – que importam corrigir, mas que devem também ser enquadradas num aprofundamento do conhecimento das condições em que se vêem obrigadas a exercer as suas competências.

Neste cenário, e perante iniciativas que são financeira e procedimentalmente muito mais dotadas e ágeis, a luta pela procura do equilíbrio entre valores e recursos naturais e as actividades humanas, que justifica a classificação desta área como Parque Natural, é completamente desequilibrada. E, portanto, se é mesmo para continuar a ter áreas protegidas dignas desse nome, algo tem que mudar.

Há umas semanas, através de um artigo no jornal Público (ver aqui), o Professor Fernando Santos Pessoa alertava para os perigos do modelo de co-gestão das áreas protegidas, que agora avança, com grande entusiasmo autárquico. Ao título desse artigo – alterado relativamente ao original, já agora – foi chamada uma frase constante do mesmo, que comparava a co-gestão à entrada da raposa no galinheiro. Isto gerou alguma celeuma, por parte do sector da gestão autárquica, que entende não dever ser alvo de um clima de suspeita e falta de crédito relativamente à gestão que faz do tema conservação da natureza.

A história e a realidade, com o peso que têm, jogam de facto contra a credibilização da gestão autárquica em termos de conservação da natureza. Há lógicas de ordenamento e de planeamento, sectoriais e territoriais, que não podem ser pensadas como o somatório de interesses locais. São antes estratégias de larga abrangência espacial e projecção no longo-prazo, que vão enquadrando e articulando, numa perspectiva de maior alcance, questões mais focalizadas. Daí que não possam estar sujeitas à permeabilidade a pressões imediatas e muito localizadas que, por definição e vocação, marca a gestão autárquica.

Mas nunca é tarde para fazer mais e melhor, ou abrir novos capítulos, isso é inegável.  

Pois bem, eis que surge uma boa oportunidade. Quer o poder local demonstrar que a co-gestão não só não é assim tão má, como ainda os contributos dos Municípios, numa escala de proximidade, podem ser positivamente decisivos? Então apoiem as entidades regionais no esforço de fiscalização e punição de casos como este (ou outros similares e até piores, como por exemplo no caso de edificações ilegais). Apoiem-nas na procura de peso político para a conservação da natureza, de forma a poder ombrear mais equilibradamente com outros interesses. Apoiem-nas no estabelecimento de diálogos abertos, mas firmes, com os promotores das mais diversas actividades económicas incidentes sobre, no caso, o Parque Natural da Ria Formosa, em que a salvaguarda dos valores e recursos naturais deve ser a base inegociável.

Apoiem-nas numa verdadeira conservação da Natureza.

Será popular? Dará votos? Ainda por cima em ano de eleições?

A ver vamos.

Pelo sim, pelo não, guardemos memórias do espaço que corre o risco de um dia deixar de ser o Parque Natural da Ria Formosa.
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Gonçalo Ribeiro Telles e David Bowie, juntos num grande jardim a florescer em Portimão

21/5/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Manuel Teixeira Gomes, insigne portimonense, foi o sétimo Presidente da desastrosa Primeira República Portuguesa.

Eleito pelo Congresso em 1923, abandonou, voluntária e espontaneamente, o cargo em 1925, por sentir que o projecto republicano se desagregava e ruía, sem que ele dispusesse de adequados poderes para intervenção, no quadro legal constitucional de então. Abandonando a política em desilusão, embarca no paquete grego Zeus e deixa Portugal, para não mais regressar.

Quase 100 anos depois, numa escola baptizada com o seu nome, na sua terra natal, um grupo de jovens percorre um percurso inverso: desiludidos com os falhanços da política face aos seus anseios e expectativas, lançam mãos à obra, e um desafio à sociedade.

E é assim que a turma 10.º L, da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, de Portimão, tenta fazer política. Pela melhor e mais nobre via que há: a cidadã.

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Jardim Gulbenkian, em Lisboa, da autoria de António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles.

​A história é magnífica, e agradeço ao professor Carlos Café a partilha da mesma, que aqui reproduzo, pedindo desde já perdão se o não fizer com exactidão.

No âmbito do projeto de Cidadania e Desenvolvimento, e numa aula em que era necessária uma decisão acerca do projecto a implementar, foi feita referência à então recente morte de Gonçalo Ribeiro Telles, e ao seu trajecto cívico e profissional, que tanto legou a todos nós. Pegando na inspiração desse autêntico herói, e com a música “Heroes”, de David Bowie e Brian Eno em fundo, surgiu o repto: porque não ser este conjunto de estudantes ele próprio heróico, aproveitando o projecto para mudar o mundo?

E assim surgiu uma ideia simples: pedir à Assembleia da República, através de uma petição, a instituição do Dia Nacional dos Jardins.

Certo, nos dias que correm, petições há mais que muitas. Efemérides então, qualquer dia não há dias que cheguem. Mas parece-me que esta é especial.

Porque parte de jovens, que tantas vezes são acusados de estarem alheados da vida pública, da cidadania. Porque esta juventude sabe explicar muito bem o que quer, e porque o quer. Porque este apelo parte de uma região em que o espaço público e os quase inexistentes jardins – bem como os elementos naturalizados das paisagens, com as árvores à cabeça – são deliberadamente maltratados e a sensibilidade dos decisores para a sua importância é nula, ou até menos do que isso. Porque esta é a melhor homenagem que se pode prestar a Gonçalo Ribeiro Telles: dar continuidade ao seu espírito de intervenção cívica, de defesa de valores orientados para a comunidade, para o seu bem-estar e para a sua felicidade. Ao seu espírito combativo por aquilo em que se acredita.

Eu concordo com estes cidadãos. E convido-vos a lerem a sua petição e, obviamente, assinar, se também concordarem:

CRIAÇÃO DO DIA NACIONAL DOS JARDINS (aqui)

Para além desta iniciativa, está previsto o lançamento de um e-book (prefaciado por Viriato Soromenho-Marques) sobre a vida e a obra de Gonçalo Ribeiro Telles, numa criação coletiva da turma, com ilustrações alusivas ao tema dos jardins da autoria de crianças do Jardim de Infância do Fojo e da EB1 Major David Neto, de jovens estudantes da EB 2,3 Professor José Buísel e da Secundária Manuel Teixeira Gomes, e ainda de jovens da estrutura de Educação Especial, numa congregação de todos os níveis de escolaridade e ensino deste Agrupamento.

Isto para além do envolvimento de encarregados de educação, e do apoio de empresas concelhias e das autarquias (Câmara Municipal e Junta de Freguesia de Portimão).

Com isto, estes jovens, e esta comunidade, desde logo criam um jardim. Os jardins são, entre outras coisas, espaços de magia, reclusão, isolamento, paz, serenidade, microcosmos em que as realidades se transfiguram, invariavelmente para melhor. Hoje em dia, nem sempre é fácil acreditar no que quer que seja, e muitas vezes temos dificuldade em encontrar exemplos inspiradores, e sinais de esperança para o futuro.

​Pois bem, independentemente do resultado desta petição, o esforço destes jovens é um jardim de abrigo face a tal aridez, um farol de esperança, que se espera possa inspirar muitos outros.

Por isso mesmo, e independentemente do desfecho da petição, desde já obrigado.

P.S. – agradeço também ao Tiago Águas, através de quem tive conhecimento desta inspiradora iniciativa, que ignorava por completo.
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Finalmente, censura de bem.

14/5/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptada pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas em 1948, é um documento marcante, e zenital, na História da Humanidade.


Destinado a promover relações amigáveis entre todas as nações e consolidar a paz mundial através da noção de igualdade e fraternidade entre todos, e a procura da libertação dos indivíduos da opressão e restrições a que são frequentemente sujeitos, consagra os direitos e liberdades de todos os seres humanos, sem excepção, estabelecendo tais valores como inalienáveis.

Nascida da ressaca do horror da II Guerra Mundial e, concretamente, do regime Nacional-Socialista de Hitler, entre os valores que a Declaração defende encontram-se 3 liberdades fundamentais: de discurso, religiosa e do medo.

Passadas mais de 7 décadas, há muitos locais no mundo onde estes direitos e liberdades continuam por implementar. Mais grave ainda, continua por fazer prevalecer, nas mentes e corações de todos, a visão humanista da fraternidade entre povos e indivíduos, na busca de uma felicidade partilhada. É por isso que, clara e diariamente, assistimos à violação dos mais básicos direitos e liberdades das pessoas, um pouco por todo o mundo, mesmo em países e sociedades ditas evoluídas.

Sob esse pretexto, esta base universal tem sido alvo de múltiplos desenvolvimentos de agendas de nicho, que se centram em visões sectoriais (ou intersectoriais) e sectárias, quer dos direitos, quer das liberdades. Num esquema de raciocínio que, no fundo, funciona como o roubo de automóveis para desconstrução e venda à peça, esses movimentos cuja inspiração radica no pós-modernismo, pretendem fragmentar a sociedade em retalhos cujo conjunto se torna ininteligível. É assim que vemos a defesa de direitos sectoriais (sendo as questões da sexualidade, do género e da raça as mais notórias, mas não as únicas) como se estes existissem desligados de uma lógica global da Humanidade enquanto todo.

Isto constitui uma espécie de cartesianismo tribal alimentado a ácidos, que seguramente fará o próprio Descartes dar voltas na tumba pois, ironicamente, o seu pensamento, basilar para o Iluminismo, é hoje grotescamente deturpado para servir o fim desse tempo de excelência humana.

A pandemia, cuja gestão, muito para lá dos fundamentais aspectos de saúde pública, tem sido deliberadamente alimentada a medo, fragmentando e minando as relações sociais, bem como a proximidade e afectividade em que a coesão de qualquer sociedade assenta, tem servido como o Cavalo de Tróia perfeito para a disseminação dessas agendas.

O resultado dessa fragmentação, e desse medo, é a erosão rápida das referências que orientam a nossa sociedade que, sendo altamente imperfeita, não carece de implosão, mas antes de continuada construção.

Isto abre espaço para mais um passageiro no Cavalo de Tróia.

Em tempos de perturbação, surge recorrentemente uma outra agenda: a securitária. Seja para nos “proteger de nós próprios” no meio de um período conturbado em que podemos não tomar as melhores opções, ou para nos “proteger de ameaças externas”, surgem invariavelmente os discursos autoritários e de promoção de políticas securitárias. A primeira vítima de tais agendas é, invariavelmente, a liberdade.

De resto, os pesos são colocados na balança de forma despudorada: sacrifiquemos alguma liberdade em nome da segurança (no caso sanitária), mesmo que na verdade não se vá além da mera ilusão desta última.

A primeira linha de defesa contra tais ensejos ditatoriais é a coesão social, assente nas relações interpessoais e na proximidade ao outro, que gera o sentimento de fraternidade e entreajuda que une as pessoas, independentemente das suas diferenças e dos riscos que, basicamente, estar vivo acarreta. É esse sentimento definidor que nos dá a garantia de que não é medo nem muros o que deve organizar a nossa sociedade, mas sim a esperança e o trabalho contínuo para a concretizar.

No passado Sábado, o Presidente da República promulgou uma coisa chamada a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, em cumprimento do Plano Europeu de Acção contra a Desinformação – que nós somos muito obedientes. Oscilando entre a mais perfeita inutilidade, pequenos apontamentos de interesse e a simples redundância – face à Declaração Universal dos Direitos Humanos – este documento, que havia já sido aprovado na Assembleia da República em Abril (sem votos contra, o que é profundamente perturbador), abre também caminho para o regresso da censura, para já no meio digital.

O Art.º 6.º da redacção final do documento (ver aqui) que será entretanto publicado em Diário da República estabelece que, resumidamente, o Estado estabelecerá e defenderá o que é a verdade e que todos os conteúdos que atentem contra essa verdade, bem como os seus promotores, serão alvo de acção punitiva.

Desde logo, a redacção é curiosa, pois se o n.º 2 desse Art.º 6.º fosse levado à letra, arrisco dizer que a esmagadora maioria dos membros da Assembleia da República teriam que ser processados, e poucos decisores políticos a nível nacional ficariam impunes:
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Mas já sabemos que, em Portugal, as leis são iguais para todos, mas são mais iguais para uns do que para outros...

De forma magnânima, o Estado deixa, através do n.º 4 do mesmo artigo, que os portugueses continuem a rir, permitindo, por decreto, a comédia, sob forma de “sátiras ou paródias”.

E como vai o Estado fazer isto? Para além dos seus recursos próprios, estabelece o n.º 6 que será apoiada (com dinheiro dos contribuintes, portanto) a “criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”.

E quem pode almejar tal estatuto? Serão apenas os órgãos de comunicação social que aceitem o financiamento, perdão, a compra de publicidade por parte do Estado?

Não. É algo ainda mais tenebroso.

O n.º 3 do Art.º 21.º, estabele que “as pessoas coletivas sem fins lucrativos que se dediquem à promoção e defesa do disposto na presente Carta têm o direito a obter o estatuto de utilidade pública, nos termos da legislação aplicável às entidades de caráter cultural”. Ou seja, estruturas como, por exemplo, associações que se dediquem à fiscalização, delacção e perseguição daqueles que atentem contra o pensamento estabelecido como verdadeiro, serão automaticamente de utilidade pública e, nos termos do Art.º 6.º, revestir-se-ão de ares de regulador.

Uma espécie de guarda pretoriana voluntária e de génese espontânea, e nada idónea, que o Regime institui para controlo do pensamento. PIDEs de bairro, se preferirem.

Ironicamente, o Art.º 21.º da Constituição da República Portuguesa, é o Direito de Resistência. Se calhar não por muito tempo.

É que estamos no limiar de outros tempos.

Tempos como o do Decreto n.º 22:469, de 11 de Abril de 1933 (aqui). Este Decreto, emitido em desenvolvimento da Constituição Política da República Portuguesa, que serviu de base ao Estado Novo liderado por António de Oliveira Salazar, regulamentava a censura prévia às publicações gráficas.
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Esta censura era feita, de forma altruísta e abnegada, apenas para “impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social”, devendo ser exercida como defesa contra “todos os factores que a desorientem [à opinião pública] contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade”. E não era delegável fora da esfera do Estado.

Hoje, como em 1933, é enternecedor ver que há quem se preocupe com o que pensamos, dizemos e publicamos.

Hoje, como em 1933, a liberdade morre mais um pouco, sob um silêncio ensurdecedor.

A desinformação combate-se com educação, com o desenvolvimento de massa crítica, que permite critério na digestão e verificação da informação com que nos cruzamos. Mas isso não parece interessar. Mais do que promover conhecimento ou compreensão, importa apenas decorar:

“Manda quem pode, obedece quem deve”
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E se corre bem?

12/5/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Ninguém vive sem conceder ao irracional, ao inexplicável. Pode não ser sempre. Pode mesmo ser quase nunca. Mas, quer lhe chamemos fé, paixão ou mero escapismo, está lá, bem fundo, e emerge, mesmo que em, e por, momentos fugazes.

Este é um desses raros momentos de concessão.

Por isso, apelando à indulgência, falo hoje de futebol, utilizando-o mais como pretexto do que fim em si mesmo. Porque do ilógico também se extrai raciocínio.


Começo pela obrigatória declaração de interesses: sou inabalável sportinguista, e este título, por razões objectivas e de contexto, deixa-me muito feliz, apenas por "nós", enquanto comunidade abstracta, tribo ligada nestes estranhos, intangíveis e frágeis laços de afinidade que unem perfeitos estranhos – o Desmond Morris decifra. Ninguém perdeu, fomos apenas “nós” que ganhámos – o que imediatamente introduz a dívida de glória aos vencedores, mas sem que se possa negligenciar a merecida honra aos vencidos.

Existe algo de mágico no futebol. E existe e subsiste, mesmo no futebol que o negócio desalmadamente roubou ao desporto e que, eventualmente, irá matar. Para já, no meio de tanta artificialidade e materialismo, há ainda espaço para a magia das grandes histórias. Histórias de superação, histórias de inconformismo, histórias de não aceitar o peso da História, histórias de vencer as probabilidades. Histórias, no fundo, de acreditar. Que são aquelas que nos encantam.

Histórias que se contam com coisas simples. A minha conta-se com este cartão, datado de 1980.
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A Utopia de Ribeiro Telles, com os nossos pés na terra

23/4/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Partilho hoje, neste espaço, a sessão ontem realizada em torno da dimensão política de Gonçalo Ribeiro Telles, no contexto das comemorações do Mês Internacional da Arquitectura Paisagista.

O encontro, marcado pela dimensão e riqueza dos contributos que, generosa e carinhosamente, quatro enormes personalidades prestaram, foi, para mim, privilegiado por poder partilhar um espaço - ainda que etéreo - com tais vultos, motivo de grande felicidade.

Pela honra que se presta à memória de um grande e bom homem, principalmente, mas não só.

Momentos como este, reforçam a ideia de que a grande, justa e verdadeira homenagem a Ribeiro Telles continua por prestar. E consiste em continuar o seu trabalho, lutando pelas causas que, reconhecidamente meritórias, sempre defendeu.

Neste capítulo, a Arquitectura Paisagista, profissão que tanto amou, e à qual tanto deu, tornando-se mesmo, e agarrando em palavras suas, “a Arquitectura Paisagista com figura humana”, tem particulares responsabilidades.

O desaparecimento físico de Ribeiro Telles, no final do ano passado, marca uma condição de "orfandade espiritual" da classe, desaparecida que está a sua referência maior. Mas as suas ideias continuam em nós (e grandes figuras, felizmente, não nos faltam), nos instrumentos de gestão que delineou, no legado que deixou, na influência que teve sobre tantas pessoas, dentro e fora da Arquitectura Paisagista, no exemplo de coragem e integridade. 

Temos então dois caminhos: enrolar em posição fetal, chorando este desamparo, ou lançar mãos à obra, honrando a sua visão e o seu pensamento.

Assim, o desafio que se coloca, não apenas à Arquitectura Paisagista, mas a toda a cidadania inspirada por Ribeiro Telles, é honrá-lo verdadeiramente, sendo não o que sobra dele, mas sim a sua continuidade.

Como seus herdeiros e testamentários, verdadeiros jardineiros de futuros e de felicidade. 

A Utopia de Gonçalo Ribeiro Telles não cessa, mas os pés na terra devem agora ser, obrigatoriamente, os nossos.
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Pode o Mediterrâneo salvar o Algarve?

9/4/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

No próximo Domingo, dia 11 de Abril de 2021, um conjunto de cidadãos, preocupados com as tendências de evolução da paisagem algarvia e, concretamente, com o seu distanciamento relativamente a uma matriz que era, na sua essência, mediterrânica, "reunirá" (virtualmente, em distanciamento físico, mas nunca social) para sobre esse tema conversar.
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Em jeito de contributo, partilho a conclusão da minha participação no II Congresso Internacional "Arquitectura Tradicional no Mediterrâneo Ocidental", realizado há pouco menos de um ano, em Mértola.

Nessa ocasião, perguntava precisamente se pode o Mediterrâneo salvar o Mundo.

E mantenho a pergunta, acrescentando se, de caminho, não salva também o Algarve.


O património mediterrânico está hoje em rápida erosão. “O desaparecimento das casas regionais (...) é também mais um aspecto desse movimento geral de nivelamento que caracteriza a nossa época, corolário fatal da industrialização, que marca o apagar de valores afectivos essenciais e da fascinante diversidade do mundo – o fim dum humanismo que foi uma filosofia da vida” (Oliveira & Galhano, 2003, p. 374), ao mesmo tempo que “está em curso, desde há algum tempo a esta parte, uma destruição sistemática dos sistemas tradicionais (...) fenómeno (...) promotor de uma profunda descaracterização da paisagem tradicional (...), concretamente da sua identificação com o cunho mediterrânico” (Duarte Gomes, 2017).

A vida moderna, obcecada com eficiência e velocidade (as distâncias medem-se em tempo, não em quilómetros) condena à morte as aldeias “alcandoradas e tranquilas, que se alcançam por caminhos em torcicolos, quando não em escadarias” (Ribeiro, 2011, p. 139), pois o primado do automóvel não se compadece de caminhos de gente, burros e bois.

A crítica encerrada na reflexão de Paul Virilio, que através da sua “ecologia cinzenta” ataca a poluição da Natureza-Grandeza que degrada as distâncias e as durações do tempo, assentaria perfeitamente numa defesa da mediterraneidade: “o mundo encolheu-se, encolheu-se terrivelmente, já não viajamos, deslocamo-nos” (Virilio, 2000, p. 92). Porque o Mediterrâneo conflitua, desfasando-se, com o mundo contemporâneo: “educado no respeito de muito antigos valores de civilização, o Mediterrâneo não sacrifica incondicionalmente ao tempo, ao dinheiro, à eficiência – os três grandes ídolos do mundo moderno – a razão da sua vida” (Ribeiro, 2011, p. 30).

Analisada em profundidade, esta essência mediterrânica, lenta e ineficiente, mas telúrica e humanista, fornece respostas e mecanismos eficazes para desafios contemporâneos, que questionam os modelos de crescimento infinito num mundo de recursos finitos. As suas características vão mesmo ao encontro dos princípios do decrescimento (Latouche, 2020), de entre os quais se destacam os valores da partilha e cooperação, a adaptação dos aparelhos produtivos às condicionantes do meio e o reduzido desperdício.

Para que a arquitectura de paisagem e a arquitectura de edificado possam contribuir para o sanar deste conflito, devem obrigatoriamente respeitar o ethos mediterrânico, (re)interpretando-o e (re)desenhando-o no tempo actual.

Recuperando, nos modelos de paisagem e de casa, os princípios do nível mínimo de energia e o respeito pelos recursos e seus limites, explorados com parcimónia, que o habitar mediterrânico adopta. Recuperando o respeito pela escassez e valor da terra, algo que contrasta com a contemporânea displicência na gestão do espaço e do solo, sem os compreender como reserva estratégica de fertilidade e capacidade produtiva, não aumentável por mera vontade.

Recuperando e reacendendo talvez o farol de humanidade que a cultura mediterrânica representou durante tanto tempo para a Europa – que fundou e educou – e para o Mundo, e a cujo eclipse não será certamente alheia a periclitância da União Europeia.

Recuperando o fundamento do próprio sucesso da mediterraneidade.
Bibliografia
Duarte Gomes, G. (2017) ‘O Algarve arrancado pela raiz’, Sul Informação, 2 Agosto. Disponível em: https://www.sulinformacao.pt/2017/08/o-algarve-arrancado-pela-raiz/ (acedido: 22 Maio 2020).
Latouche, S. (2020). Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno. Lisboa: Edições 70.
Ribeiro, O. (2011). Mediterrâneo. Ambiente e Tradição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Veiga de Oliveira, E., & Galhano, F. (2003). Arquitectura Tradicional Portuguesa. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
Virilio, P. (2000). A velocidade de libertação. Lisboa: Relógio D’Água Editores.
 

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Não, a água não é um bem económico...

26/3/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Em visita ao Algarve, para promoção de um roteiro da água, e segundo citação nos meios de comunicação social (aqui), o Ministro do Ambiente e da Acção Climática declarou que ”a água é, de facto, um bem económico, quando chega às nossas torneiras”.

Será?

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O dia em que sonhámos limpar Portugal!

20/3/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Há 11 anos, Portugal dizia a si mesmo que se ia limpar!

Não, não se propunha erradicar a corrupção, esse lastro que nos submerge e impede de rumar a uma condição de maior desenvolvimento e justiça social, mas apontava a um objectivo igualmente lírico: num só dia, a população iria lançar mão à obra para limpar o lixo que, um pouco por todo o lado, feria as nossas paisagens!
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Do ódio às árvores

19/3/2021

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Esquema representativo do que é uma árvore - "A árvore em Portugal" (1999). Caldeira Cabral, F. e Ribeiro Telles, G.. Assírio & Alvim.

Por Gonçalo Duarte Gomes

No Algarve, num momento em que a pandemia da Covid-19 parece dar sinais de aliviar um pouco, corre, à rédea solta, uma outra, que vem de trás: a do ódio às árvores.

Os casos de mutilações e abates indiscriminados, arbitrários e, acima de tudo, injustificados, de árvores sucedem-se, um pouco por toda a parte, eventualmente numa grotesca inspiração originada pela reabertura de cabeleireiros e barbeiros. Em meio urbano as p(h)odas camarárias (muitas vezes ao nível do colo) são já uma instituição - de horror - que marca indelevelmente o subdesenvolvimento e atraso da visão e da gestão do espaço público. Esta febre dendrofóbica tem vindo entretanto a alastrar ao meio rural, numa voracidade de biomassa difícil de explicar, porque em nada relacionada com a necessária limpeza e/ou abate de árvores associado às tradicionais actividades neste contexto.

Cortar ou deformar uma árvore devia ser uma decisão difícil, por respeito a tudo o que representa, do ponto de vista biofísico, emocional e cultural. Devia requerer uma justificação e uma ausência de alternativa. Devia obrigar a contextualização e explicação (principalmente para defesa de quem tem que tomar tais decisões), para lá de compensação.

Pelo contrário, ocorre invariavelmente sob silêncios ensurdecedores.

Que nós, nós os muitos, deixamos ecoar. Sem questionar, sem reclamar. E muito menos penalizar.

A questão é apenas até quando, e o que é que vai restar, se e quando decidirmos fazer algo quanto a isso.

Até lá, não esquecer de comemorar o Dia da Árvore, que é já no Domingo.

Todos os que possuem conhecimentos científicos compreendem que um trecho musical e uma árvore têm algo em comum: ambos são criados por leis igualmente lógicas e simples.

Tchekhov
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"Nestes ermos, ouvindo a voz das fontes"

12/3/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Para a breve nota de hoje, pedi emprestado, como título, o primeiro verso do poema "Sombra", do sambrasense Bernardo de Passos (1876 - 1930).

Marcadamente influenciado por um lirismo de forte base telúrica, Bernardo de Passos parece-me, neste seu poema, ajudar a traduzir os valores etéreos que, na paisagem, acabam por também ser importantes.

Por exemplo, "a voz das fontes" pode reportar-se não apenas às fontes propriamente ditas, mas também, em sentido lato, à água que, correndo nas ribeiras, é, efectivamente, a voz que depois ecoará em nascentes, chafarizes ou bicas.

Muito se fala de água, mas quase sempre na óptica do consumo humano. Vital como é nesse sentido, importa - e nisto sou muito repetitivo - nunca esquecer uma ética paisagística que obrigatoriamente devemos considerar ao pensar neste recurso: a do valor ecológico da água. Que se cumpre deixando a água fluir livremente na rede hidrográfica, irrigando, destruindo, desobstruindo, arrastando, erodindo, fertilizando, transportando, descobrindo, cobrindo.

Um agente modelador da paisagem de primeira ordem, através do qual o fundo de vitalidade se alimenta, com recurso a uma panóplia de funções que, em anos de generosidade hídrica como o presente, saltam à vista.

Para os ver, basta abrir os olhos.
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SOMBRA

Nestes ermos, ouvindo a voz das fontes,
de humildes alegrias fui pastor;
meus rebanhos guardava com amor,
contemplando os longínquos horizontes...

Árvores maternais, que ergueis as frontes
verde-tristes, num gesto criador,
junto a vós semeei sonhos em flor,
que vestiram de rosas estes montes...

Mas tudo - riso e sonho - me levaram...
Perdi meu gado, meus jardins secaram,
já neles não há rosas nem alfombras!

Doura a tarde estes ermos de abandono...
E eu passo - folha morta dum Outono,
sombra vaga a errar por entre sombras!

Bernardo de Passos

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Tem um minuto para escutar a Palavra de São Abacate?

26/2/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

A Algfuturo, um lobby empresarial – sem qualquer sentido pejorativo – regional, que se reveste de forma associativa, veio recentemente publicar uma “carta aberta em defesa da honra e bom nome do Algarve e seus agricultores”, que endereça “aos responsáveis oficiais regionais e nacionais e outros detratores das culturas de regadio no Algarve, em particular a do abacate, que falsamente afirmam ser de carácter intensivo” (aqui).

Trata-se portanto de uma defesa da honra da cultura do abacate, que tão badalada tem sido na região, fundamentalmente devido à questão do consumo dos recursos hídricos.

E o abacate anda ofendido.

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Planos há muitos, seu palerma!

19/2/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

​Foi lançado à consulta pública o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR - aqui), o documento para a recuperação pós-Covid, que define os alvos para as “bazucadas” dos 14.000.000.000 € de dinheiro fresco que aí vem, direitinho da União Europeia!  

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A refeição de Gargântua (Gustave Doré)

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Quem tem medo de livros?

12/2/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Sendo esta pandemia, que tão dramaticamente afecta a vida de todos nós, uma anomalia pegada, não deixam de se conseguir destacar, dentro dela, estranhas anormalidades.

Foram ontem anunciados pelo Presidente da República e pelo Primeiro-Ministro os termos gerais do novo Estado de Emergência que vigorará entre 15 de Fevereiro e 1 de Março. Em mais uma arroba de dias de normalidade feita de excepcionalidade, parece que não há grande novidade.

Ou até há.
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Adaptação cinematográfica de Fahrenheit 451 (1966, François Truffaut)

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Água valiosa... mas q.b.!

5/2/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Foi publicado, como todos os anos acontece, o Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal (RASARP). Desta feita, o RASARP 2020 (disponível aqui), que compila informação referente ao ano de 2019.

E, como todos os anos acontece, o Algarve apresenta alguns indicadores que devem merecer reflexão, numa óptica de minimização do desperdício da água – já que em termos qualitativos, quer a distribuição em alta, quer em baixa, apresentam resultados cada vez melhores.

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O protesto dos esquecidos em 3 mapas

25/1/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Há precisamente uma semana, falava (aqui) da possibilidade de uma revolta dos esquecidos. ​

Umas eleições presidenciais volvidas, verificou-se que em vez de insurreição, houve apenas um protesto dos esquecidos.

Para evitar desde já o costumeiro discurso de ódio ou os axiomas de superioridade moral, apresento uma declaração de interesses: votei em branco nestas eleições, após ter votado em Marcelo Rebelo de Sousa há 5 anos. Optei pelo voto consciente – não me vendo representado em nenhum dos candidatos – em vez do útil – a proverbial escolha do mal menor – tema que, ainda assim confesso, me suscita sempre grande debate interno.

Marcelo Rebelo de Sousa, conforme esperado, ganhou inequivocamente, à primeira volta, e com reforço de votação (venceu em todos os concelhos do País), as eleições presidenciais. A vitória da personificação da moderação – muitas vezes para lá do aceitável – e do bloco central representa, acima de qualquer dúvida, o prevalecer da normalidade democrática. Mais ainda quando, em segundo lugar, ficou uma candidata cujo lastro político é o de um envolvimento profundo nas dinâmicas e representações partidárias de uma estrutura responsável por cerca de 70% do tempo de governação em democracia. Ambos os candidatos agregaram praticamente ¾ dos votos depositados em urna, demonstrando a solidez do status quo político.

Não fosse a brutal abstenção, poder-se-ia assim dizer que o nosso sistema político está de muito boa saúde.

Mas nem é esse pequeno grande pormenor (que nesta eleição teve várias condicionantes extraordinárias) o que concentra as análises desta ressaca eleitoral.

André Ventura, candidato populista, terceiro classificado na geral, ficou em segundo lugar em 11 (ou 12) dos 18 distritos nacionais, sendo Faro um deles.

Veja-se este mapa ilustrativo da votação de André Ventura no território continental:
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Votação do candidato André Ventura em Portugal Continental (Fonte: Observador)
​
Agora vejam-se estes dois mapas, constantes do Programa Nacional da Política do Ordenamento do Território (PNPOT, aprovado pela Lei n.º 99/2019, de 5 de Setembro):
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Fonte: PNPOT

Para melhor clarificação, as vulnerabilidades ilustradas no mapa da esquerda prendem-se maioritariamente com desemprego, envelhecimento, precariedade social e dependência, enquanto que os serviços de interesse geral, à direita, são as actividades, comerciais ou não, sujeitas a obrigações específicas de serviço público e/ou de soberania (serviços de saúde, escolaridade obrigatória, serviços de emprego e formação, habitação social, infantários, cuidados de longa duração, serviços de assistência social, transportes públicos, segurança, justiça, energia, comunicações, etc.). Os serviços mínimos da dignidade, se quisermos.

Naturalmente, a realidade do País não se esgota nestes dois mapas (que não reflectem ainda as dramáticas realidades introduzidas pela pandemia), e muitos outros se poderiam acrescentar. Mas todos revelarão mais ou menos as mesmas assimetrias e o défice de coesão territorial de Portugal, que se reflecte na sua população.  

Podemos acreditar muito em coincidências. Ou podemos, perante factos que nos suscitam preocupação, tentar encontrar as suas causas, em vez de nos entretermos a maldizer a espuma dos sintomas.

O crescimento do populismo, que encontra nestas eleições uma expressão democrática significativa, aparenta ser uma forma de comunicação às oligarquias por parte das bases, dos esquecidos, dos que estão nos extremos errados das assimetrias, desesperados que estão perante o falhanço de todos os outros canais e o ensurdecedor silêncio em resposta aos seus problemas, a par da total degradação ética do regime.

O status quo é livre de fazer o que faz melhor, desvalorizando tal facto, menorizando os votantes de que discorda, de os apelidar de estúpidos, fascistas, ignorantes, tudo e mais alguma coisa – incluindo sugerir, num espírito profundamente democrático, que nem todos deveriam poder votar, quase ao estilo das centúrias eleitorais romanas.

Ou pode optar por experimentar algo diferente, e escutar.
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Quando só se fala da cor, até o verde perde o sabor

23/1/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Por mera coincidência, ou talvez para assinalar o regressos dos Estados Unidos ao Acordo de Paris, que ontem comentava (aqui), e aproveitar o alívio do ambiente na sala de estar mundial que tal gerou, Faro anunciou uma campanha de plantação de árvores na capital.

De acordo com informação disponível nos canais municipais, avançou para já um singelo coqueiral (uma dúzia de exemplares da espécie Syagrus romanzoffiana, originária da América do Sul), ao longo da Avenida Calouste Gulbenkian, integrado numa estratégia de sustentabilidade. Que diz que é verde.

Não querendo desfazer, é caso para dizer, surripiando o recente bordão publicitário de uma cadeia de supermercados, que quando só se fala da cor, até o verde perde o sabor.

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Faro tem um significativo défice de jardins. Tem também um défice de presença de árvores na cidade, e as que existem, volta e meia, são alvo das tradicionais podas (alguns defendem que escritas com ph) camarárias, que de árvores apenas deixam raquíticas caricaturas. Mas, acima de tudo isso, tem um défice de estrutura verde, ou seja, mais do que peças soltas, tem falta de um puzzle coerente de espaços naturalizados e elementos isolados, em que o todo faça um sentido maior do que a mera soma das suas partes e, principalmente, cumpra as suas funções de amenidade, descompressão urbana e regulação ecológica, bem como de organização biofísica.

Esta coerência estrutural não se obtém por apenas plantar árvores de forma indiscriminada. Muito menos sem ligar às espécies que se plantam. Mais árvores será, por regra geral, um bom princípio, mas é preciso mais. É necessário que estas se integrem num contexto mais profundo, de significância ecológica e também identitária da cidade.

É inescapável que o Algarve das aparências é ainda dominado por um vincado tropicalismo de fachada, misturado com um palmar imaginário magrebino setentrional, que habita muitas mentes, e que aponta ao reptiliano de um tipo de turismo ao qual os estivais gelados podem ser servidos até na testa, desde que acompanhados pelo reconfortante e patusco selo do “very typical”.

“Tropicalgarve” com um tarbush, por assim dizer.

Mas, com tanto discurso sobre ambiente, ecologia, identidade, adequação dos elencos vegetais à flora autóctone e/ou altamente adaptada, seria um coqueiral a prioridade para o reforço das árvores em Faro?

A pergunta é despojada de qualquer dramatismo – hoje em dia parece difícil, mas podemos falar e discordar, sem ser aos gritos ou com sete pedras na mão – pois em termos globais, este coqueiral por si só e a dúzia de novas árvores residentes que traz, é como o Melhoral, não faz bem nem mal. E não é que as espécies exóticas não tenham lugar nos nossos jardins – muito pelo contrário, tal insere-se numa longa tradição, decorrente até do nosso histórico deambular pelo Mundo que continuamente aportou um fluxo de novidades e extravagâncias, que fomos incorporando.

No caso, e por se tratar de um eixo viário principal, remotamente até se pode compreender uma intenção de vincar alguma verticalidade (não se podendo dizer o mesmo na rotunda). Além de que – espera-se – outras plantações deverão seguir-se, com – espera-se – outras espécies, menos exóticas.

Mas reforçar a identificação do espaço público de Faro com outras latitudes e longitudes, que não a sua, parece distanciar a cidade de si própria e da região, quando tem outras opções ao seu dispor.

Ou, pelo contrário, talvez a aproxime mais da sua essência, com o que isso implica, na velha máxima de que “Faro é Faro”.

De qualquer forma, já que os jerivás aí estão, ao menos venham também os tucanos, tapires e saguins.

Sempre completam a animação.
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O Tio Sam voltou à mesa de Paris, mas sem xarém não será feliz

22/1/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

O recente empossamento do novo Presidente dos Estados Unidos da América representa um sinal de esperança para o Mundo, a vários níveis. Um sentimento que muito deve à fantástica declamação de Amanda Gorman, num grande momento poético e cénico.

Como que para calar as vozes que questionam a sua genica, Biden lançou-se de imediato num enérgico afã presidencial, lançando mãos à obra de tentar rectificar algumas orientações adoptadas pelo seu antecessor e de conseguir trilhar novos rumos, que conduzam a respostas não apenas às questões mais óbvias, mas também às mais profundas, que lançam as sombras sob as quais engrossam as hostes dos esquecidos, longe das agendas ideológicas da moda.

Uma das suas decisões mais significativas para os restantes condóminos planetários, foi a determinação do regresso, com efeito a partir de meados de Fevereiro deste ano, dos Estados Unidos ao Acordo de Paris, relativo às Alterações Climáticas, de onde este país se havia oficialmente retirado em Novembro de 2019. Não é tanto que a aplicação do Acordo esteja a correr muito bem ou que seja uma ferramenta milagrosa, mas uma das maiores economias mundiais voltar a assumir compromissos para com as metas estabelecidas e, mais importante ainda, para com a inescapável realidade de que é preciso adaptar a acção humana e mitigar os seus efeitos de ampliação sobre os padrões de variabilidade climática e intensidade dos seus fenómenos extremos, é uma boa notícia.

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Cá no reino não deixámos de assinalar a coisa. Imagino agora a festa que faremos, no dia em que decidirmos, nós próprios, fazer algo quanto a este tema. Porque embora nunca tenhamos abandonado o Acordo, a verdade é que Portugal está nestes pactos internacionais como os sobrinhos estão nas visitas à casa da tia-avó Cremilde: de corpo presente, porque têm que estar e, com sorte, ainda pinga uma notinha no fim, mesmo que para isso tenham que ceder a bochecha para aquele apertão bom. Assim, assinamos tudo, mas depois cumprir com o que dizem os papéis… está quieto.

Cumprir neste caso é, basicamente, adaptarmo-nos, já que este nosso canto, para lá da intrínseca responsabilidade individual e colectiva que a cada um compete, tem uma expressão reduzida ao nível das emissões que se encontram na base do fenómeno. Resta-nos assim abraçar, o melhor que pudermos, este nosso papel de “figuração” na contemporânea luta de classes climáticas.

E, dentro deste jardim à beira-mar plantado, o Algarve é um caso ainda mais particular.

Sendo a região portuguesa em que mais se faz sentir a influência mediterrânica, é também aquela em que, fruto desse mesmo contexto, existe uma maior exposição aos riscos decorrentes de fenómenos climáticos, ampliados por alterações de padrões já de si marcados por incerteza e violência. Junte-se a isso um modelo paisagístico de ocupação e de exploração dos recursos que optou por ignorar os limites decorrentes dessa condição genética, e o cenário é delicado.

À cabeça desta vulnerabilidade encontra-se a temática dos recursos hídricos, tradicionalmente pelos períodos de seca – como aquele que até há pouquíssimo tempo atravessámos e do qual, embora ainda não completamente safos, já não nos lembramos porque entretanto caíram umas pingas – e pela sobrecarga de consumo que sobre eles fazemos incidir, mas também pelas cheias que ocorrem aquando das típicas precipitações torrenciais, referindo apenas os aspectos mais imediatos.

Mas depois temos muitos outros factores de exposição, como a concentração da ocupação humana no litoral, incluindo em ilhas-barreira móveis, a artificialização de áreas sensíveis do ponto de vista biofísico (como a rede hidrográfica) ou o despovoamento das paisagens serranas e a progressão da acumulação descontrolada de combustíveis que propicia a progressão de grandes incêndios.

Porque a região também visita a tia Cremilde, até já investiu uma pipa de massa num Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve. Que depois ignora paulatinamente, como bem demonstra a obsessão de boa parte dos decisores regionais com uma nova barragem quando se fala de água, embora o Plano demonstre como essa solução é a que representa a menor eficácia, com maiores investimentos (construção e manutenção) para resultados mais tardios e fortes externalidades negativas associadas.

Na ressaca da actual pandemia, a devastação económica e social será tremenda no Algarve. Todo o actual discurso prospectivo de recuperação se desenvolve em torno da continuação e até intensificação dos erros estratégicos que conduziram a região à actual fragilidade e dependência, revelando que a tão falada mudança de paradigma e estruturação do Algarve para enfrentar os desafios futuros num contexto climático em mutação acelerada enfrenta sérios riscos de atropelamento pela “urgência” (nunca há tempo para pensar).

Por outro lado, é certo que nada muda da noite para o dia. E que a natureza globalizada das dinâmicas económicas, a par da própria escala da região, não permite imaginar rumos que levem a novos modelos paisagísticos e de actividade, que permitam uma resolução de base ecológica para os desafios económicos, sem uma integração em contextos mais amplos. Aqui, o Pacto Verde Europeu representará uma oportunidade única, principalmente através do Mecanismo e Fundo de Transição Justa.

Ou então apenas mais uma oportunidade perdida.
​
Enquanto não temos vitórias efectivas para comemorar, celebremos então a vitória moral que é o regresso dos EUA à mesa global de Paris.
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Não tarda, “isso” vai acontecer aqui, ou o caudal ecológico na política

18/1/2021

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"O Grande Ditador" (1940), com Charlie Chaplin
Por Gonçalo Duarte Gomes

​Os livros são uma consciência. E, arriscando no esoterismo, são conscientes. Só assim se explica que, tantas vezes, entrem nas nossas vidas com uma oportunidade plena.

Aconteceu-me recentemente com o livro de Sinclair Lewis, cuja edição em português é intitulada “Isso não pode acontecer aqui” (Dom Quixote, 2017). É um livro escrito nos Estados Unidos da América durante os anos da Grande Depressão, e publicado pela primeira vez em 1935.  


Retrata a subida ao poder de um populista que, alicerçado numa bem engendrada campanha comunicativa, explorando as fraquezas e desigualdades inconfessadas da América de então, consegue ganhar as eleições de 1932 ao candidato Roosevelt e ao Presidente Hoover, instaurando uma progressiva ditadura violentamente repressiva, de inspiração e pendor fascista e nacional-socialista.

É um livro perturbador, por ser tão actual. Não apenas nos processos ilustrados – é considerado profético relativamente à eleição de Trump, praticamente um século antes da mesma, e longe da era da comunicação – mas, principalmente, nas causas que levam um povo a aceitar ceder a sua liberdade em troco de promessas que, verdadeiramente, nunca são cumpridas.
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Ora, em Portugal, o ritmo da agenda política dos últimos tempos, que, muitas vezes, anda ao ritmo das redes sociais, tem sido marcada pelo populismo. Pelo populismo dos populistas e pelo populismo dos que, dizendo-se o seu contrário, o combatem com populismo – mas um “populismo certo” ou “de bem”, no seu entender.

Exemplo mais recente e abrangente foi a campanha dos lábios pintados, dinamizada, fundamentalmente – lá está, temos que o abraçar – nas redes sociais.

Através de uma boca insinuante e desrespeitosa para com Marisa Matias, André Ventura, qual menino Tonecas de andaime, tentou fazer uma graçola ordinária acerca da maquilhagem da candidata (a mesma que, tempos antes, só não lhe chamou pai, em directo, em horário nobre, num debate para as eleições presidenciais), enquanto fazia o mesmo em relação a todos os outros candidatos, com variados níveis de baixaria.

Talvez para evitar discutir ideias, que manifestamente têm andado arredadas destas lides, e dar ânimo a campanhas mortiças, muitos aproveitaram o caso para ver nisto um ataque à condição feminina, até mesmo uma agressão aos direitos humanos (diminuindo aqueles que verdadeiramente o são, numa crescente tendência de esvaziamento de significância das palavras) – tomara os avós bêbados, os esqueletos fantasmas ou os operários betos terem tantos defensores! Marisa Matias viu-se assim transformada numa Elizabeth Arden do espaço virtual, emulando o relato segundo o qual a pioneira empresária da cosmética teria distribuído batom vermelho às sufragistas que, em 1912, marchavam diante da sua recém-aberta loja na 5.ª Avenida, em Nova Iorque.

Visualmente poderosa e comunicacionalmente estrondosa, a campanha alastrou a vários sectores, e até oponentes políticos aproveitaram, de forma solidária, a boleia promocional. Podendo dizer-se que nunca é demais defender os direitos da Mulher – o que é verdade – para mais num contexto em que ainda muito há a fazer até que se possa falar de equidade, o que é facto é que o jogo, se assim o quisermos entender, acabou a ser jogado nos termos do adversário.

Porque, em demagógico contragolpe, mais do antecipado e calculado, Ventura veio dizer que, em vez de se pintarem lábios vermelhos por frivolidades – não era seguramente a ofensa como arma de campanha que estava em causa, porque os agora ofendidos haviam aplaudido as ofensas de Marisa em sentido contrário – deviam pintar-se lábios de preto pelos cancros que afligem o regime, tais como corrupção (excepto os casos em que o próprio tem algum tipo de envolvimento), favorecimento da banca (Luís Filipe Vieira excluído, como sabemos) ou a falta de preparação do Serviço Nacional de Saúde no quase ano que antecedeu o actual momento da pandemia, pese embora se tenham gasto, comme il faut, milhões e milhões.

Como qualquer jargão regado com a dose certa de verdade para esconder as verdadeiras intenções, pegou como contrafogo no pasto seco que é o confronto político destes dias.

O caudal ecológico é um conceito aplicado à gestão de cursos de água, regra geral perante a perspectiva do seu represamento num determinado ponto, que pretende estimar a percentagem do caudal médio dessa linha de água que deve continuar a fluir livremente, de forma a garantir o abastecimento que salvaguarde a subsistência e protecção de espécies e ecossistemas a jusante. Se quisermos, qual o fio de água que deve passar na torneira para que se possa matar minimamente a sede.

Na política já vamos tarde para aplicar o mesmo conceito.

Há muito – tal como na América de Sinclair Lewis ou de… Trump – que as elites estão tão entretidas a tratar dos seus interesses e agendas sectárias, que negligenciam os mínimos que garantem às pessoas dignidade nas suas vidas e, principalmente, esperança num futuro melhor. Nesse processo, abrem-se fendas na confiança que o grosso das pessoas deposita nos processos e instituições democráticas, ou em coisas como ciência ou factos. Passa a valer tudo.

E assim, quando o elevador social está sistematicamente ocupado pelos mesmos, aqueles que inapelavelmente têm que ir pelas escadas – ou até resignar-se a não abandonar nunca o rés-do-chão – cedo ou tarde predispõem-se a aceitar a promessa de boleia com que um qualquer ascensorista de monta-cargas lhes acene, mesmo que vazia de intenção.

Pior, os eternos habitantes do piso térreo podem mesmo aceitar um dia a proposta, infinitamente mais atrevida, e baratinha, de um qualquer trolha político com uma carrinha de caixa aberta e umas ferramentas reluzentes, de demolição de todo o edifício democrático, para posterior (re)construção, agora ao gosto dos esquecidos. Que, obviamente, nunca acontecerá, ficando depois todos a viver na rua, expostos às agruras do Inverno que, invariavelmente, uma ditadura, seja de direita ou de esquerda, representa.

Tornou-se assim abismal, de resto, a quantidade de pessoas que, nesta campanha labial, assumiu não ter o hábito de votar, mas que neste sufrágio – ah, o heroísmo – até vão fazer o favor de exercer o dever que até agora negligenciaram. Todas as eleições são importantes, mas foram todas as que antecederam esta, e os seus resultados, o berçário da actual situação.

Os populismos são difíceis de tratar (inevitavelmente, alguém trará à baila o paradoxo da tolerância, sempre importante nesta reflexão) pois, como boa parte das desculpas, evitam-se na origem, mais do que se resolvem. Porque têm que ser compreendidos e atacados nas suas causas, e não apenas nos sintomas.

Não sei que lábios se podem pintar, ou de que cor, para combater, esse sim, flagelo.

Só talvez recomendar a leitura de textos como este, de Sérgio Sousa Pinto (“A República à deriva”, Gradiva, 2020), e a receita que contêm.
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