Lugar ao Sul
  • Sobre nós
  • Autores
  • Convidados
  • Personalidade do Ano a Sul
    • Personalidade de 2017
  • Contactos
  • Sobre nós
  • Autores
  • Convidados
  • Personalidade do Ano a Sul
    • Personalidade de 2017
  • Contactos

Bem-vindo

Há 80 anos o Algarve era bom para passar férias… no Inverno!

16/6/2021

2 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Não há muito tempo, num destes debates em formato remoto a que a pandemia já nos habituou, ouvi alguém afirmar convictamente que tínhamos todos de nos começar a libertar do discurso clássico e, aparentemente já muito fora de moda, de que “o Algarve é mais do que sol e praia”.

Esta reivindicação, como sabemos, é muito comum por entre todos os que consideram que a região tem muito potencial para além do clássico turismo estival centrado em torno das praias mais badaladas. Ou seja, em termos turísticos, há mais para oferecer, seja uma oferta mais vocacionada para o interior algarvio, ou até para as suas singularidades históricas, culturais e patrimoniais; e em termos não-turísticos, o Algarve ou está largamente subaproveitado noutros potenciais sectores económicos, e/ou verifica-se uma discrepância gritante entre as actividades que se praticam e a necessária preservação dos recursos e valores naturais e patrimoniais da região (como, por exemplo, o rumo que leva a exploração agrícola intensiva).

Confesso que fiquei algo perplexa com a peremptória afirmação, embora compreenda o seu alcance. A evidente noção de que o Algarve tem de ser mais do que sol e praia já é antiga e, em termos teóricos, o “sol e a praia” constituem um paradigma que já está mais do que ultrapassado, de tal forma é óbvio que se encontra esgotado. Mas, e em termos práticos? Considerando que climas amenos e praias bonitas há muitos pelo mundo fora, tem a região algarvia realmente apostado numa oferta turística realmente diferenciadora, que valorize as suas singularidades próprias, ou continua a depender quase única e exclusivamente de um turismo mais massificado que tanto poderia ir para Albufeira como para Biarritz?

Eu apostaria mais nesta última hipótese, por isso não creio que o paradigma esteja já, de todo, ultrapassado, de tal forma não existe realmente uma mudança substantiva que concorra num sentido diferenciador. Ou, pelo menos, ainda não… A prova maior é que, chegada a época estival, já só se fala da retoma turística durante os três meses de Verão, da lotação dos hotéis, do problema das hordas de ingleses que ora chegam, ora partem, consoante as luzes verdes dos corredores aéreos… Se a estratégia de retoma da economia regional, fragilizada pela pandemia, se centra somente nos três meses de Verão, o que teremos nós, afinal, para oferecer noutras épocas do ano, de forma a combater a sazonalidade?

Cumpre aqui recordar que o paradigma turístico a que nos habituámos a partir da massificação das décadas de 60-70 do século passado nem sempre foi este. Em períodos anteriores, quando as qualidades turísticas da região se começaram a evidenciar, os motivos que se invocavam para fazer do Algarve um destino turístico estavam sobretudo relacionados com a beleza da sua paisagem, com as suas especificidades culturais e com a tipicidade das suas gentes e localidades. O clima, sim, também era frequentemente invocado, mas – e espante-se o leitor! – dizia-se que o Algarve era bom para passar férias no Inverno!

Um excelente exemplo destas virtualidades turísticas regionais, que hoje parecem tão distantes da nossa realidade, encontra-se bem espelhado na Panorama, Revista portuguesa de arte e turismo, que se começou a publicar em 1941. O nº 23, publicado em 1945, era parcialmente dedicado à região algarvia e o autor desse artigo, Américo Nogueira, num lampejo clarividente, referia-se ao algarve como a “Grande zona turística do futuro”, escrevendo que “se há região que reúna avultado número de condições para uma intensa e progressiva exploração turística, é, sem nenhuma dúvida, essa luminosa e suave faixa algarvia, com as suas três zonas geograficamente diferenciadas: a Serra, o Barrocal e o Litoral”. 

As condições a que o autor se referia e que explica, que a posteriori se revelaram muito menos clarividentes do que a acepção inicial, eram as seguintes: o clima, o património histórico-cultural, a tipicidade de algumas localidades algarvias e a paisagem natural. Para se justificar, recorria às descrições detalhadas do Guia de Portugal, de 1927, alusivas a esses tópicos, acrescentando oportunamente as suas próprias considerações.
​
Assim, quanto ao clima, relembra que o Algarve é particularmente requerido no Inverno, embora isso não deva dissuadir o visitante de aí ir noutras épocas do ano:
​“Diga-se, embora, que o Algarve «é uma das mais admiráveis estações de inverno de toda a Europa, muito superior, pela amenidade da temperatura hibernal, à Côte d'Azur e à Riviera di Ponente» - corno se lê nos guias que não mentem; mas nem por isso deixe de lá ir quem deseje e possa, noutra qualquer estação do ano, gozar as delícias da beira-mar”.

Imagem
Imagem
Imagem

​A singularidade do património edificado, fruto de uma herança histórica muito específica, não fica esquecido nas considerações:
​“A própria arquitectura urbana, nas mais características povoações algarvias, onde a impecável brancura das casas, as açoteias e as chaminés rendilhadas evocam a longa permanência dos árabes e o poderoso influxo da sua civilização”. 

​Para o autor, o Algarve merecia visita turística sobretudo pelas suas povoações mais típicas: Olhão, Loulé, Alcantarilha, Moncarapacho e, como curiosidades arqueológicas, Silves e Milreu; a estas, acrescenta Alte, que considera estar ainda por descobrir e valorizar:
​“Assim, quando há anos se dizia: - «Se vai ao Algarve, não deixe de visitar Olhão, a terra cubista por excelência, que se diria inventada por Picasso na sua primeira fase inovadora; e vá também apreciar as açoteias e as chaminés de Loulé, que são das mais bonitas que se encontram em toda a província; e gaste algumas horas a desfrutar as graças plásticas das aldeias de Moncarapacho e Alcantarilha... » sabe-se, agora, que esse conselho era incompleto, devendo-se acrescentar que se impõe, para se fazer uma ideia mais ampla e mais justa do pitoresco algarvio, um passeio pelas ruas de Alte, numa noite de luar”.
Imagem

​Da paisagem, invoca-se o arvoredo “quase cosido à terra”, composto de figueiras, alfarrobeiras, amendoeiras, e invoca-se o extenso cultivo, que se multiplica em vinhedos, hortas, searas, vergéis, onde amadurece a melhor laranja, a melhor romã e a melhor uva do país. Uma paisagem com uma flora de grande variedade:
​“Junto do litoral, predominam os pinheiros mansos, baixos e de espessas copas; nas serranias abundam os sobreiros, os azinheiros e os medronheiros, encontrando-se ainda noutras zonas - principalmente nas terras de Monchique - carvalhos e castanheiros. Ninguém ignora que a figueira é uma das mais típicas espécies botânicas da província, mas poucos sabem que a paisagem algarvia é valorizada por outro atractivo singular: a adelfeira (ou loendro), pequeno arbusto de flores cantantes e de macia folhagem que prefere adornar as margens bucólicas dos ribeiros”.

Em suma, naquela época a região era valorizada turisticamente por motivos que hoje, em vão, invocamos como importantes, nomeadamente pela sua paisagem natural e pela sua herança histórica e cultural.  É óbvio que não podemos desvalorizar o facto de as nossas praias e clima serem um dos maiores atractivos que actualmente temos para oferecer… Mas essa não pode ser a única aposta estratégica do turismo na região, tal como o turismo, per se, não pode continuar a ser a única aposta estratégica da economia regional. 

*Fonte bibliográfica das imagens aqui reproduzidas: Panorama, Revista portuguesa de arte e turismo, nº 23, 1945. Disponível online na Hemeroteca Digital de Lisboa.
2 Comments

“Vendam o Estádio, façam um Hospital”

14/4/2021

3 Comments

 
Por Andreia Fidalgo
Imagem

A reivindicação não é minha, embora me pareça justa. Está pichada em pleno Parque das Cidades, onde se ergue o fantasmagórico Estádio do Algarve, outrora construído para receber o Euro 2004.

Desse evento propriamente dito, o Estádio apenas recebeu três jogos: dois da primeira fase e um dos quartos-de-final. Depois disso, o espaço recebeu alguns outros eventos públicos que, com o passar dos anos – e nunca tendo sido abundantes! –  se têm tornado cada vez mais escassos.

A sua construção não foi isenta de controvérsias. Logo à época, muito se discutiu sobre a validade de um investimento de muitos milhões de euros para um evento necessariamente efémero, não apenas para a construção deste estádio, mas também de outros que pelo país fora se fizeram. O tempo viria a dar razão às vozes críticas, com os estádios a entrarem em processo de abandono e colapso. A discussão da utilidade destes equipamentos e as vozes que se erguem contra a ideia de que são um “sumidouro” de dinheiros públicos, ainda continuam, pois, actuais.

Em 2010, noticiavam-se as dificuldades da Câmara Municipal de Loulé e da Câmara Municipal de Faro para garantir o pagamento das despesas de manutenção do Estádio do Algarve, que rondavam os 10.000€ diários. Apesar de tudo, ao longo de todos estes anos, o facto é que os dois municípios algarvios se esforçaram, com sucesso e meritoriamente, para manter essa infra-estrutura operacional.

No entanto, eu não venho aqui hoje para falar do estádio propriamente dito, embora me pareça que, de facto, esteja largamente subaproveitado e necessite de revitalização (ou, em alternativa, de uma empreitada para o mandar abaixo de vez!). O que me traz aqui hoje é toda a envolvente dessa infra-estrutura, designada por Parque das Cidades.

Além das lógicas e necessárias zonas de parqueamento automóvel, o Parque das Cidades foi criado com o objectivo de constituir uma zona de lazer, na qual existe, inclusivamente um parque infantil, mas que é sobretudo vocacionada para a actividade física. O espaço verde é dotado de equipamentos de manutenção, de um campo de treino de basquetebol, de um campo de treino de futebol, além da passadeira vermelha bem longa que apela aos que praticam ciclismo e corrida.

À partida, todos estes elementos parecem altamente positivos e benéficos para os habitantes dos dois municípios que podem usufruir de todas essas vantagens… Sendo assim, qual é o problema?

Enquanto utilizadora regular do Parque das Cidades, onde vou fazer as minhas corridas, não posso deixar de me insurgir contra o elevado estado de degradação e abandono a que foi votada toda essa zona de lazer. Toda a zona verde e os equipamentos de manutenção estão degradados. Os parques de estacionamento, sobretudo os mais escondidos, indiciam serem palco frequente para actividades sexuais e, quiçá, para outras actividades menos lícitas. A sensação de insegurança, quer para um utilizador solitário – como é o meu caso – quer para um passeio em família, é tremenda, e confesso que a determinadas horas tenho mesmo medo de lá ir. Por isso mesmo, não posso deixar de me perguntar acerca da verdadeira utilidade daquele espaço, na medida em que, gerido com dinheiro público, deveria servir verdadeiramente para o usufruto dos cidadãos.

Ao longo dos anos, muito se tem falado sobre a necessidade de dinamizar o Parque das Cidades. O seu Plano de Pormenor prevê a construção de unidades hoteleiras, o que em muito beneficiaria o intuito de se fazer desse espaço um centro de estágios para equipas de futebol. Precisamente nesse mesmo sentido, em 2017 arrancava o projecto de construção de um centro de treinos… A obra, iniciada e alardeada pelos municípios de Faro e Loulé em ano de eleições autárquicas, parou pouco tempo depois e encontra-se agora totalmente ao abandono. Portanto, mais um excelente contributo para o estado de degradação generalizado.

O Plano de Pormenor do Parque das Cidades também previa albergar outras infra-estruturas de elevada importância, como o Hospital Central do Algarve. O tal Hospital Central prometido desde 2002. A cronologia desta saga, publicada no site da Administração Regional de Saúde do Algarve, é, no mínimo, insólita. Vejam-se as suas primeiras entradas:​
2002 – Por Despacho do Ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, são constituídos os Grupos de Coordenação Interdepartamental para o lançamento das parcerias público-privadas, que inclui o Grupo Interdepartamental para o lançamento de uma nova unidade hospitalar no Algarve a desenvolver no Parque das Cidades Faro/Loulé (Despacho 19946/ 2002 de 10 de Setembro de 2002);

2003 – O Ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, aprova a escolha do terreno para a construção do novo Hospital do Algarve no Parque das Cidades Faro/Loulé (11 de Março de 2003);
​

 2003 – É celebrado um Acordo Estratégico de Colaboração para o lançamento do novo Hospital do Algarve a localizar no Parque das Cidades Faro/Loulé sob a forma de Parceria Público-Privada, entre o Ministério da Saúde representado pela Administração Regional de Saúde do Algarve e as Câmaras Municipais de Faro e Loulé (12 de Março de 2003)

Volvidos quase 20 anos, continuamos sem ver indícios do tal Hospital Central, nem no Parque das Cidades, nem em qualquer outro local. Mas uma coisa temos como certa: o Parque das Cidades continua a ser um sumidouro de dinheiro público. E isto, per se, é algo que nos devia preocupar a todos, cidadãos, e em particular aos munícipes de Faro e de Loulé.

Seria bom, e já que estamos novamente em ano de eleições autárquicas, apelar a que ambos os municípios e respectivos candidatos esclareçam os cidadãos sobre os projectos futuros para este espaço… E que não sejam meramente promessas vãs de projectos que nunca se concretizam. Porque seria excelente se, de facto, todos nós pudéssemos usufruir do Parque sem medos, tirando o máximo partido de todos os benefícios que tem para oferecer.
Imagem
Imagem
Imagem
Imagem
Imagem
3 Comments

O Reino do Algarve: uma geografia da indiferença

10/3/2021

4 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Nos últimos tempos, não têm faltado notícias sobre os efeitos nefastos da pandemia e do confinamento obrigatório no Algarve. Por ser uma região altamente dependente do sector turístico, é também a região portuguesa mais afectada economicamente, com o desemprego a atingir valores muitíssimo elevados e preocupantes.

De acordo com os dados do Instituto do Emprego e Formação Profissional, no final de Janeiro estavam inscritos, no Algarve, 33.571 trabalhadores. Nada mais, nada menos, do que mais 61,3% do que no mesmo mês do ano passado, quando a pandemia ainda não nos tinha assolado.

No ano de 2020, a taxa de desemprego no Algarve foi a mais elevada de todo o país, na ordem dos 8,3%, quando a média nacional se fixou nos 6,8%. A somar a este cenário desolador, o risco de micro e pequenas empresas falirem é muitíssimo elevado… Muitos negócios não se conseguirão certamente reerguer depois de tantos duros golpes.

Seria de esperar que, perante uma situação tão complicada em que as fragilidades regionais ficaram a descoberto, o Governo tivesse uma especial atenção para com o Algarve. Nesse sentido, a 21 de Julho do ano passado, António Costa anunciava um “programa específico para a região do Algarve” de 300 milhões de euros destinado ao apoio da economia regional. Mas, como as palavras, leva-as o vento, mais de seis meses transcorridos e parece que do dito apoio, nem há sinais. No entretanto, a população algarvia que se amanhe…

A famosa “bazuca” de que tanto se fala, isto é, o Plano de Recuperação e Resiliência, parece que pouco contemplará as necessidades específicas do Algarve, nem apresenta para a região qualquer visão estratégica, nem grandes indícios de qualquer tentativa de coesão territorial. Ao Algarve caberá directamente a magra fatia de 1,7% dos milhões que estão destinados ao país. Parco, muito parco perante uma situação calamitosa e que tenderá a agravar-se nos tempos vindouros.

Serve este preâmbulo para iniciar aqui uma breve reflexão sobre os contornos históricos da evidente negligência e indiferença do “centro” perante as necessidades das regiões “periféricas” – nas quais o Algarve se inclui, mas não é exemplo único. O binómio centro-periferia aplica-se tão bem aos dias de hoje como se aplicou durante séculos à história algarvia: um centro que absorve e esgota recursos, promovendo os seus próprios interesses –  raras vezes coincidentes com os interesses do todo –, e uma periferia que é sucessivamente negligenciada e escamoteada.

Em suma, o Algarve encerra em si o exemplo perfeito, pelos piores motivos possíveis, da máxima queirosiana “Lisboa é Portugal. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!”. Ou seja, na sua versão popularizada, “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”.

Imagem
Mapa do Reino do Algarve, c. 1760. Disponível em https://purl.pt/1384

Já é sobejamente sabido que o Algarve foi a única região do país que teve a designação simbólica de “Reino”, como se de um Reino à parte de tratasse, mas sem nunca o ter sido efectivamente. A designação simbólica de “Reino do Algarve” perdurou desde a conquista cristã do território algarvio, nos meados do século XIII, até à implementação da 1ª República, em 1910.

Mas o simbolismo teve repercussões mais efectivas. Passado o fulgor das expedições marítimas, no século XV e primeira metade do XVI, em que o Algarve saiu temporariamente da situação de periferia para se tornar centro e palco das navegações, rapidamente foi relegado, nos séculos seguintes, para uma posição periférica e secundária, totalmente esquecido pelos poderes do centro.

Em períodos anteriores da nossa História, em que as vias de comunicação eram altamente deficitárias, o Algarve apresentava-se como uma região distante, de difícil acesso e contacto, muito devido às suas condições geográficas, em que a delimitação administrativa coincide com a delimitação biofísica de extensas serranias a norte, o rio Guadiana a este e o Atlântico a sul e a oeste.

Assim, durante grande parte da Época Moderna, o Algarve não foi, de facto, um Reino à parte, mas fosse devido ao isolamento, ou fosse devido ao esquecimento, acabou por desenvolver idiossincrasias muito próprias que em muito o aproximavam dessa condição individualizada: a sociedade algarvia tinha condutas diferenciadas, pagavam-se aí impostos como se a região fosse um reino estrangeiro, e até a correspondência que para aí seguia pagava os portes de envio iguais à que ia para Castela.

A situação diferenciada era de tal forma evidente que, durante o pombalismo e numa estratégia absolutista de reforço do poder do centro, o Algarve iria despertar o interesse da Coroa. Seria então criado, nas décadas de 60 e 70 de Setecentos, um plano de reforma económica e administrativa da região, no qual se intentaria acabar com a diferenciação regional, integrando o Reino do Algarve no restante Reino de Portugal. Foi nesse âmbito que se procurou abolir, por decreto, a “odiosa diferença” entre o Reino do Algarve e o Reino de Portugal plasmada numa discriminação aduaneira que era largamente prejudicial à região.

Porém, a diferença não cessou com um plano que se gorou. Nem tampouco a indiferença. Findo o ímpeto reformista pombalino, a região algarvia retomou a sua posição periférica, permanecendo negligenciada e esquecida pelo centro. Quer-me parecer, aliás, que nunca saiu dessa condição até aos dias que correm.
​
E perante a sucessiva negligência das necessidades regionais, ano após ano, década após década, muitas vezes dou por mim a pensar se parte dessa atitude de desprezo do centro perante a periferia algarvia não estará, efectivamente, imbuída de raízes muito mais antigas, com séculos e séculos de existência. Será caso para perguntar: até quando? 
4 Comments

O Elogio da Loucura que há em nós

10/2/2021

4 Comments

 
Por Andreia Fidalgo
Fala a Loucura: O que quer que os vulgares mortais digam de mim – e não sou tão tola que não saiba quanto de mal se ouve dizer da Loucura, mesmo entre os mais loucos – no entanto sou eu, só eu, a única que com o meu espírito alegro os deuses e os homens. A prova é evidente, pois mal apareci diante deste numerosíssimo auditório, logo os olhos de todos brilharam com uma súbita e insólita alegria, tão de imediato aliviastes o sobrolho carregado, e o vosso amável riso me aplaudiu alegremente que, na certa, me parece que todos os que vejo ao meu redor estais, como os deuses de Homero, ébrios pelo néctar, misturado com um pouco de nepente, enquanto instantes antes estáveis sentados, ansiosos e tristes, como se tivésseis escapado do antro de Trofónio.

​Erasmo de Roterdão, O Elogio da Loucura

Quem nunca ouviu falar de Erasmo de Roterdão ou d’O Elogio da Loucura? A obra foi escrita pelo humanista em 1509, publicada pouco tempo depois, e tornou-se numa das obras mais famosas do Renascimento europeu, ainda lida nos dias de hoje.

Erasmo de Roterdão foi um dos mais destacados intelectuais do seu tempo. O seu percurso deve ser entendido no âmbito de um movimento cultural que dominou o Renascimento e que ficou conhecido por Humanismo. Depois de uma época medieval marcada pelo teocentrismo, o Humanismo, muito inspirado pelos ideais da Antiguidade Clássica, devolveu o protagonismo ao homem, colocando-o no centro do mundo, numa postura marcadamente antropocêntrica.

Numa perspectiva abrangente, o Humanismo corresponde à valorização do papel do homem neste mundo, à valorização das suas capacidades enquanto ser racional, e à valorização da sua acção transformadora.

Nada disto significou, porém, que o Cristianismo tivesse perdido primazia. Erasmo de Roterdão dialogava particularmente com o Humanismo Cristão – a que, por sua causa, também podemos chamar de Erasmismo, uma vez que foi ele o seu principal percursor.

O Humanismo Cristão, na visão erasmiana, pautava-se pela ideia de que a prática religiosa formalista da Idade Média deveria ser transformada numa prática religiosa interior e pessoal. Isso só seria possível de atingir, em pleno, pelo homem que fosse formado pela literatura clássica e transformado pelo Evangelho. As línguas e as literaturas clássicas seriam, pois, essenciais na formação do homem, mas era na Bíblia se encontrava a moralidade e o sentido da vida.

Este pensamento erasmiano encerrava em si a ideia de que era possível a renovação e reforma da sociedade daquela época através da síntese entre a cultura clássica e o pensamento cristão. Erasmo era, assim, crítico do seu próprio tempo. Porém, enquanto pacifista que era, nunca defendeu uma cisão da Cristandade, como a que viria a acontecer com a Reforma de Lutero.
Imagem
Ilustração de Hans Holbein, o Jovem, para O Elogio da Loucura, 1515.

O Elogio da Loucura insere-se precisamente nesta lógica reformista e crítica de Erasmo. Através da ironia, do sarcasmo e da sátira, o humanista cria uma personagem mitológica, a Loucura, filha de Pluto, deus da riqueza e de Neotetes, ninfa da Juventude, que se faz acompanhar pelo Amor-próprio, pela Adulação, pelo Esquecimento, pela Preguiça, pela Volúpia, pela Irreflexão, pela Moleza, pelo Festejo e pelo Sono Profundo.

Erasmo utiliza a Loucura para explicar o comportamento de todos os que são criticados ao longo da sua obra, e a sua crítica passava por toda a sociedade, sendo que nem o Papa, nem os Príncipes escaparam incólumes. A Loucura, que fala na primeira pessoa, afirma que “nenhum homem pode viver de modo feliz se não for iniciado nos meus ritos e se não me tiver por propícia”.
“A Fortuna ama os homens insensatos, os mais audazes, e agrada-lhe os que dizem: «A sorte está lançada!”. A Sabedoria, por outro lado, torna-os tímidos e é por isso que vedes os sábios no meio da pobreza, da fome e do fumo; vivem esquecidos, sem glória, sem simpatia. Os loucos, pelo contrário, nadam em dinheiro, tomam o governo do Estado, numa palavra, prosperam sob todos os aspectos”.

​Erasmo de Roterdão, O Elogio da Loucura

​Diria que a leitura de O Elogio da Loucura surpreende ainda nos dias de hoje pela sua actualidade. É certo que a sociedade é, actualmente, muito diferente daquela que Erasmo criticava, assim como os problemas que nos assolam são muito distintos. No entanto, a natureza humana parece não ter sofrido grandes alterações. Não raras vezes dou por mim a pensar que tanto do comportamento errático, alucinado e completamente amoral que por aí se vê, inclusivamente nas mais altas esferas, só se pode dever à presença de uma boa dose de loucura.

Não será esta uma boa forma de o explicar? Na Loucura se contém a ganância, a sede de poder, de riqueza e de fama, o “salve-se quem puder”, a falta de amor ao próximo, a falta de humanidade. A Loucura exclui a sabedoria, exclui o bom-senso, exclui o racionalismo. A Loucura exclui o Humanismo e os seus valores intrínsecos de defesa da dignidade humana. A Loucura corrompe e destrói. Alastra-se, essa, sim, numa verdadeira pandemia difícil de exterminar.

Mas, ainda há que a contrarie, quem lute contra essa corrente, quem coloque os valores humanistas à frente de tudo…

Termino, recordando as palavras de António Rosa Mendes, grande Mestre que me iniciou no pensamento de Erasmo de Roterdão:

“Para Erasmo, só a moral poderia salvar o mundo da autodestruição. As suas lições não perdem a sua premente actualidade e todos os que hoje reclamam a subordinação da política à moral são seus discípulos”.
​


NOTA: A edição citada neste texto foi: Erasmo de Roterdão, O Elogio da Loucura, edição bilíngue, trad. do latim e notas por Alexandra de Brito Mariano. Lisboa: Nova Veja, 2012.
4 Comments

No início era o medo… Agora, a indiferença

20/1/2021

1 Comment

 
.Por Andreia Fidalgo

Quando em Março de 2020 fomos assolados pela pandemia, e pouco se sabia ainda sobre a Covid-19, o clima generalizado foi de medo. Medo da doença, medo dos seus efeitos ainda desconhecidos, medo pela nossa saúde, medo pela saúde do próximo. Isso levou-nos a confinar quase sem que nos fosse pedido, pois assaltava-nos o medo de ver acontecer em Portugal o mesmo que as imagens nos telejornais nos mostravam que estava a acontecer em Itália: hospitais a rebentar pelas costuras, profissionais de saúde em total situação de desgaste físico e psicológico, a verem-se na posição de ter de escolher que doentes tratar, pois não era possível tratar todos… e mortes, muitas mortes a lamentar.

Assistimos atentamente ao crescimento do número de infectados e do número de mortos. Em Portugal, em Espanha, em França, em Inglaterra… em toda a Europa, em todo o mundo. Tínhamos medo que fossemos nós, que fosse alguém da nossa família, que fosse algum amigo. Tivemos medo, muito medo.
Imagem
O Grito. Edvard Munch, 1893.

​Depois do medo, veio a indiferença. Muito sorrateiramente, foi-se instalando. Proliferaram as fake news, os negacionistas, o movimento dos “médicos pela verdade” – que depois, foi-se a ver, e de médicos tinham pouco ou nada.

Afinal a Covid-19 não mata assim tanta gente. Afinal, se estivermos saudáveis, não corremos grande perigo. Afinal, só os mais velhos é que morrem – fomos dizendo, em jeito de desculpa, como se a vida dos idosos, ou dos que possuem outras doenças fosse menos valiosa do que a vida de todos os outros… de todos nós… Como se fosse menos valiosa do que a dos ditos saudáveis.

Fomos incentivados – inclusivamente pelo Governo, note-se – a ir à praia, a curtir o Verão. Era seguro, diziam. Há-de vir uma segunda vaga, mas não se preocupem agora com isso. É preciso é recuperar a economia, gastar dinheiro na restauração, na hotelaria, pôr as gentes a circular, mostrar aos estrangeiros que somos um destino Covid-free.

A normalidade quase que parecia restaurada e a segunda vaga, que se sabia que viria, parecia uma realidade longínqua. Pouco ou nada se fez para a acautelar.

O “milagre português” iria certamente repetir-se… Imagino que só possa ter sido esta a ideia subjacente a uma total inacção de quem nos governa para acautelar a segunda vaga que se sabia que viria. Sobretudo no que respeita ao SNS, já de si tão fragilizado.

Só que não.

O “milagre português”, que de milagre pouco teve, não se repete. E não se repete, porque no início era o medo, agora, a indiferença.

Em plena segunda vaga, ficámos indiferentes aos números, indiferentes às imagens de hospitais portugueses em estado caótico. O estado de emergência banalizou-se por completo. Disseram-nos que podíamos circular no Natal, e então celebrámos o Natal à portuguesa, com as habituais reuniões familiares. Um sintomazinho aqui, outro acolá, foram ignorados, porque era Natal e ninguém leva a mal… Era Natal e Menino Jesus, com o aval do Estado Português, haveria de operar algum milagre que impedisse a Covid-19 de circular nessa época.

Depois veio o Ano Novo, e era preciso celebrar, até porque já temos uma vacina. Era preciso que acreditássemos que 2021 nos irá trazer coisas boas, quando no fundo, bem sabemos, será um ano desastroso. Era preciso que nos enganássemos a nós próprios, nem que fosse por uns dias.

Passada a euforia, veio a realidade dos números, que colocam actualmente Portugal numa posição de topo, a nível mundial, no maior número de infecções por milhão de habitantes. O “milagre português” virou o “desastre português”. Mas nós, quase indiferentes, vamos prosseguindo.

"Renovação do estado de emergência": qual é a novidade?

"Novo período de confinamento obrigatório, como o de Março e Abril": grande coisa… podemos sempre passear a trela sem cão e dizer não estamos com o juízo todo. Quem é que nos vai impedir?


A indiferença generalizada, alimentada pelo cansaço, é agora a regra. Já não há arco-íris e unicórnios, nem movimentos #vaificartudobem. Há, apenas, indiferença. É a indiferença que nos leva a manter uma aparente normalidade num mundo que está caótico. No fundo, bem lá no fundo, todos sabemos o desastre que temos entre mãos, mas preferimos normalizá-lo, retirando-lhe a importância que realmente tem. E fingir que a vida segue igual, quando não está.

Sei que os meus habituais leitores esperariam um apontamento sobre História, como é comum. Não esperariam um pequeno texto que mais parece um desabafo. Mas esta indiferença também tem tudo a ver com História. Quando aqui há pouco tempo fiz um estudo sobre o abandono dos recém-nascidos na Roda, entre finais do século XVIII e primeira metade do XIX, uma das coisas que mais me chocou foi a constatação de que havia um abandono anónimo muito massificado e que esse abandono era, na verdade, uma alternativa ao infanticídio. 

À luz dos dias de hoje, essa realidade é absolutamente hedionda… no entanto, à época também se explicava, pelo menos parcialmente, pela indiferença. Indiferença de quem vivia na miséria e não tinha o que comer, ou como alimentar os filhos… indiferença generalizada de uma sociedade perante a morte infantil, porque a morte infantil era quase a regra e não a excepção. As mães não se apegavam emocionalmente aos seus filhos recém-nascidos, porque a probabilidade de que estes morressem era muito elevada. E, por isso, muitas permaneciam-lhes indiferentes… E qual é a mãe que, actualmente, acharia isto possível?

A indiferença, muitas vezes, é a única forma de lidar com os danos emocionais que nos causam as dificuldades do mundo que nos rodeia, particularmente quando somos colocados perante situações mais extremas. 

No entanto, a indiferença pode ser muito perigosa, sobretudo quando tem subjacentes questões de saúde pública. Não podemos deixar que esta indiferença nos leve ao desleixe, à irresponsabilidade, ao não cumprimento das regras. Por muito que questionemos – eu também o faço –, não há como negar que a situação é caótica. O nosso SNS está à beira do caos.
​
Não podemos ficar indiferentes. Temos de nos proteger. Temos de proteger o próximo. Temos de respeitar os profissionais de saúde que estão esgotadíssimos. E, acima de tudo, temos de acreditar que vamos ultrapassar a situação e que haverá tempo para confraternizar. Quanto mais rápido agirmos, mais rápido esse dia chegará.
1 Comment

Entre o território e a economia regionais:  a escravatura no Algarve

16/1/2021

0 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Já por várias vezes tenho referido que, no que à história do Algarve diz respeito, importa resgatar o dia 16 de Janeiro do esquecimento. Em 1773, quando o projecto de Restauração do Reino do Algarve empreendido pelo Marquês de Pombal estava no seu auge, o dia 16 de Janeiro foi absolutamente fundamental em termos legislativos e redefiniu por completo a configuração administrativa regional.

Por alvará régio de 16 de Janeiro de 1773 foram criados os concelhos de Lagoa e de Monchique, que repartiram entre si parte do vasto território do então muito empobrecido concelho de Silves. Esse mesmo alvará extinguia o concelho de Alvor, que passou a lugar do termo de Vila Nova de Portimão. Estas alterações do mapa administrativo da região foram de tal forma importantes que, tal como sabemos, ainda hoje configuram parte do Algarve administrativo tal como o conhecemos.

Por outro lado, nesse mesmo dia se estabeleceriam, por decreto real, as condições da Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve, criada no dia antecedente.  Esta companhia foi a última das companhias monopolistas pombalinas a ser constituída. Substituía o anterior sistema das almadravas e garantia o controlo e intervenção do Estado sobre os peixes considerados privilegiados ou reais, a corvina e o atum, os mais lucrativos, reservando aos restantes o comércio livre.

Também por alvará de 16 de Janeiro, Pombal procurou obviar uma situação algo preocupante na região: a exploração que, por intermédio de contratos ilícitos, os grandes senhores fundiários faziam dos lavradores, cobrando-lhes censos considerados usurários. Estabeleceu-se então uma junta que procurava averiguar a legitimidade dos ditos contratos e abolir todos os que não estivessem em conformidade com a lei.

As intervenções pombalinas que no Algarve se fizeram por essa altura deixam antever uma situação de grande desigualdade social, em que predominava uma pequena elite que era simultaneamente a proprietária da terra e a que ocupava os cargos da governança local. Pombal preocupou-se particularmente em limitar este grupo de “senhores poderosos” – assim descritos nas fontes da época – e acudir às necessidades daqueles que por eles eram explorados.

Ora, perante uma situação social de grande desigualdade na região, talvez não seja assim tão estranho que, no meio da legislação que então saiu sobre o Algarve no dia 16 de Janeiro de 1773, assim como nos dias imediatamente anteriores e imediatamente subsequentes, se encontre uma outra peça legislativa de altíssimo interesse para o contexto nacional, mas que também se refere muito particularmente ao contexto regional: um alvará desse mesmo dia, 16 de Janeiro, alusivo à escravatura. Leia-se o seu preâmbulo:
“… depois de ter obviado pelo outro Alvará de dezanove de Setembro de mil setecentos sessenta e um aos grandes inconvenientes, que a estes Reinos se seguiam de se perpetuar neles a Escravidão dos Homens pretos, tive certas informações, de que em todo o Reino do Algarve, e em algumas Províncias de Portugal, existem Pessoas tão faltas de sentimentos de Humanidade, e de Religião, que guardando nas suas casas Escravas, umas mais brancas do que eles, com os nomes de Pretas, e de Negras, e outras Mestiças; e outras verdadeiramente Negras; para pela repreensível propagação delas perpetuarem os Cativeiros por um abominável comércio de pecados, de usurpações das liberdades dos miseráveis nascidos daqueles sucessivos e lucrosos concubinatos, debaixo do pretexto de que os ventres das Mães Escravas não podem produzir Filhos livres, conforme o Direito Civil.

Imagem

Este alvará havia sido, portanto, precedido de um outro, datado de 19 de Setembro de 1761, que abolia o comércio de escravos para o Reino de Portugal (mas não para o Império, note-se!). Agora, determinava-se a abolição gradual da escravatura, também no Reino: todos os que nascessem da publicação da lei em diante seriam inteiramente livres, mesmo que as mães e avós permanecessem sob o jugo da escravidão.

Não vou entrar aqui pelas controvérsias associadas ao pioneirismo – ou não! – desta legislação pombalina, nem do seu contributo para a abolição gradual da escravatura e do comércio de escravos em Portugal, que apenas se viria a efectivar bem mais tarde. Assumo, com toda a humildade científica, que nunca estudei aprofundadamente o assunto para conseguir sobre ele tecer algum considerando que realmente tenha algum valor, ou acrescente algo de novo ao que os especialistas já sobre ele disseram.

No entanto, não me parece de somenos importância notar a alusão específica ao Reino do Algarve – a que se juntam, é certo, “algumas províncias” não discriminadas –, o que denuncia que, provavelmente, os abusos perpetrados contra os escravos seriam particularmente acentuados nesta região do país, assim como notar que o alvará aparece associado a uma data e a um período específico em que o Reino do Algarve estava a ser alvo de um pacote de medidas legislativas que visavam a sua recuperação económica e reorganização administrativa.

Coincidência? Não creio… As questões que se me oferecem deixar em aberto, para futuro esclarecimento e investigação, são as seguintes: até que ponto as averiguações específicas sobre a situação social e económica na região algarvia teriam despertado novo interesse de Pombal para o problema da escravatura, tendo acabado por resultar numa nova peça legislativa a esse respeito?

Considerando que, em larga medida, é possível caracterizar a sociedade algarvia da época como uma sociedade desigual, pautada por grandes desequilíbrios e pela exploração que os grandes proprietários faziam aos lavradores que amanhavam as terras, será assim tão pouco plausível considerar que aí se perpetrassem de forma mais acentuada os cativeiros e os abusos?
​
Não tendo respostas para as questões, termino com a alusão de que ainda hoje nos rodeiam, bem próximos, exemplos de exploração, de abuso e de escravidão, que se escondem sob as mais diversas formas. Se o século XVIII, isto é, o século das Luzes em que Pombal se insere, inicia toda uma reflexão civilizacional que procurava caminhar para uma sociedade mais humanitária e mais justa, estamos hoje ainda muito longe desses ideais. Estaremos a afastar-nos cada vez mais deles?
0 Comments

No dia de São Martinho, lume, castanhas e vinho

11/11/2020

1 Comment

 
Por Andreia Fidalgo

Diz o ditado popular que para haver São Martinho, não pode faltar “lume, castanhas e vinho”. Tradicionalmente, neste dia fazem-se os magustos, que são grandes fogueiras em torno das quais se juntam as famílias e os amigos e onde se assam as castanhas, fruto tão apetecido desta época. Além disso, a acompanhar, bebe-se jeropiga, água pé ou vinho novo, ou seja, é também o dia no qual se prova o vinho da última vindima.


A lenda, todos conhecemos: um soldado romano chamado Martinho de Tours (séc. IV), num gesto de profunda humanidade, teria dividido o seu manto com um mendigo num dia muito chuvoso e gelado; o gesto foi divinamente compensado com o súbito desaparecimento da tempestade, substituída por um sol esplendoroso. O bom tempo durou três dias e o milagre ficou conhecido como o “Verão de São Martinho”. Desde então, sempre por esta altura do ano, somo agraciados com alguns dias estivais em pleno Outono.
Imagem
São Martinho e o mendigo, de El Greco, c. 1597-99

​Na região algarvia, como em qualquer outra, esta tradição também se celebra. Mas falar de castanhas, neste lugar ao sul, significa falar obrigatoriamente de Monchique, onde o clima é propício à existência de castanheiros, ainda que actualmente a área que estas árvores aí ocupam seja muito inferior à de outros tempos.

Para invocar os castanheiros de Monchique, façamos uma breve incursão a alguns testemunhos.
​
O botânico alemão Heinrich Friedrich Link, na sua viagem ao Algarve realizada em 1799, ao chegar a Monchique, descrevia:
“Deixa-se o cume da serra à direita e, no sopé da mesma, depois de se terem feito quatro boas léguas no deserto, encontra-se subitamente um vale estreito com castanheiros, campos cultivados e casas. O vale inflecte para a esquerda e chega-se ao lado sul da serra, que panorâmica! Na encosta, por entre bosques de castanheiros, jardins totalmente cobertos de laranjas e limões, rodeada de fundos vales românticos banhados por riachos sussurrantes, encontra-se a encantadora povoação de Monchique. (…) Os bosques de castanheiros servem aqui principalmente para a engorda dos porcos (os presuntos de Monchique são também afamados), as castanhas não são tão usadas como alimento, por isso as árvores não se enxertam como em Portalegre. Em parte cultivam-se os castanheiros como mata de corte, porque depois se utilizam frequentemente como estacas nos vinhedos, como aros e em outras necessidades semelhantes. Uma série destes bastões está constantemente a ser transportada em burros para o Algarve.” (Notas de uma viagem a Portugal, Lisboa, BNP, 2005, pp. 253-254)

​O testemunho de Link corrobora a realidade algumas décadas anterior, quando pela época do Marquês de Pombal se tomaram várias medidas para beneficiar a produção e comercialização das madeiras de castanheiro da zona de Monchique, então muito apreciadas pela sua qualidade e muito requeridas, inclusivamente para construção da iluminista Vila Real de Santo António.

Mas este testemunho também nos deixa perante uma outra realidade: à época, as castanhas não seriam muito utilizadas como alimento pela população, servindo essencialmente para uma outra função igualmente importante que era a alimentação dos porcos.

Algures com o passar do tempo, o hábito mais generalizado de consumir a castanha ter-se-á introduzido e firmado nas tradições locais. Em 1955, José António Gascon escrevia o seguinte:
“No Dia de Todos os Santos (1 de Novembro) saía muita gente para os campos para tratar dos “magustos” que, como se sabe, são fogueiras ao ar livre, em que se assam castanhas, havendo o costume de as pessoas que neles tomavam parte se tisnarem umas às outras, por brincadeira, com carvões retirados das fogueiras, depois de apagadas. (…) No Dia de São Martinho (11 de Novembro) costumava e costuma ainda abrir-se a prova e venda do vinho novo.” (Subsídios para a Monografia de Monchique, Faro, Algarve em Foco Editora, 1993, p. 363)

Além do consumo de castanhas, este testemunho relembra-nos uma outra realidade igualmente comum: os magustos têm origem nas comemorações do Dia de Todos os Santos. Segundo o etnógrafo José Leite de Vasconcelos, o magusto era um testemunho de um antigo sacrifício em homenagem aos mortos: nalgumas localidades a tradição era preparar-se, à meia-noite, uma mesa com castanhas para que os mortos da família as pudessem ir comer, sendo que mais ninguém nelas tocava porque se dizia que estavam “babadas dos defuntos” (Opúsculos Etnologia, vol. VII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1938).
​
Felizmente, nos dias que correm, comer a castanha pelo Dia de Todos os Santos ou pelo São Martinho já não tem um significado tão lúgubre. O magusto é, sobretudo, um momento convivial, de alegria. E bem precisamos da alegria de uma boa degustação, em dias tão tristes como os que vivemos.

Que as restrições a que estamos sujeitos e o confinamento não sejam motivo para nos impedir de comer castanha assada acompanhada de uma boa jeropiga, nem de usufruir do Verão de São Martinho. A castanha até pode estar cara, mas pelo menos o sol ainda é gratuito.
1 Comment

O Pão-por-Deus que o Halloween amassou

30/10/2020

0 Comments

 
​Por Andreia Fidalgo

Por vezes, a identidade cultural perde-se, porque não há quem dela tome conta. Nem mesmo as instituições às quais supostamente competiria tal tarefa difícil. Sempre me fez confusão esta coisa do Halloween. Quando eu era miúda, era coisa que não se celebrava, e máscaras só vê-las mesmo no Carnaval. Actualmente, são as próprias escolas a fomentar uma tradição importada, incitando os miúdos a vestirem-se a rigor, sob o consentimento praticamente unânime dos pais que só querem ver os petizes felizes e contentes (e quem os pode culpar?!).

No entanto, se pararmos para pensar um pouco, talvez fizesse mais sentido que estas mesmas instituições escolares se preocupassem em manter vivas as tradições portuguesas (e, felizmente, ainda há algumas que o fazem!), transmitindo-as aos mais novos, para que com o passar dos anos estas não se percam por completo.

Por cá, em certas regiões, havia um ritual igualmente interessante e já muito esquecido, chamado Pão-por-Deus (o nome nem sempre era este, variava de terra para terra). Trata-se de um peditório que decorria na manhã do Dia de Todos os Santos, no qual as crianças e os pobres batiam à porta das casas da sua vizinhança, com um saco de pano, pedindo pão por Deus, em troca de orações pelos mortos. As dádivas que recebiam não eram unicamente pão, ou bolos: podiam ser frutos da época ou mesmo moedas.

O peditória era acompanhado de versos, tais como:

"Pão por Deus,
Fiel de Deus,
Bolinho no Saco,
Andai com Deus."


Quando era oferecida a dádiva, podia-se responder:

"Esta casa cheira a broa
Aqui mora gente boa.
Esta casa cheira a vinho
Aqui mora algum santinho."


Quando a dádiva era recusada, podia dizer-se o seguinte:

"Esta casa cheira a alho
Aqui mora um espantalho
Esta casa cheira a unto
Aqui mora algum defunto."


Na ausência de resposta:

"Se tem pão e não quer dar
Deus lhe parta o alguidar
Quando estiver a amassar."


Esta tradição tem raízes antigas, provavelmente proveniente de rituais pagãos, posteriormente incorporados no Cristianismo. Há notícia, no século XV, de que havia a obrigação de distribuir pelos pobres, no Dia dos Fiéis Defuntos, o pão por Deus. O terramoto de 1 de Novembro de 1755 é apontado por alguns estudiosos como um momento-chave para cimentar a tradição do pão por Deus, visto que a miséria e a fome por ele gerados teriam incitado os peditórios.

Uma tradição actualmente quase esquecida, substituída por um ritual importado, de origem anglo-saxónica. Não seria bem mais interessante reavivá-la?
Imagem
Foto retirada do site da Câmara Municipal de São Roque do Pico, onde esta tradição ainda se mantém viva.

Sobre o Pão por Deus e todo o ritual do Dia dos Mortos, veja-se a interessante tese de Mestrado de Margarida Dourado Dias, O ritual do Dia dos Mortos na aldeia transmontana de Meixide : a expressão estética da lembrança e a procura da imortalidade, Universidade do Minho, 2009.
0 Comments

No Dia de Todos os Santos, a terra tremeu: o Algarve e o terramoto de 1 de Novembro de 1755

28/10/2020

1 Comment

 
Por Andreia Fidalgo

Na História de Portugal há um antes e um depois do terramoto de 1 de Novembro de 1755. Precisamente no Dia de Todos os Santos, há 265 anos, a terra tremeu e deixou grande parte da capital portuguesa destruída. Centenas de edifícios ficaram reduzidos a ruína. Milhares de vidas se perderam sob os escombros. Os que conseguiram fugir, aterrorizados, dos edifícios que desabavam, para perto do Tejo, foram surpreendidos pelo tsunami que se seguiu. Findo o tsunami, vieram os incêndios, que conduziram parte da capital à devastação total. 

Foi um duro e inesperado golpe para Lisboa e para o Reino de Portugal.

Esta catástrofe veio agravar uma situação económica que já por si era bastante calamitosa. Estima-se que o montante das perdas económicas causadas pelo terramoto possa ter correspondido a cerca de 75% do valor do produto interno bruto do ano de 1755*, o que é bastante revelador do seu impacto nefasto na economia do país.

Porém, foi também o terramoto que abriu caminho à ascensão de Sebastião José de Carvalho e Melo – mais tarde Marquês de Pombal – como o homem de força do governo de D. José. Sob a sua alçada seriam implementadas várias medidas económicas de carácter vincadamente proteccionista, destinadas a valorizar os sectores produtivos (agricultura e a indústria), a diminuir a dependência económica do exterior, a reduzir os desequilíbrios da balança comercial e, de uma forma geral, a favorecer o reforço do próprio Estado.

Havia que centralizar o Estado e recuperar economicamente o Reino, que já entrara numa situação de crise antes do terramoto, e que com este se agravara ainda mais.
Imagem
Ruínas de Lisboa após o Terramoto de 1 de Novembro de 1755 [Disponível na BNP Digital: http://purl.pt/27605]
Ao contrário do que costuma ser geralmente salientado, o terramoto de 1755 não teve apenas impacto destrutivo em Lisboa. Com o epicentro localizado a sudoeste de Sagres,  também a região algarvia foi muito afectada por esta catástrofe e pelo tsunami subsequente. Sobretudo a zona do barlavento: na cidade de Lagos, a devastação foi tal que os relatos da época dão notícia de uma urbe onde quase todos os edifícios ficaram em ruínas e se registaram algumas centenas de mortos. Mas também semelhante cenário se teria registado nas cidades de Faro e Tavira, onde inúmeras edificações religiosas e civis foram afectadas e também se registaram dezenas de baixas.
​​
De Faro, à época com cerca de 7000 habitantes e onde o sismo contabilizou 200 vítimas mortais, chegou-nos o testemunho impressionante do intelectual Damião António de Lemos Faria e Castro, aí residente:
“Em poucos minutos foi vista a formosa Faro um monte de ruínas, ela arrasada pelos fundamentos, raros edifícios escaparam, estes ficaram moídos. A devoção do dia havia chamado grande concurso às Igrejas, aonde muita gente ficou sepultada debaixo das suas abóbadas. As casas caídas que tomavam todo o vão das ruas, esmagou outra grande quantidade. Na praça se abriu uma rotura a que não se achava fundo” [1786].

A região demoraria muito tempo a recuperar desta catástrofe… Se em Lisboa, os esforços para recuperar a cidade foram imediatos, no que ao Algarve diz respeito, só na década de 70 é que teria alguma atenção por parte da Coroa e de Pombal, que então elaborou um plano para a sua “Restauração”. Plano este de curta duração e com escassos efeitos, visto que D. José morreu em 1777 e o Marquês foi imediatamente afastado do poder político, sem ensejo de continuidade de muitos dos projectos reformistas em curso.

Desta forma, quando em 1789 D. Francisco Gomes de Avelar é nomeado bispo do Algarve, ainda se viria a deparar com uma região onde os efeitos do terramoto eram bem visíveis, sendo que grande parte da sua acção pastoral se viria a concentrar precisamente na reconstrução de muitos edifícios religiosos que ainda padeciam, na viragem do século XVIII para o XIX, dos danos causados pelo terramoto.

A morosa recuperação da região encontra-se também atestada no relato do botânico e naturalista alemão Heinrich Friedrich Link, que visitou o Algarve em 1799. Sobre a cidade de Lagos, por exemplo, Link registava o seguinte:
"Quando o grande terramoto destruiu Lisboa no ano de 1755, o mar também aqui se agitou, entrou de rompante por uma enseada em direcção a terra e devastou a região em redor. (…) Vive muita gente de condição na cidade e vêem-se algumas belas casas, mas também ainda lugares deixados vazios pelo terramoto de 1755, que muito fez sofrer esta cidade”.
 
O terramoto deixou, pois, marcas profundas na região algarvia nas décadas seguintes. Mas será que podemos dizer que, por exemplo, os problemas económicos da região, ou mesmo do país, nessa época, resultaram única e exclusivamente desta catástrofe imprevista? Não, claro que não, pois embora esta os tenha agravado substancialmente, os problemas eram estruturais e pré-existentes.

Também hoje não podemos dizer que os problemas que enfrentamos perante os desafios levantados pela pandemia, sejam única e exclusivamente derivados dela. Já aqui, numa outra ocasião e num plano mais filosófico, comparei (com as devidas reservas!) o terramoto de 1755 com a Covid-19: ambos constituem eventos extremos e inesperados, desencadeados pela natureza, que colocam em causa a ordem natural do mundo e inspiram reflexões algo semelhantes; mas, além disso, ambos tiveram/têm consequências graves sob o ponto de vista social, económico e político.
​
Sendo certo que o Algarve precisa, actualmente, de uma atenção especial por parte do governo, dada a fragilidade da sua economia tão dependente do turismo, esperemos, no entanto, que os desafios que a região tem agora de enfrentar não se arrastem, sem resolução à vista e sem intervenção específica, como aconteceu em épocas anteriores da nossa História, de que o terramoto constitui um excelente exemplo.
 
* De acordo com: José Luís CARDOSO, “Pombal, o terramoto e a política de regulação económica”, in Ana Cristina ARAÚJO et. al. (org.), O Terramoto de 1755: impactos históricos. Lisboa: Livros Horizonte, 2007, pp.165-181.

Para uma descrição detalhada sobre os efeitos do Terramoto de 1755 no Algarve, veja-se: Alexandre COSTA, Carla SEABRA, Sara NUNES, “O que nos diz a História”, in Alexandre COSTA e Maria da Conceição ABREU (Coords.), 1755 – Terramoto no Algarve. [s.l.]: Centro de Ciências Viva do Algarve, 2005, pp. 13-152.


1 Comment

Por um Algarve com futuro, com os olhos postos no passado

14/10/2020

1 Comment

 
Por Andreia Fidalgo

Não há a menor dúvida de que, na história da região algarvia, há um “antes” e um “depois” do fenómeno turístico. O grande boom do turismo,  a partir da década de 60 do século XX, reestruturou e subjugou progressivamente toda a economia regional, criando o fenómeno da excessiva dependência desse sector que hoje, perante as actuais circunstâncias, não hesitamos em lamentar.

Se, por um lado, somos forçados a aceitar que o turismo foi o principal motor de “desenvolvimento” do Algarve nas últimas décadas, por outro lado também seremos igualmente forçados a reconhecer que, em larga medida, este mesmo turismo também propicia e fomenta alguns dos maiores problemas e desafios que a região tem de enfrentar. E são vários os que poderíamos aqui invocar, tais como, por exemplo: o acentuar das desigualdades económicas e sociais; a precariedade e sazonalidade do emprego; a destruição e ameaça constante ao património cultural e natural da região; a descaracterização urbanística… entre muitos outros. Acima de todos eles, paira sempre, obviamente, a questão da excessiva dependência da economia regional desse sector.

Mas, tal como diz o ditado, não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Por muito interessante que nos pareça, não creio que enveredar por um exercício de história contrafactual possa ser, neste momento, muito produtivo. Isto é, questionar como teria sido o “desenvolvimento” da região sem o “turismo” como o principal ingrediente à mistura será certamente um exercício interessante, mas que não nos leva a lado absolutamente nenhum. Nem creio, tampouco, que procurar culpados, ou tecer acusações de foro político-ideológico, ou até achar que se trata de uma conspiração cósmica (perdoem-me, mas há gostos para tudo!) seja igualmente produtivo. O “mal” já está feito, os problemas já existem, os desafios são constantes e o Algarve assume-se definitivamente como o exemplo máximo de que não se podem colocar todos os ovos no mesmo cesto.

O que há a fazer, agora, em plena crise pandémica, é colocar os olhos no futuro e pensar na melhor forma de se trabalhar no sentido da diversificação da economia regional como, de resto, já tem vindo a ser defendido em diversas ocasiões e em diversos meios, e inclusivamente também aqui no Lugar ao Sul, por vários dos nossos autores.

Colocar os olhos no futuro não significa, claro está, ignorar e desprezar o passado. Há que aprender com os erros cometidos, assim como beneficiar e explorar o que de positivo se fez. Será sempre mais fácil para qualquer um de nós que nos identifiquemos com o passado mais recente, recorrendo à História Contemporânea como uma aliada para a reflexão sobre os tempos que vivemos. Na verdade, é inevitável que o façamos, na medida em que o próprio turismo é fruto da Modernidade e da sociedade de consumo que a caracteriza.

Então e se recuarmos um pouco mais? E se pensarmos na região no contexto de uma economia pré-industrial? E se pensarmos na região antes do desenvolvimento das indústrias, antes do turismo ser sequer uma possibilidade? E se pensarmos num Algarve em que o sol e a praia não eram mais do que elementos de uma bela paisagem e não uma forma de lazer?

Nas economias pré-industriais, os rendimentos encontravam-se alicerçados na terra, nos recursos naturais e na capacidade de exploração e produção a partir desses mesmos recursos. Poderíamos até dizer que essas economias subsistiam precisamente por respeitarem os recursos que tinham disponíveis, retirando daí o melhor proveito possível. Nesta ordem de ideias, poderemos recordar que o Algarve subsistiu economicamente, durante séculos, com base na produção dos frutos tradicionais, de entre os quais o figo era o mais importante, e com base nas pescarias, particularmente do atum, mas também da sardinha e de outros peixes “miúdos”.
Imagem

Para ilustrar esta realidade, hoje relembro aqui um documento de autoria do Engenheiro José de Sande Vasconcelos (1738-1808), disponível online na Biblioteca Nacional Digital. Trata-se de um Mapa resumido dos géneros que entraram e saíram deste Reino do Algarve, entre Julho de 1780 e Junho de 1783. Em suma, neste documento estão registados todos os géneros que foram comercialmente transaccionados durante o referido período. Não o vou analisar exaustivamente, mas deixo aqui algumas das principais considerações que, na minha óptica, se podem fazer:

  1. O figo [em passa] é, de longe, o fruto através do qual se obtinha o maior rendimento.
  2. Além do figo, há que referir outros géneros igualmente rentáveis, como o atum salgado ou fresco, assim como outro tipo de pescado; o azeite; a amêndoa; a fruta de espinho (laranja); o sumagre; a cortiça...
  3. Os géneros que dão entrada correspondem necessariamente aos que escasseavam na região, ou não eram por cá produzidos: vários tipos de vasilhame, ferro, madeira, tecidos, entre outros; é significativa a entrada de trigo, centeio, cevada e milho, de forma a fazer face à escassez endémica de cereais de que sempre padeceu a região algarvia.
  4. O Algarve afirma-se como um local de passagem nas rotas comerciais, com géneros que denunciam a sua origem quer no  Atlântico Norte, quer no Mediterrâneo.

Posto isto, talvez a consideração mais significativa que se possa retirar da leitura deste documento diga respeito ao saldo da balança comercial francamente positivo, pois se de entradas (importações) se contabilizam 120.041$007 réis, de saídas (exportações) somam-se 408.986$998 réis.

Não obstante o facto de devermos olhar de forma crítica para a fonte documental em causa e, inclusivamente, de termos em consideração que a sociedade daquela época era marcada por uma forte desigualdade de rendimentos que se reflectia numa componente social igualmente muito assimétrica, parece-me que é sempre bom recordar que o Algarve, mesmo “isolado” como um reino à parte que era – embora, supostamente, apenas de forma simbólica –, teve capacidade de manter a sua vitalidade económica, aproveitando e rentabilizando os recursos naturais disponíveis. Soube fazê-lo sempre, ao longo dos séculos, explorando os seus principais frutos, e investindo nas pescarias. E soube fazê-lo mais tarde, com o desenvolvimento industrial, reinventando-se através das pescas com destino às conservas, e da exploração do sobro com destino à indústria corticeira, sem nunca, no entretanto, deixar de investir no pomar de sequeiro tradicional.

Isto da reinvenção, da diversificação e do respeito pelos recursos disponíveis foi algo em que, nós, os modernos (ou não seremos já nós os pós-modernos?!) falhámos redondamente! Falhámos, por exemplo, quando deixámos que o sector turístico – frágil e sempre dependente de terceiros – se transformasse na nossa principal e quase exclusiva fonte de rendimento; falhámos, por exemplo, quando desinvestimos sucessivamente nas pescas; falhámos, por exemplo, ao permitir o alargamento do regadio numa região tradicionalmente de sequeiro, comprometendo inclusivamente a existência daquele que é o mais vital recurso de todos: a água.

As fragilidades regionais estão, actualmente, mais a descoberto do que nunca, com a actual crise que enfrentamos e bastará, para tal, recordar que o Algarve foi a região onde mais aumentou o desemprego, nos últimos meses. Até porque isto de se dizer que “falhámos” na estratégia económica adoptada nas últimas décadas não é uma mera abstracção… Por detrás da abstracção existem pessoas, existe o mundo real e  o drama humano! Pessoas que perderam empregos, famílias que passam necessidades… Por isso mesmo, pergunto: até quando sacrificaremos o bem-estar dessas pessoas, em prol de modelos económicos esgotados, que não têm os interesses do todo em vista?
1 Comment

Paisagem cultural com uma pitada de figo à mistura: o Cerro de São Miguel

29/9/2020

2 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Hoje, 29 de Setembro, celebra-se o dia de São Miguel. Não é meu costume relembrar os dias dos santos – ou, no caso em particular, dos arcanjos –, mas parece-me que este é especial e merece ser recordado, pela importância que detém na herança cultural da região algarvia.

Não há no Algarve quem não conheça o Cerro de São Miguel, também designado por Monte Figo, ou até, mais coloquialmente, por “cerro das antenas”. Este sobressai como o ponto mais alto de um conjunto de elevações de orientação paralela ao litoral, denominado Serra de Monte Figo, que se estende pelos concelhos de Faro, Loulé, São Brás de Alportel e Olhão. Com 411 metros de altitude, o cerro situa-se na freguesia de Moncarapacho, concelho de Olhão, e constitui um miradouro privilegiado do sotavento algarvio: em dias claros, é possível avistar-se, daí, uma ampla extensão do território algarvio e contemplar as três sub-regiões naturais que tradicionalmente caracterizam o Algarve – o litoral, o barrocal e a serra – e cuja subdivisão tem em consideração as diferentes e particulares características geológicas da região.
Imagem
Pormenor da Carta Corográfica do Reino do Algarve de João Baptista da Silva Lopes, 1842.

​Por ser um elemento de elevado destaque paisagístico, a importância do Cerro de São Miguel como um ponto geográfico de referência é atestada desde a Antiguidade Clássica. Tudo indica que este cerro aparece pela primeira vez referenciado num escrito datado do século VI a.C. (I Idade do Ferro), um Périplo massaliota que se conservou na posterior composição poética Orla Marítima, de Avieno, autor latino do século IV d.C., e que contém a seguinte descrição:
“Em seguida estende-se o cabo consagrado a Zéfiro. Por fim, o cume da elevação chamada Zéfiris, cujas altas cristas sobressaem no cimo da montanha. Grande intumescência rasga os ares, envolvida sempre por uma espécie de névoa que lhe oculta o cume em nuvens. (…) Todo o que, de barco, ultrapassa a elevação de Zéfiris e penetra nas águas do nosso mar, de imediato é impelido pelo sopro do favónio".

​A interpretação geográfica mais comummente aceite destes versos aponta no sentido de que o cabo consagrado a Zéfiro não se trataria exactamente de um cabo, mas sim de um conjunto de elevações, mais concretamente a serra que se estende de Loulé a Tavira, sendo que o “cume da elevação chamada Zéfiris” seria identificado como o Monte Figo. Assim sendo, a tomar-se como válida esta interpretação, podemos considerar que o Monte Figo, devido à sua visibilidade, constituiu desde a Antiguidade um ponto de referência para a navegação, sendo que no século VI a.C. o culto que lhe era atribuído era o de Zéfiro, personificação grega do vento de oeste, propício à navegação.

É certo que o cerro se terá mantido como referência geográfica para a navegação durante muitos séculos. Por volta de 1600, na História do Reino do Algarve, Henrique Fernandes Sarrão refere-se-lhe da seguinte forma: “Os navegantes se guiam por este serro e lhe chamam Monte do Figo per outro nome e por ele tomam a barra de Faro”. O Monte Figo seria, por essa altura, tal como certamente sempre o tivera sido e assim continuou a ser, um ponto de referência importante para navegantes e para mareantes locais, que de dia por ele se guiavam para entrar na barra de Faro, como se de um autêntico farol se tratasse.
Imagem
Imagem

O mesmo Fernandes Sarrão relembra que “neste serro há muitas árvores de fruito, e, em roda, muitas terras de pão” – de facto, entre as razões que explicam o povoamento do cerro na sua vertente norte, destaca-se certamente um solo propício ao cultivo dessas “árvores de fruito”, típicas de sequeiro. Outras razões se podem acrescentar, tais como a configuração do terreno, o poço com água potável e a acessibilidade. Não se trata propriamente do local mais aprazível para se constituir habitação:  na sua vertente sul, que apresenta grande declive, apenas alguns figueirais, pinheiros pouco desenvolvidos, medronheiros, carrasqueiras e arbustos de vários tipos o povoam; na vertente sudoeste, ainda mais hostil, o cerro está praticamente desprovido de vegetação; ainda assim, boa parte dele, sobretudo a vertente norte, é favorável ao cultivo de pomares de sequeiro.

Ainda que o pomar de sequeiro tradicional do Algarve não detenha, actualmente – e muito infelizmente! –, a importância que teve durante séculos no cultivo agrícola da região, ainda podemos imaginar, observando esta longa vertente norte, o que teria sido esse cultivo no seu auge, que a polvilharia certamente de figueiras, oliveiras, amendoeiras e alfarrobeiras, árvores constituintes do pomar misto de sequeiro típico da região. Aqui, há que dar o devido destaque à figueira, uma vez que o figo, para além da importância que detinha na alimentação da população algarvia, foi durante século o produto de maior exportação à escala regional.

O figo é, na minha perspectiva, o elemento chave para compreender o cerro de São Miguel, a dualidade toponímica que o caracteriza e o seu simbolismo no sotavento algarvio. É que esta paisagem cultural é, também, uma paisagem sacralizada… Será o figo, pela sua importância na economia local, também ele um fruto sacralizado? Ora vejamos.

Ao aceitarmos que o Zéfiris da Orla Marítima de Avieno possa ser identificado com o Monte Figo, depreendemos naturalmente que a sacralização dessa paisagem vem já desde tempos bem remotos. Algumas interpretações apontam no sentido de que o culto do Zéfiro se teria mantido até ao domínio cristão, altura em que teria passado para o do arcanjo São Miguel, o que não seria estranho, pois este arcanjo representa um sincretismo muito comum para o culto dos ventos.

Não podemos esquecer, porém, que entre o século VI a.C. – época em que sabemos com alguma segurança que o cerro era consagrado ao Zéfiro grego –, até ao domínio cristão consolidado no século XIII, existem duas ocupações significativas do território, a romana e a islâmica. Se pensarmos numa região fortemente romanizada, como era o caso, poderemos eventualmente assumir que um possível local de culto ao Zéfiro possa ter-se transformado num local de culto ao Favónio, o seu equivalente Romano, ou mesmo a um qualquer outro deus pagão da mitologia romana. Além do mais, se tivermos também em consideração que o culto ao São Miguel é antiquíssimo e que o próprio Imperador romano Constantino (272-337) – primeiro imperador a professar a fé cristã – lhe dedicou um templo perto de Constantinopla, então por que não assumir, eventualmente, uma origem mais antiga para o culto dedicado a esse santo no cerro? Aliás, durante o período islâmico é facto assumido que esse culto existia, como provável fruto da convivência entre moçárabes e muçulmanos, ou mesmo como resultado de se tratar de um arcanjo também incorporado pela religião islâmica. O culto a São Miguel em pleno domínio islâmico é, na realidade, atestado pela Crónica da Conquista do Algarve, no episódio da conquista de Tavira, datado de 1242, em que os mouros pedem tréguas aos cristãos durante o período do alacil – que corresponde à época das colheitas – cujo término indicado era, precisamente, São Miguel de Setembro.

Nesta Crónica reside também a chave que permite, a meu ver, explicar a existência dos dois topónimos: Monte Figo e São Miguel. “Monte Figo” pode derivar quer do próprio desenho do cerro, que há quem diga que se assemelha a um figo, mas, mais seguramente ainda, deriva do cultivo de figueiras que cobria grande parte do monte, cultivo este que – voltamos a frisar! – constituiu, durante séculos, a mais importante produção regional; por outro lado, tal como podemos ler na Crónica da Conquista do Algarve, é precisamente na altura do alacil que os mouros pedem tréguas aos cristãos para que possam colher as suas “novidades”, época que se estende do mês de Julho até São Miguel de Setembro, que se celebra no dia 29. É nesse dia que se acabam de colher os figos e, no dizer popular “em passando o dia de São Miguel é a figueira de quem quer”, ou seja, aí se inicia também o rabisco, em que qualquer pessoa pode colher das figueiras os frutos que sobraram.

Não parece, portanto, nada acidental que um Monte apelidado de Figo e um São Miguel que celebra o final da colheita desse fruto sejam dois topónimos para um mesmo local; antes pelo contrário, parecem tratar-se esses topónimos de duas faces de uma mesma moeda, pois se o primeiro alude a uma cultura tradicional de sequeiro que aí se praticava, assim como em toda a região, o segundo sacraliza a colheita desse fruto, marcando o seu término. E, sendo o figo a produção mais importante na região, não é de todo de estranhar que na tradição local tenham perdurado, até aos nossos dias, os dois topónimos.
​
Fruto da sacralização do espaço, encontramos ainda na encosta norte uma ermida com o orago a São Miguel, e em tempos teria existido no topo do cerro um cruzeiro, do qual já não subsistem quaisquer vestígios. Quanto à ermida, trata-se de uma modesta edificação, sucessivamente reconstruída ao longo dos séculos, de onde é difícil retirar elementos estilísticos que nos permitam datá-la com alguma segurança; porém, os seus vãos de pedra que formam arcos ligeiramente quebrados parecem sugerir uma construção tardo-medieval, de estilo gótico, possivelmente anterior, portanto, ao século XVI. A singela ermida é composta essencialmente por dois volumes, um correspondente à nave e o outro à capela-mor, este último com uma cobertura muito curiosa, de quatro águas, mas de onde sobressai um invulgar volume cónico feito em argamassa. No interior, nada de grande importância se destaca no recheio, a não ser um painel de madeira com pinturas e dourados do século XVII e uma imagem do padroeiro datada do século XVIII.
Imagem
Imagem

Em tempos, a ermida na encosta e o cruzeiro no topo eram locais onde afluíam com alguma frequência os fiéis. Existem notícias de animadas romarias que se faziam ao local, sobretudo na véspera e dia da sua festa, a 29 de Setembro, relacionadas com a celebração do final das colheitas do figo. Tradições enraizadas no cultivo da terra que se vão lentamente perdendo… Quer a sua realização e quer, inclusivamente, a sua memória.

Por isso mesmo, serve este breve apontamento de hoje para recordar o dia de São Miguel, o tradicional cultivo e colheita do figo e uma paisagem cultural que deles recebe os dois topónimos pelos quais ainda hoje é conhecida. Serve também para reflectir sobre o quanto cuidamos nós das paisagens culturais que nos rodeiam? Uma paisagem ameaçada, no sopé da sua encosta sul, por uma brutal espedrega, como tem vindo a ser notado recentemente; uma paisagem quase abandonada, naquilo que era a ocupação humana e o seu cultivo tradicional de sequeiro, na encosta norte; uma paisagem suja, descuidada e vandalizada no cume dos seus 411 metros de altitude; e, acima de tudo, uma paisagem acerca da qual as tradições e a memória histórica se vão progressivamente desvanecendo.
​

É aqui, precisamente, que surge o grande desafio: como preservar esta paisagem e a memória histórica que ela encerra?
2 Comments

Uma fortaleza submersa na Ria Formosa

2/9/2020

3 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Na passada sexta-feira, o Gonçalo Duarte Gomes registou aqui, no Lugar ao Sul, as suas preocupações quanto ao uso totalmente desregrado da Ria Formosa e as consequências nefastas que as actividades recreativas desorganizadas poderão ter naquele que é um património de todos e que, por isso mesmo, deve ser preservado.

Creio que verdadeiramente se deve entender aqui o conceito de património lato sensu: acima de tudo, o património como algo que herdamos e damos a herdar, o que pressupõe que tenhamos consciência histórica do que nos precedeu, mas também de que o futuro pertence às gerações vindouras; o património como um elemento identitário fundamental, através do qual se gera e mantém o sentimento de pertença de uma determinada comunidade a um determinado local, pelo que a sua preservação se deve assumir como prioritária; e o património na suas múltiplas vertentes, que vão desde o património ambiental, ao património cultural material e imaterial.

A Ria Formosa, pela sua herança e pelas suas características únicas, dialoga com esta concepção mais abrangente de património.

Em termos históricos, por exemplo, seria impossível compreender a lógica de ocupação do território do sotavento algarvio desde os tempos mais remotos sem considerar a presença da Ria Formosa, que, se por um lado possui uma riqueza natural que lhe permitiu a alimentação e a economia das populações ao longo do tempo, por outro lado, é um sistema lagunar com uma morfologia muito própria que constituía uma barreira de protecção estrategicamente aproveitada contra os perigos que do mar ameaçavam quem estava em terra.

No entanto, quanto desse património que resulta da ocupação e exploração multissecular da Ria Formosa não estará já hoje esquecido e até negligenciado?

Hoje decidi trazer aqui ao Lugar ao Sul um breve apontamento sobre a Fortaleza de São Lourenço, que actualmente, além de uns escassos vestígios in situ, quase apenas subsiste na memória da comunidade local. A história desta fortaleza remonta ao período da Guerra da Restauração. Durante a União Ibérica (1580-1640), a costa algarvia tinha ficado algo vulnerável e desprotegida no que respeita à sua defesa militar, pelo que após 1640, com a Restauração da Independência, se procura reforçar militarmente alguns pontos estratégicos de maior fragilidade. É neste contexto que em 1653 se inicia a construção desta fortificação, com o objectivo de vigiar e defender do corso e da pirataria a barra marítima que então dava acesso à cidade de Faro (Barra da Armona ou Barra Grande).
Imagem
Configuração da costa entre a barra da Fuzeta e o Ancão, com a localização da Fortaleza de São Lourenço, in "Fortificações do Algarve", por Baltazar de Azevedo Coutinho, 1798. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Colecção Cartográfica, n.º 211.

É o Eng.º militar Pedro de Santa Colomba que sugere ao então Governador e Capitão Geral do Reino do Algarve que a fortaleza se construísse na ponta de uma elevação de areia, em plena Ria, perto da barra (a sul da ilha do Coco). Como tal, a sua estrutura e alicerces deveriam assentar numa grade de traves de madeira grossa e bem pregada, que seria preenchida com alvenaria miúda, sobre a qual se colocariam lajes a partir de onde arrancariam as paredes. Ademais, a fortaleza deveria compor-se de quatro baluartes.

As obras avançaram, e em Abril de 1654 há notícia de que a edificação estaria prestes a receber artilharia num dos quatro baluartes já concluído. No entanto, em 1657 ainda não estaria totalmente edificada e não demoraria muito tempo a que se começassem a revelar os problemas estruturais de uma construção em areal tão instável e sujeita às intempéries e aos avanços das marés, num sistema dinâmico como o que caracteriza a Ria Formosa. Logo em 1661, o forte teria começado a ruir, o que conduziu a uma posterior reconstrução.
​
Na realidade, toda a história do forte iria assentar nessa dinâmica constante e sucessiva de ruína e reconstrução, ao longo dos séculos XVII e XVIII. Em 1755, o terramoto de 1 de Novembro arrasou por completo a fortificação, mas novamente foi concedida autorização para a sua reconstrução. Nos finais dessa centúria, é interessante observar os desenhos que Baltazar de Azevedo Coutinho, Capitão do Real Corpo de Engenheiros, nos deixou da Fortaleza e sua localização, no Livro “Fortificações do Algarve”, de 1798. Por essa data, a fortaleza tinha planta quadrangular e compunha-se de aquartelamentos, de um paiol de pólvora, de uma capela e de uma bateria artilhada com três peças de ferro de calibre 18, e duas peças de bronze de calibre 6. O desenho da planta regista, ainda, as ruínas de anteriores edificações da fortificação.
Imagem
Planta da Fortaleza de São Lourenço, in "Fortificações do Algarve", por Baltazar de Azevedo Coutinho, 1798. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Colecção Cartográfica, n.º 211.

Em 1821, as fontes documentais dão conta do total estado de ruína desta fortificação, sendo então completamente abandonada e progressivamente engolida pelo mar. Actualmente, ainda dela restam alguns vestígios visíveis na baixa-mar, nomeadamente três bocas de fogo de ferro, sendo que muitas das pedras da anterior edificação foram reaproveitadas pelos habitantes locais para delimitação de viveiros ou construção de habitações; mas acima de tudo, é interessante notar que a memória da Fortaleza de São Lourenço teima em persistir entre a comunidade local, nomeadamente entre os pescadores olhanenses e culatrenses que frequentemente se deslocam ao local para a apanha de polvos e que a ele se referem como “o Forte”.

A persistência da designação de “Forte” e também do topónimo “São Lourenço” na memória da comunidade local evidenciam a presença de uma herança patrimonial que ainda não está totalmente esquecida… Mas há que questionar o quanto dela verdadeiramente se conhece, e se efectivamente não estará deixada à sua sorte e abandono até que dela nada reste…

Este é apenas um exemplo, entre muitos outros, da riqueza e diversidade patrimonial da Ria Formosa. Uma Ria que tem actualmente muito mais a oferecer, além das actividades recreativas prazerosas… Uma Ria que conta uma história multissecular, com alguns testemunhos bem visíveis, mas com muitos outros submersos nas suas águas cristalinas.
 
​
NOTA: Os mais interessados poderão encontrar um estudo mais aprofundado sobre este tema na tese de mestrado em Arqueologia de autoria de Maria de Fátima Claudino, intitulada Forte de São Lourenço (Olhão): Arqueologia e História de uma Fortificação Moderna.
3 Comments

Um mapa do Reyno do Algarve nos finais do século XVIII

19/8/2020

2 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Em pesquisas recentes na Biblioteca Nacional Digital, deparei-me com um interessante exemplar cartográfico, intitulado Mappa Geografico do Reyno do Algarve, de autoria do Eng.º Baltazar de Azevedo Coutinho,  e datado de 1791. Já passei os olhos neste mapa, noutras ocasiões, mas a verdade é que nunca o tinha analisado com a merecida atenção.

É, a todos os níveis, uma peça cartográfica notável, quer pelo nível de informação que contém, quer pela sua beleza artística. Na senda do seu mestre Eng.º José Sande de Vasconcelos, Azevedo Coutinho deixou-nos um mapa que além de cumprir a sua função primordial de reconhecimento da região sob o ponto de vista da defesa militar, deixa também registada informação relevante sobre a organização e divisão administrativa do território e até sobre os recursos económicos aí existentes. Ora vejamos.
Imagem
No que respeita à organização administrativa do território – à qual já aludi anteriormente aqui no Lugar ao Sul –, o mapa é posterior às reformas pombalinas da década de 70 de Setecentos. Por alvará de 16 de Janeiro de 1773, o concelho de Alvor foi extinto e passou a integrar o concelho de Vila Nova de Portimão; o vasto e empobrecido concelho de Silves foi subdividido, dando origem a dois novos concelhos, o de Monchique e o de Lagoa; o lugar de Moncarapacho, dividido entre o termo de Tavira e o termo de Faro, passou a ficar inteiramente sob a jurisdição de Faro. Mais tarde, no Algarve oriental, seria fundada Vila Real de Santo António, oficialmente inaugurada a 13 de Maio de 1776, em cujo termo ficaria incorporado o entretanto extinto concelho de Cacela.

O mapa também reflecte a divisão do território por comarcas, que após a reforma administrativa pombalina se configuravam da seguinte forma: a comarca de Tavira, que incorporava os concelhos de Tavira, Loulé, Castro Marim e Vila Real de Santo António; a comarca Lagos, que contava os concelhos de Lagos, Albufeira, Portimão, Vila do Bispo e Aljezur; e a comarca de Faro, pertença da Casa da Rainha, constituída pelos concelhos de Faro, Silves e Lagoa. Quanto ao termo de Alcoutim, configurava uma excepção na realidade regional, pois à data encontrava-se incorporado na comarca de Beja.

Posteriormente, a organização concelhia do Algarve viria ainda a sofrer duas grandes alterações dignas de referência, que lhe conferiram a configuração que actualmente lhe reconhecemos. Por alvará régio de 15 de Novembro de 1808, o lugar de Olhão foi elevado a vila de Olhão de Restauração, e por alvará de 20 de Abril de 1826 oficializou-se a criação do concelho de Olhão, determinando-se que o seu território deveria englobar as freguesias de Moncarapacho, Quelfes e Pechão, até então pertencentes ao concelho de Faro. Por outro lado, já durante a Primeira República, em 1914, o concelho de Faro ainda veria o seu território ficar mais diminuído com a criação do concelho de São Brás de Alportel, que subtraiu ao concelho a freguesia com essa designação.

A criação dos concelhos de Olhão e de São Brás de Alportel diminuiu substancialmente o território do concelho de Faro, que já de si era bem menor do que outros concelhos algarvios, como Tavira, Loulé ou Lagos. Talvez seja caso para indagar se estes “golpes” não terão contribuído também, aliados a outros factores, para a incapacidade de Faro se afirmar, mesmo na actualidade, no desempenho do seu papel enquanto capital de distrito.

No que respeita aos recursos económicos da região, este mapa regista as principais produções, por concelho e respectiva comarca. Relembra o figo, a amêndoa e a alfarroba com uma produção generalizada a quase todos os concelhos algarvios, oscilando entre a mais intensa ou mais moderada; relembra a excepcionalidade de Monchique, capaz de produzir “toda a qualidade de frutas”, a que acrescem a madeira de castanho, as castanhas e o mel; relembra que a produção de vinho era bastante comum em concelhos como Faro, Albufeira, Lagoa, Portimão, Lagos e Silves; relembra, igualmente, a vocação de algumas localidades na produção de peixe seco e salgado, nomeadamente Vila Real de Santo António, criada especificamente para esse efeito.

Outro pormenor interessante é o facto de este mapa registar, ao longo do desenho da costa, a localização das armações de atum. São sete, as que aparecem registadas: Beliche, Almádena, Torralta, Torraltinha, Faro, Fuzeta e Tavira. Algumas décadas antes, o terramoto de 1 de Novembro de 1755 havia contribuído para a destruição substancial das almadravas algarvias, posteriormente revitalizadas com as reformas pombalinas, através da criação, por alvará de 16 de Janeiro de 1773, da Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve.  Esta foi a última das companhias monopolistas pombalinas a ser instituída, e garantia o controlo e intervenção do Estado sobre o atum e a corvina, reservando às restantes espécies o comércio livre.
​
O mapa apresenta outros mais detalhes por explorar, nomeadamente a nível da toponímia, da orografia e até dos eixos viários terrestres que ligavam (com muita dificuldade), o Reino do Algarve a Lisboa. Deixo aqui o meu convite, ao leitor, para explorar e analisar este belo exemplar cartográfico, que configura um testemunho de muito valor para a compreensão da história regional.
Imagem
2 Comments

Os ingleses no Algarve do século XVIII não iam à praia: comercializavam figos e amêndoas

29/7/2020

1 Comment

 
Por Andreia Fidalgo

Na passada sexta-feira, o Algarve voltou a receber notícias desanimadoras: o Reino Unido decidiu manter Portugal fora da lista dos corredores aéreos, tornando ainda mais negras as já magras potencialidades de recuperação do sector turístico regional.

Neste cenário não há grande margem para dúvidas no que respeita aos impactos negativos para a região. Tal como foi evidenciado pelo presidente da Região de Turismo do Algarve, João Fernandes, o mercado britânico representa, a nível do mercado externo, um terço das dormidas da região (33%) e quase metade dos passageiros que desembarcam no Aeroporto de Faro (49%).

Como recuperar deste golpe? Já várias estratégias têm sido apontadas – inclusivamente aqui, no Lugar ao Sul – a curto e a longo prazo. A curto prazo, passam evidentemente pela promoção do Algarve no mercado interno, com a captação de turistas nacionais, mas também no mercado externo, junto de outros países europeus em que as restrições de circulação não se imponham. A mais longo prazo, a estratégia terá de passar sempre pela diversificação da economia regional, o que permitirá reduzir a excessiva dependência do sector turístico.

A dependência do turismo é, obviamente, um reflexo da contemporaneidade, mas a dependência económica relativamente aos ingleses tem raízes históricas bem mais antigas. A propósito das restrições agora impostas pelo Reino Unido, tem sido por diversas vezes relembrado o Tratado de Windsor, assinado em Maio de 1386 entre Portugal e Inglaterra, e que é considerado a mais antiga aliança diplomática do mundo ainda em vigor.

Porém, no que diz respeito à problemática económica, é verdadeiramente significativo invocar os acordos e tratados assinados entre Portugal e a Inglaterra após a Restauração da Independência, em 1640: por acordo de 1642 e, sobretudo, após o tratado de 1654, aos comerciantes britânicos garantiu-se a liberdade de comércio e a liberdade religiosa, abriram-se os portos portugueses na Europa, mas também na Ásia e na África e facilitou-se o comércio colonial. Caso paradigmático é o da exportação do vinho do Douro, negócio que os britânicos dominariam a partir da segunda metade do século XVII, domínio este que não se limitava apenas ao trato comercial, mas que também envolvia todo o processo produtivo. Com o Tratado de Methuen, em 1703 – que, muito breve nas suas cláusulas, determinava que os portugueses retirariam as restrições à importação dos têxteis ingleses e, em troca, os britânicos reduziriam os direitos de importação do vinho português – assegurou-se a continuidade e hegemonia inglesa no lucrativo negócio do vinho, a que se associavam outros mais géneros.

Estes acordos, particularmente o Tratado de Methuen, transmutaram-se numa presença significativa de homens de negócios britânicos no território português, e acentuaram a dependência económica de Portugal face a Inglaterra.

Neste contexto, o Reino do Algarve não foi excepção. Na realidade, um dos problemas invocados para a ruína económica da região, na década de 70 do século XVIII, era precisamente a forte presença de algumas casas comerciais inglesas, que monopolizavam o comércio dos principais frutos regionais. A principal casa comercial, à época, era a do inglês João Lampriere, que sediara o seu negócio em Faro, apoiado numa rede de comissários distribuídos por todo o Algarve, e exportava os frutos regionais por comissão, sem que qualquer comerciante regional lhe pudesse fazer concorrência. A este somava-se o inglês, João Crispim de nome aportuguesado, que estabelecera uma outra casa comercial em moldes semelhantes à de Lampriere, ou ainda, a título individual, os ingleses João Keating e Parcar Pitts. Alguns destes homens eram oriundos de famílias inglesas que se haviam estabelecido no território algarvio a partir de meados do século XVII: parece ser este o caso, por exemplo, de Parcar Pitts, muito provavelmente descendente de Jan Parcher (Parker), mercador estabelecido em Tavira em 1651.
Imagem

Estes comerciantes ingleses alimentavam as rotas comerciais do Algarve com o Mediterrâneo e, sobretudo, com o Atlântico Norte, através da exportação dos frutos e géneros regionais de maior valor. Assim, para Gibraltar, Inglaterra, Irlanda, França, Países Baixos, Alemanha, Dinamarca, e até para a América do Norte, saíam do Algarve, pela mão dos ingleses, o figo, a amêndoa, a alfarroba, a laranja, o limão, o vinho, a cortiça e a cana. Essas mesmas rotas comerciais faziam chegar ao Algarve ferro, aço, madeira, alcatrão, tecidos variados, queijo, manteiga, arroz, entre outros géneros.

Podemos, em suma, dizer que o comércio regional estava dependente dos ingleses… Na mesma medida em que hoje podemos dizer que o turismo está, numa parte bastante substancial, dependente dos ingleses. E, tal como hoje se procuram estratégias para minimizar os efeitos económicos desta dependência em tempos de Covid, também naquela época se procurou diminuir a excessiva dependência que tinha o comércio regional dos homens de negócios ingleses.

Diminuir a dependência económica de Portugal face a Inglaterra foi uma estratégia claramente assumida pelo Marquês de Pombal através das suas políticas económicas e, inclusivamente, com a criação das companhias monopolistas pombalinas, mormente com a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. No que ao Algarve diz respeito, a estratégia adoptada passou por uma integração económica do Reino do Algarve no restante Reino de Portugal: aboliram-se os direitos duplicados que pagavam os frutos e géneros algarvios quando transacionados –  que até então eram tratados como se fossem oriundos de um reino estrangeiro –, e procurou-se que algumas das matérias-primas e produtos alimentares de que a região necessitava fossem fornecidos pelo Reino de Portugal, ao invés de serem importados do Atlântico Norte. Procurava-se, dessa forma, que a abolição de direitos pudesse resultar numa maior iniciativa e capacidade competitiva por parte dos comerciantes algarvios, e reduzir o monopólio dos ingleses na saída e entrada de produtos na região.

A estratégia pombalina acabou por resultar na região, dando origem, nas décadas seguintes, à emergência de comerciantes de origem portuguesa, que substituíram os ingleses no seu primado.
​
Será caso para indagar se hoje, perante a situação actual, não nos faltará uma visão estratégica que produza efeitos mais duradouros. Procurar remediar a crise do turismo com o mercado interno, ou apelar a mercados externos alternativos ao inglês podem ser soluções a curto prazo – insuficientes, é certo! – mas o verdadeiro problema estrutural da região, ou seja, a excessiva dependência económica do sector turístico, mantém-se inalterado. A solução é a que tem vindo a ser já por diversas vezes notada, isto é, é fundamental diversificar a base económica da região. No entanto, esta solução requer uma visão estratégica ponderada e com efeitos a mais longo prazo - será que a saberemos, realmente, desenvolver?
Imagem
1 Comment

Uma alfarrobeira, uma amendoeira e uma figueira entram num bar

22/7/2020

1 Comment

 
Por Andreia Fidalgo
Numa região em que a escassez de água é assunto premente– tal como já tem sido relembrado em diversas ocasiões aqui no Lugar ao Sul –, e onde, paradoxalmente, a cultura de regadio nunca teve tanta extensão como agora, nunca será demais relembrar a importância do sequeiro e das tradicionais árvores de fruto algarvias.
​

Historicamente, a tríade em destaque foi sempre a mesma, e compunha-se pela figueira, pela amendoeira e pela alfarrobeira. Não há corógrafo que não as invoque, desde Frei João de São José que, em 1577 das figueiras diz serem as que “se dão em toda a terra e é novidade de cada ano e mais certa que o pão”; ou João Baptista da Silva Lopes, em 1841, que do fruto das amendoeiras recorda que muito se exportava e que, quando amargo, dele se fazem licores, ou então “adoça-se fazendo-o curtir em água por alguns dias, e então serve para os doces”; ou Charles Bonnet, que, em 1850, a propósito da alfarrobeira relembra que, “tal como a figueira, é a árvore mais útil e mais produtiva desta província”, cujo fruto, “triturado serve de alimento aos cavalos, mulas e vacas”, mas também de alimento aos mais pobres.
Imagem
Imagem
Imagem

Esta tríade arbórea que sempre marcou a paisagem algarvia – e à qual se soma a oliveira, embora esta não seja tão exclusiva da região – foi durante séculos o sustento da economia regional, e os seus frutos alimento do povo; hoje vê-se relegada para segundo ou terceiro planos e substituída por outras árvores de fruto que canalizam e esgotam um recurso vital que a região, note-se bem, nunca possuiu em abundância: a água! Os antigos sabiam-no e, por isso, respeitavam as limitações naturais do território. E nós, na nossa ânsia desenfreada de produzir mais, melhor e o que está na moda, saberemos voltar a respeitar?...
​
Termino este breve apontamento invocando um poema de Leonel Neves, intitulado ​Em Louvor da Alfarrobeira, para que através dele possamos recordar a beleza singela das nossas tradicionais árvores de fruto.
Em Louvor da Alfarrobeira
           Todas são árvores de amar,
           estas que moram à nossa beira:
 
           A amendoeira, de namorar;
           amante esplêndida, a figueira;
           mas moça séria, para casar,
           fecunda e firme, – a alfarrobeira.

 
A mais bonita encanta e desespera
os namorados com seu riso breve.
Trouxe o inverno pássaros de neve
que acharam no Algarve a primavera,
 
e deles a amendoeira fez um véu
para os turistas que se encantam, vendo-a.
Mas cada flor que a tonta ofereceu
            é menos uma amêndoa…
 
A figueira é diferente: com seus modos
de matrona de beijos pequeninos,
embala a fome aos donos e a todos,
– pássaros, vagabundos e meninos.
 
Mas no Inverno já ninguém a ama,
e atira ao vento os braços desprezados,
            como uma mãe que chama
moços mortos no mar ou emigrados…

​A alfarrobeira, não! Séria, quieta,
mal se vê, não se despe, nem se perde:
concebe os frutos, íntima e discreta,
no silêncio da sua copa verde.
 
Fruto? Um esquife negro, nunca centro
de um bucólico olhar ou de uma gula.
O que é uma alfarroba? Pão de mula,
            com lágrimas lá dentro…
 
            Suor que em choro enrola
            tanta esperança morta…
Sementes de alfarroba que o Algarve exporta
            e que depois importa
            como tinta, como cola.
 
Tinta para um cartaz com amendoeiras,
cola de caixa com figuinhos lampos,
– são as lágrimas negras que nos campos
por nós choraram as alfarrobeiras.
 
Eu, que de todas sou bom amigo
e bom vizinho, sempre vos digo:
 
           A amendoeira, de namorar…
           Amante esplêndida, a figueira…
           Mas moça séria, para casar,
           – a alfarrobeira!


​Leonel Neves, Natural do Algarve
​
Faro: Universidade do Algarve, 1986.
1 Comment

Figos, uvas e mulheres a secar ao sol: no Algarve até as mulheres eram feias!

1/7/2020

6 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Há não muitos dias, os dados publicados pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional revelaram que o número de desempregados inscritos em Maio nos centros de emprego do Algarve subiu 202,4% em relação ao período homólogo do ano passado. O Algarve foi, sem surpresa, a região portuguesa que registou o maior aumento de desemprego, o que, de resto, vem na tendência dos meses precedentes.

Evidentemente, uma economia pouco diversificada e sobretudo alicerçada no sector turístico, seria sempre a que mais iria sofrer com o impacto de uma situação de crise pandémica como a que estamos a enfrentar.

Por isso mesmo, desde muito cedo se foram erguendo várias vozes em defesa da ideia de que o Algarve, como a região continental a sofrer mais os impactos económicos da pandemia, deveria ser alvo, por parte do Governo, de um programa de recuperação e de apoio especial e mais adequado às suas especificidades. Algo que parece lógico e justo, e procura responder ao princípio da equidade.

Pode ser falha minha, mas até ao momento não tive notícia de que qualquer programa especial que pensasse seriamente em minimizar os gravosos impactos económicos que esta crise está a gerar na região algarvia. Não só não se pensou, como numa lógica nacional de abertura de fronteiras e de recuperação do sector turístico, nem a TAP faz do Algarve, principal destino turístico português, uma estratégia… Se nunca o fez, por que haveria de o fazer agora?!

Sejamos honestos: esta situação não causa grande espanto! Estamos perante um Algarve cujos interesses e reivindicações têm sido sucessivamente desprezados por parte do poder central. E esta é uma história que não é recente, tal como já tenho vindo a demonstrar, em diversas ocasiões, aqui no Lugar ao Sul.

Temos, efectivamente, um problema de percepção relativamente às necessidades regionais. Poderemos questionar se se trata de um problema económico, ou político, ou de relação centro-periferia, entre outros, e certamente que a nossa resposta vai ser positiva para todos eles; porém, acima de tudo isso, questiono-me se, talvez, o problema algarvio não seja sobretudo um problema cultural, ancorado numa incompreensão multissecular das particularidades e idiossincrasias regionais.

O isolamento crónico do Reino do Algarve, durante séculos, relativamente ao restante Reino de Portugal, aliado ao facto de ter sido a região mais islamizada do território português, o que se traduz em manifestações culturais próprias, poderão ter sido alguns dos principais factores a concorrer para a visão quase sempre distorcida que a nível nacional se tem sobre a região, e que ainda hoje teima subsistir.

Nesta ordem de ideias, para o artigo de hoje decidi invocar aqui alguns trechos sobre o Algarve que constam no Guia de Portugal, de 1927. Numa altura em que o turismo ainda dava os primeiros passos, e que o sol e praia não eram moda, que motivos teria o viajante de há 100 anos para visitar o Algarve? E qual era a visão generalizada que do Algarve se tinha, a nível nacional?

O Guia de Portugal foi uma obra, em cinco volumes, cuja publicação se iniciou na década de 20 do século passado e que resultou da iniciativa de um grupo de intelectuais portugueses. Em 1919, o historiador Jaime Cortesão foi nomeado director da Biblioteca Nacional de Lisboa, cargo que ocupou até 1927. Foi durante esse período que se formou o chamado «Grupo da Biblioteca», ao qual pertenceram vultos de relevo da cultura da época tais como: o escritor e jornalista Raul Proença, os escritores Aquilino Ribeiro e Raul Brandão, o poeta Afonso Lopes Vieira, o médico, escritor e historiador Reinaldo dos Santos, entre outros. Este grupo foi responsável por uma importante acção cultural e, sob a chancela da Biblioteca Nacional de Lisboa, promoveu a publicação do Guia de Portugal. Os três últimos volumes só seriam publicados entre a década de 40 e o final da década de 60, já sob a chancela da Fundação Calouste Gulbenkian e coordenação de Sant’Anna Dionísio.

Ficou ao cargo de Raul Proença a coordenação dos dois primeiros volumes do Guia, o primeiro publicado em 1924 e dedicado a Generalidades, Lisboa e arredores, e o segundo publicado já no final de 1927, que incluía a Estremadura, Alentejo, Algarve. Contando com diversas colaborações dos intelectuais que integravam o «Grupo da Biblioteca», o Guia pretendia reunir simultaneamente informações práticas (transportes, museus, hotéis, restaurantes…), descrições do clima e geografia e conteúdos relativos à história e etnografia dos vários locais.

O segundo volume segue, no que diz respeito ao Algarve, a tendência de desvalorização dessa região um tanto comum à época. A região padecia ainda dos efeitos nefastos do prolongado afastamento em relação ao restante território português, resultado de séculos de isolamento derivado, sobretudo, das suas características geográficas próprias. A serra muito densa a norte, difícil de transpor, era impeditiva de comunicações frequentes, e, por isso, a região e suas especificidades culturais – feição da população, usos, costumes… – e a sua vincada herança islâmica eram mal conhecidas e incompreendidas no restante País.

À data de publicação do Guia esse isolamento tinha já sido parcialmente colmatado com a linha do caminho-de-ferro, mas os seus prolongados efeitos ainda se faziam sentir. Não é, pois, de estranhar o quadro algo negativo traçado por Raul Proença no que toca à descrição da população algarvia.

Da mulher algarvia diz que se aplica no cuidado do lar, mas “este cuidado, este esmero pela habitação não o aplica, porém (…) aos trajos que enverga, geralmente sem garridice e sem cor, que nem seduzem pela variedade e claridade dos tons, como no vestuário da minhota, nem realçam a graça natural das formas (…) como os da varina e da tricana. Aliás, a mulher algarvia não prima pela beleza. O sangue mourisco corrompeu-a. A luz intensa e a excessiva secura do ar gretam-lhe a pele. É débil, pequena, encarquilhada, sem viço nem frescura – um fruto passado ao sol, como as suas uvas e os seus figos”.
Imagem
Mulher algarvia. Década de 40 do século XX. Foto de Artur Pastor.

O retrato dos algarvios também não é o mais simpático: “uma população mais de mouros ou de beócios que de gregos das ilhas, aparentemente um pouco cândidos de sentimentos, mas no fundo interesseiros, mesquinhos, poucos hospitaleiros, estreitos de espírito, não vendo nada para além da sua nesga de terra ou do seu barco de pesca, cultivando diligentemente o solo, mas sem capacidade de iniciativa, satisfeitos com o fruto que lhes cai nas mãos e o peixe que lhes vem ter à borda de água, ciosos do seu torrão natal, que estão sempre prontos a exaltar desde que lhes não exijam sacrifícios”.

Mesmo no que respeita ao património cultural edificado, Raul Proença afirmava assertivamente que “pouco interesse que tem o Algarve sob o ponto de vista artístico e monumental. Nada mais banal, por exemplo, do que as cidades da província sem monumentos, sem parques e sem jardins e cuja arquitectura regional, tão pitoresca, foi substituída por uma série de construções sem carácter e sem lógica, absolutamente divorciadas do ambiente e das tradições, nos modelos mais torpes e mais chinfrins” – creio que, neste ponto, até Proença levaria as mãos à cabeça, hoje em dia, de horrorizado com o aspecto infame das cidades algarvias, sacrificadas em prol da construção desregrada.

Nem tudo no Guia é negativo; antes pelo contrário, pois aí ficaram registadas algumas das mais belas descrições sobre o Algarve, sobre a sua paisagem e as suas povoações, de que há notícia até hoje. Ademais, os textos, sejam os de Raul Proença ou de qualquer outro colaborador, devem ser enquadrados na sua época e no seu devido contexto. Naquele período, a etnografia estava em voga, e interessava registar os usos, costumes e tradições próprios de cada região, assim como os traços mais característicos da população. A nível do património cultural, a concepção vigente na época ditava que apenas eram considerados de interesse os grandes monumentos, e as correntes historiográficas valorizavam sobretudo a época medieval e o período da expansão marítima – o Algarve, última região a ser conquistada e integrada no Reino de Portugal, ficou menos beneficiado a nível de património monumental edificado, e nem o interesse da região para a expansão marítima foi suficiente para contrariar esta tendência.

Ainda assim, creio que será legítimo questionar se estas visões negativas sobre os algarvios e mesmo sobre o património cultural da região (ou falta dele!) não se terão transmutado e permanecem ainda hoje bastante vincadas, a outros níveis, na visão que se tem da região e das suas gentes?

Quando o Algarve ganhou interesse turístico, a partir da década de 60 em diante, foi a concepção generalizada de que o seu património cultural tinha pouco interesse que deu azo à destruição arquitectónica e à construção desenfreada e desregrada nas nossas povoações; esta mesma concepção permitiu que se construísse um modelo assente no binómio “sol e praia”, como se nada de maior interesse existisse na região – modelo este que, apesar de todos os esforços recentes de valorização cultural da região, tem sido muito difícil de contrariar.

Quanto aos algarvios, periodicamente estalam polémicas e acusações de estes serem “interesseiros, mesquinhos, poucos hospitaleiros”, sobretudo por parte de alguns portugueses que nos visitam e nos desprezam pela exploração do sector turístico. Esquecem, aqueles que fazem acusações, da imensa precariedade dos trabalhadores desse sector, sujeitos à sazonalidade, aos recibos-verdes e aos contratos a termo… Todas estas fragilidades são, na actual situação, notórias, gritantes e verdadeiramente chocantes.

Gostava e quero acreditar que estes exemplos são excepções e não a regra… Mas questiono se não se trata isto de um problema cultural? De uma herança demasiado enraizada e bastante difícil de extirpar, na qual impera uma certa tendência negativa relativamente à região e à sua população, ainda que muitas vezes inconsciente, por parte do restante “Reino de Portugal”?

Considerando que os nossos governantes são o espelho daqueles que os elegem, devemos realmente esperar que o Algarve seja visto, numa situação de crise em que está mais afectado do que as restantes regiões do território, com uma especial consideração? Diz o dito popular que “mais vale esperar sentado”…
​
Mais uma vez não tenho respostas concretas e deixo aqui apenas algumas reflexões.
Imagem
6 Comments

Olhão, terra de mistérios, de mareantes e de mirantes

16/6/2020

0 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Assumo desde já que este título vático não é da minha autoria, mas sim de Francisco Fernandes Lopes (1884-1969): é o título de um escrito originalmente datado de 1948, no qual este médico e intelectual olhanense dava a conhecer a vila e as suas singularidades. E já que hoje é dia de celebrar Olhão, parece-me justo recuperá-lo e a todo o simbolismo que encerra.

A história de Olhão é relativamente recente. Até 1715, data em que se obteve autorização para a construção da primeira casa de alvenaria, Olhão não era mais do que um aglomerado de palhotas concentradas em torno da igreja matriz. Durante essa centúria, a povoação piscatória cresce de forma exponencial, de tal forma que no dealbar de Oitocentos já era a quinta maior povoação algarvia, contando 1202 fogos, apenas ultrapassada por Tavira (2209 fogos), Loulé (1809 fogos), Faro (1805 fogos) e Lagos (1693 fogos), todas elas localidades multisseculares.

O contributo dos olhanenses para a expulsão das tropas francesas, numa revolta que eclodiu a 16 de Junho de 1808, e a que se seguiu a viagem ao Brasil no caíque Bom Sucesso, foi absolutamente determinante para a história da povoação: em reconhecimento pelos feitos, por alvará régio de 15 de Novembro de 1808, o lugar de Olhão é elevado a vila, e por alvará régio de 20 de Abril de 1826 é oficialmente criado o concelho de Olhão, que se autonomiza definitivamente de Faro. A vila de Olhão cresce e prospera, sustentada economicamente pelas opulentas pescarias e, na primeira metade do século XX, por uma próspera indústria de conservas de peixe.

Uma das características mais interessantes do desenvolvimento dessa povoação foi o da configuração tão característica do seu urbanismo e as particularidades arquitectónicas que aí se notabilizaram e que conferem à cidade uma grande singularidade. Neste panorama, merece particular destaque todo o intrincado de vielas sinuosas e misteriosas, que encontram o seu expoente máximo no bairro da Barreta, assim como merece particular destaque a açoteia, elemento arquitectónico que, de resto, é tão característico da região algarvia (e de todo o Mediterrâneo!), mas que encontra em Olhão uma grande profusão e atributos únicos.

Tal como escrevia Fernandes Lopes no escrito que dá mote a este meu artigo, “Olhão não é só um «mar de soteias» (como a próxima aldeia da Fuzeta)”; as casas e açoteias olhanenses diferem das restantes por apresentam algumas particularidades que tornam a sua arquitectura tão singular: a existência de pangaios, de mirantes e contra-mirantes. E Fernandes Lopes descreve com acuidade todos estes elementos, pintando uma vívida imagem da arquitectura típica olhanense.
Imagem
Olhão: açoteias e mirantes [Foto disponível no sítio da APOS]

O intelectual olhanense refere-se aos pangaios como estruturas que rompem “forçosamente o terraço, quando se sobe à soteia por dentro da casa e não pelo quintal (…), pangaios onde a chaminé cúbica e simples ficou incorporada ou coalescente”. Porém, segundo ele, não foi suficiente ao olhanense as açoteias com pangaio, estrutura esta que rapidamente evoluiu para “uma nova soteia que se circundou de parapeito alto, e à qual se sobe sistematicamente por escada exterior, de alvenaria” – a esta nova estrutura deu-se o nome de mirante.
​
Mas, por vezes, este mirante é de tão largas dimensões que deixa a açoteia primitiva reduzida a um pequeno quintal no primeiro andar, constituindo ele próprio uma nova açoteia; em alguns destes casos, segundo Fernandes Lopes testemunhava, surgia ainda uma terceira estrutura, o contra-mirante, que é “um segundo mirante, ocupando de lado a lado, quase metade do terraço do primeiro, ou metido a um canto desde e minúsculo, quase simples púlpito ou torre de vigia”. Segundo Fernandes Lopes, portanto, a singularidade da arquitectura olhanense residia nesta multiplicidade de terraços, “três terraços sobrepostos, em pirâmide!...”. É, em suma, como a caracteriza no final do seu artigo: uma “estranha e misteriosa arquitectura local, genuína, inerudita…”.
Imagem
Açoteias e chaminés da Vila de Olhão. Foto de Artur Pastor, 1943-45 [Disponível em https://arturpastor.tumblr.com/]
Imagem
Açoteias e chaminés da Vila de Olhão. Foto de Artur Pastor, 1943-45 [Disponível em https://arturpastor.tumblr.com/]

Uma sobreposição cúbica, portanto, que valeu a Olhão o epíteto de “vila cubista”… Uma vila absolutamente singular, também de gentes muito características, que ao longo dos tempos inspirou descrições absolutamente deliciosas que mostram o quão única é a sua essência. Não resisto, aqui, em invocar dois grandes escritores portugueses que nos deixaram testemunhos divinais sobre Olhão: Raul Brandão e Aquilino Ribeiro.

Em Os Pescadores (1923), Raul Brandão condensa uma série de crónicas sobre a vida dos pescadores portugueses, passando por várias localidades. De Olhão, em Agosto de 1922, o escritor deixaria a seguinte descrição: “De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto – por baixo, chapadas de cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os terraços, um zimbório redondo e túmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor”.
​
E o que dizia Brandão dos homens do mar? “O marítimo de Olhão tem, como nenhum outro, um grande sentimento de igualdade: estende a mão a toda a gente. É que no mar os homens correm os mesmos perigos. São também profundamente religiosos, porque estão a toda a hora na presença de Deus. Duas tábuas, a fragilidade e a incerteza forçam-nos a contar consigo e com a companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim. Homens simples porque a profissão é simples e o meio, grande e eterno, não os corrompe”.
Imagem
Pescador de Olhão. Foto de Artur Pastor, décadas de 40/50 [Disponível em https://arturpastor.tumblr.com/]

Poucos anos volvidos, seria a vez de Aquilino Ribeiro deixar registado, no 2º volume do Guia de Portugal (1927), as suas impressões sobre Olhão: “Vila cubista chamaram a Olhão, e , de facto, a vol d'oiseau, parece a casaria projectar-se duma tela de Picasso para ludíbrio dos olhos afeitos à ordem objectiva das três dimensões. De um prédio para o outro as açoteias e fachadas imbricam-se, acavalam-se, sobrepõem-se, desarticulam-se, anuladas pela brancura e pela miragem as leis da perspectiva e do volume. São milhares de cubos em equilíbrio instável, paradoxal, absurdo, como cantarias duma Babel juncando um campo raso. E todavia, deste mar revolto de planos e desta fanfarra endiabrada de branco, filtra-se uma sensação de pureza, de banho auroral, como rescende o perfume dum canteiro de açucenas”.
​

Sobre as gentes, o testemunho de Aquilino é absolutamente delicioso: “Galeões a vapor, caíques, chalupas, fragatas, a barcaça da lota, ruidosa como um arraial, e uma população acobreada, peluda, mexida, cruzando de quando em quando gritos rápidos, cantantes. (…) A pesca por essa charneca verde, sem fim, até a vista da Barberia… em cabotagem… ao contrabando, se Deus é servido. Levado pela vela rápida, triangular, o olhanense comete todos os misteres, porque para ele todos os misteres são legítimos, desde que regados com o honrado suor do seu corpo e praticados com valentia. O mar condicionou a sua audácia e a audácia a sua moral”.
Imagem
Olhão e as suas gentes. Foto de Artur Pastor, década de 40 [Disponível em https://arturpastor.tumblr.com/]

Destas descrições, a que poderia somar muitas outras, sobressai a singularidade olhanense, quer do seu urbanismo e arquitectura, quer das suas gentes. Sobressai uma identidade muito específica, que confere a Olhão particularidades que foram, durante décadas, destacadas e elevadas.

Será caso para questionar se esta identidade ainda se mantém hoje viva, ou se já esteve de melhor saúde…

É certo que parte do vasto panorama de açoteias foi progressivamente alterado e destruído durante décadas, mas que os mais recentes esforços têm sido para a sua preservação; é certo que muitas das habitações dos bairros tradicionais da Barreta e do Levante têm sido recuperadas, algumas com investimento de estrangeiros que escolheram aí residir, deslumbrados com o panorama típico da cidade, e outras com o intuito claro de servir e captar o turismo… Mas, por muito positivos que sejam esses esforços para a manutenção da feição arquitectónica característica de Olhão, isto leva-me necessariamente a questionar até quando existirão olhanenses nos bairros mais típicos de Olhão, e se não estaremos a caminhar para a total gentrificação do núcleo histórico da cidade, e, consequentemente, para a perda da sua identidade?

A preservação da identidade e do património histórico-cultural de uma localidade não pode passar somente pela manutenção das suas características arquitectónicas; há que passar, também, pela preservação das suas tradições e manifestações culturais, do modus vivendi da sua população, pela manutenção da economia local… Até que ponto estamos dispostos a sacrificar tudo isto em prol da especulação imobiliária e do turismo de massas?

É inegável e louvável o progresso e o melhoramento urbano de que a cidade tem sido alvo nos últimos anos, mas questiono também até que ponto um projecto como o que agora está a arrancar, de requalificação de toda a frente ribeirinha de Olhão, realmente espelha a identidade do local? O progresso é necessário e inevitável, mas queremos uma Olhão asséptica, uniformizada, estandardizada, igual a qualquer outra cidade, ou queremos que a cidade ainda continue a suscitar reflexões e testemunhos sobre a singularidade da sua arquitectura, do seu urbanismo e das suas gentes, como os que nos deixaram Raul Brandão e Aquilino Ribeiro?
​

Não tenho respostas… Deixo apenas algumas reflexões. E porque hoje é Dia da Cidade de Olhão, termino relembrando a magnífica “Ó vila de Olhão” de Zeca Afonso.
0 Comments

Viagens singulares no Reino do Algarve: condições de mobilidade (no séc. XIX e no séc. XXI)

27/5/2020

6 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Agora que já se definiram as regras de acesso às praias, e depois de um longo período de confinamento, não há quem não sonhe com uma bela quinzena de férias espraiado num belo areal, aquecido pelo sol estival e refrescado por revitalizantes banhos de mar.

Claro que neste cenário apetecível, o Algarve volta a estar na mira das atenções. É do interesse de todos os algarvios e, também, de todos os portugueses, que a região mais afectada pelo impacto económico da Covid-19 recupere um pouco do fosso de precariedade para o qual resvalou em poucas semanas.

É natural que, neste momento, as preocupações estejam centradas no turismo, e em garantir aos futuros visitantes da região, sejam eles nacionais ou estrangeiros, que estão perante um destino Covid Free, do qual podem usufruir sem medo de contaminações, desde que todas as regras de segurança e higiene sejam respeitadas.

O turismo é uma prioridade. Mas existem outras, que não só lhe estão associadas, como dizem também respeito à qualidade de vida dos cidadãos que residem neste cantinho sul de Portugal. Uma delas é, evidentemente, a saúde. Ainda tenho alguma esperança – ténue, mas tenho! – de que este surto pandémico retire das calendas gregas o almejado Hospital Central do Algarve, que tanta falta faz à região. Uma outra prioridade é, sem dúvida, a melhoria da rede de transportes públicos e das condições de mobilidade sustentável dentro da região, problema crónico que, volta e meia, vem ao de cima para nos recordar do desprezo com que o poder central trata as necessidades regionais.
Imagem
Foto de Artur Pastor. Série “Portugal Rural”. Algarve, décadas de 50/60.

Uma vez mais, a História relembra-nos que os problemas de mobilidade não são novos. Porém, em séculos passados, além das dificuldades de circular dentro da região, ainda se acrescia o problema de circular para fora dela. Aliás, se o Algarve padeceu, durante séculos, de um isolamento crónico que lhe conferiu a singularidade histórica de ter sido um Reino à parte, sem rei, e sem nunca o ser efectivamente, isso em muito se deveu às dificuldades de acesso à região e à precariedade das ligações terrestres ao Reino de Portugal.
​

Antes da ferrovia – que a este lugar ao sul chegou tarde e se desenvolveu muito lentamente – a viagem de Lisboa até Faro era uma verdadeira aventura, quase diria que reservada aos mais audazes. Não resisto em relembrar, a este propósito, o magistral conto de Manuel Teixeira Gomes, intitulado Gente Singular, que apesar de ser datado de 1909, alude a uma realidade anterior à chegada da linha do caminho-de-ferro a Faro, que só se concretizaria em 1889:
Duríssima travessia!
A linha férrea mal chegava a Beja, onde se tomava a dolorosa diligência de Mértola que, por seu turno, trasbordava os viajantes num vaporzinho manhoso sobre o qual se descia o Guadiana até à foz, e dali, na pombalina Vila Real de Santo António, outra diligência nos joeirava os já desconjuntados ossos pelo decurso das muitas horas necessárias a alcançar Faro.

Ainda mais penosa seria uma viagem que se fizesse exclusivamente por terra. A serra, não muito elevada, mas muito ampla e densa, apresentava dificuldades diversas que tornavam a viagem morosa. A este propósito, deixa-nos Silva Lopes na sua Corografia do Reino do Algarve, de 1841, uma indicação mais precisa do que seria sair do Algarve para rumar a Lisboa (ou de Lisboa para entrar no Algarve, se lermos inversamente), no meado do século XIX.

Dos vários trajectos sugeridos pelo autor, fiquemo-nos apenas pelo primeiro, como ilustrativo: de Faro havia que seguir para Loulé, passando por S. João da Venda; a partir de Loulé, haveria que seguir pelo barrocal, num “péssimo caminho pedregoso até à Ponte da Tôr” e daí em direcção à Corte Neto; já em plena serra, haveria que passar várias vezes a vau o Rio Seco até à ladeira do Barranco do Demo, onde “há uma excelente fonte de água férrea debaixo de frondosos freixos”; um pouco a seguir, havia que tomar o caminho até Águas da Rainha e, deixando para trás o Rio Seco, encontraria a Ribeira do Vascão, que também teria de se passar a vau, transpondo o limite entre o Algarve e o Alentejo.

Todo este percurso feito por caminhos estreitos, pedregosos e/ou de terra batida, acidentados, sinuosos, com subidas e descidas, passando por dentro das ribeiras… A expressão “passar as passinhas do Algarve” encontra nesta realidade duríssima de mobilidade um excelente exemplo. Imagine-se o leitor um figo ou uma uva, a secar ao sol, no pico do Verão, num qualquer trajecto, quer fosse para sair do Algarve, quer fosse para chegar a uma qualquer terra, especialmente do interior algarvio…

Evidentemente, o estado precário das vias de comunicação algarvias era resultado de séculos de falta de investimento e de interesse pela região, esquecida pela Coroa desde os tempos áureos dos Descobrimentos. Nessa época, o Algarve ganhara protagonismo porque a via de circulação privilegiada era o mar; porém, isso em pouco contribuiu para o desenvolvimento das condições de mobilidade na região, quer na comunicação das localidades entre si e com o interior algarvio, quer na ligação ao Reino de Portugal. E a via marítima permaneceu, durante séculos, como a forma mais rápida e cómoda de sair do Algarve, ou de vir até à região.

O Marquês de Pombal reconheceria a frágil condição dos acessos à serra quando na década de 70 do século XVIII empreendeu o projecto de Restauração do Reino do Algarve. Por isso, iria mandar que se arranjassem os caminhos entre as quatro léguas que separavam Monchique e Vila Nova de Portimão, para facilitar a circulação de pessoas, mas sobretudo com proveitos económicos, pois interessava que as madeiras de castanho e os frutos de Monchique pudessem mais facilmente alcançar o porto de mar de Portimão, para fins comerciais. 
​
Algumas décadas depois, nos inícios do século XIX, o Bispo D. Francisco Gomes de Avelar também se preocuparia particularmente com a falta de estradas e caminhos e com os maus passos das ribeiras. Por isso mesmo, este prelado publicaria, em 1809, as Instruções que deverão observar os inspectores na reparação das estradas, e foi realmente graças à sua acção que muitas das estradas algarvias foram melhoradas e muitas pontes das ribeiras foram construídas. Um bom exemplo pode ainda ser observado actualmente na Calçadinha de São Brás de Alportel, cuja origem remonta à época romana e que era a mais importante via de ligação de Faro ao Vale do Joio, nas faldas da serra algarvia; aí, ainda é visível parte do troço recuperado após as ordens de Avelar e cujo desenho corresponde exactamente às ilustrações que integram as referidas Instruções.
Imagem
Desenho das Instruções que deverão observar os inspectores na reparação das estradas, 1809.
Imagem
Calçadinha de São Brás de Alportel.

Apesar destas intervenções pontuais, a que se somam outras mais, as dificuldades de circulação persistiram até à segunda metade do século XIX, altura em que o programa de obras públicas da monarquia constitucional chegou à região. A Estrada Real nº 78, antepassada da EN 125, que deveria ligar Lagos a Vila Real de Santo António, começou a construir-se me 1856, e em 1874 estaria praticamente concluída. Nos finais do século XIX inicia-se a construção daquela que viria a ser a ligação privilegiada ao Alentejo, a mítica e histórica Nacional 2, apenas concluída na centúria seguinte, e remodelada e assim designada durante o Estado Novo.

O século XX trouxe evoluções tremendas, que acompanharam o desenvolvimento dos meios de transporte. Nas primeiras décadas consolidou-se a ferrovia, que chegou a Olhão em 1904, a Tavira em 1905 e a Vila Real de Santo António em 1906 – a Lagos só chegaria em 1922. Ir ou vir do Reino de Portugal para o Reino do Algarve passou a ser mais fácil. Circular dentro da região, também. O boom do turismo ditaria as restantes evoluções, a partir da década de 60, com a inauguração do aeroporto de Faro em 1965 e o subsequente desenvolvimento da rede viária.

Não nos podemos queixar, hoje, da falta de acessibilidade, e o Algarve não só já não se encontra isolado neste seu lugar ao sul, como é o destino turístico privilegiado de muitos portugueses e estrangeiros. Não significa, porém, que não existam problemas. A rede de transportes públicos de que é dotada a região é absolutamente precária. A começar, desde logo, pela ferrovia, de oferta muito limitada, cujo traçado pouco se modificou ou cresceu desde os primórdios da sua existência, e cuja renovação e electrificação têm vindo a ser sucessivamente adiadas desde há muito. A rede rodoviária de transportes, embora mais diversificada, não se apresenta como uma alternativa viável às necessidades de deslocação, nomeadamente entre localidades algarvias mais isoladas e/ou interiores. Viajar para fora da região em transportes públicos só é realmente cómodo se quisermos ir para Lisboa; na verdade – e em circunstâncias normais –, é muito mais rápido e fácil irmos de Faro a Sevilha do que tentarmos ir de Faro para Évora.

As falhas flagrantes na rede de transportes regional têm reflexos negativos nas condições internas de mobilidade da população, que se vê limitada e sem alternativas. Numa altura em que tanto se fala de mobilidade sustentável, da necessidade de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, e dos efeitos nefastos da poluição para o meio ambiente, a falta de alternativas não deixa grande opção: quem se quer deslocar, tem de o fazer no seu automóvel – se tiver capacidade para ter/sustentar um –, o que, além de prejudicial ao ambiente, não raras vezes resulta numa afluência excessiva à principal estrada da região, a EN 125, conhecida como uma das de maior sinistralidade no país – situação ainda mais agravada pela cobrança de portagens na Via do Infante.

Curiosamente, um diploma recentemente publicado no suplemento do DR (15/05/2020) passou praticamente despercebido na região. Aí estabelecem-se as regras de aplicação e distribuição pelas 21 CIM de 15 milhões de euros, já previstos no Orçamento de Estado para 2020, no âmbito do Programa de Apoio à Densificação e Reforço da Oferta de Transporte Público. Este programa visa "promover o reforço dos atuais serviços e a implementação de novos serviços de transporte público, regular e flexível, que resultem em ganhos em termos da acessibilidade dos territórios e das suas populações aos principais serviços e polos de emprego". À AMAL ficou atribuída a segunda maior verba, acima de um milhão de euros (1,272 ME), o que não é de espantar, visto que o critério para a distribuição dos 15 ME foi o volume de utilização automóvel nas deslocações pendulares – neste critério, só a região de Coimbra ultrapassa a do Algarve.

Será este o incentivo necessário para dotar a região de melhores condições de mobilidade e de uma rede de transportes que realmente corresponda às necessidades da população residente e visitante? A História relembra-nos que, por vezes, o caminho para a evolução pode ser lento… mas é inevitável.
Imagem
6 Comments

Vila Real de Santo António: a herança mais visível do Marquês de Pombal no Algarve

13/5/2020

4 Comments

 

Por Andreia Fidalgo

Não deixa de ser algo irónico que o dia 13 de Maio, que trouxe ao mundo o Marquês de Pombal, em 1699, adquirisse um simbolismo tão particular a partir de 1917: foi precisamente o dia em que a Nossa Senhora apareceu pela primeira vez aos pastorinhos Lúcia, Francisco e Jacinta, na Cova da Iria, em Fátima.

Não que ao Marquês, falecido há mais de um século, tivesse feito grande diferença… mas, decerto que foi um golpe bem duro para aqueles republicanos que bem poucos anos antes aproveitaram a sua imagem política para fazer propaganda anticlerical e anticatólica, e que assistiram, em 1917, ao restauro do fervor religioso no país.

Certamente que existe espaço, no dia 13 de Maio, para celebrar Fátima - ainda que, este ano, só mesmo espiritualmente - e para relembrar o Marquês de Pombal. Sobre o primeiro assunto não me atrevo a escrever, mas posso recomendar a leitura do magnífico ensaio histórico de Rui Ramos publicado no Observador por ocasião do centenário de Fátima, em 2017, sob o título “Fátima, cem anos de uma história mal contada”.

Pela minha pena, será o Marquês de Pombal a merecer hoje o destaque.

Já em várias ocasiões abordei aqui, no Lugar ao Sul, uma das mais importantes linhas temáticas da minha tese de doutoramento em curso: o projecto de Restauração do Reino do Algarve desenhado pelo Marquês de Pombal para a região, nas décadas de 60 e 70 do século XVIII. Na sequência das políticas económicas pombalinas, que visaram retirar o país da crise económica em que mergulhara, o Reino do Algarve foi alvo de um plano de reformas económicas que teve em vista a recuperação das suas potencialidades agrícolas, o aproveitamento das suas abundantes pescarias e o incremento das actividades comerciais. Simultaneamente, o território algarvio sofreu uma reorganização administrativa que deixou marcas até aos dias de hoje, com a criação de novos concelhos como o de Lagoa e o de Monchique, em 1773.

Porém, não há dúvida de que a herança mais visível da acção do Marquês de Pombal no Algarve se encontra espelhada na edificação ex-nihilo de Vila Real de Santo António, em resultado de uma estratégia política e económica que visava aproveitar as abundantes e ricas pescarias do sotavento algarvio.​
Imagem
Foto antiga de VRSA nos finais do século XIX: antiga Praça Real, actual Praça Marquês de Pombal.
Imagem
Prospecto da Igreja e todo o lado norte da Praça de Vila Real de Santo António, rubricada pelo Marquês de Pombal. Junho de 1774.

Desde os inícios do século XVIII que se havia instalado na praia de Monte Gordo uma numerosa comunidade de pescadores oriundos da Catalunha, atraídos pela abundância de sardinha. Esta comunidade desenvolveu, no decurso dessa centúria, uma lucrativa actividade que beneficiou do aumento significativo do número de xávegas – artes piscatórias de arrasto destinadas à captura da sardinha – aliadas à introdução de técnicas eficazes de conservação do pescado, que permitiam aumentar e rentabilizar o negócio através da exportação.

Na década de 60 de Setecentos, Monte Gordo não seria mais do que uma pequena povoação com uma igreja, umas poucas casas de pedra e cal e, sobretudo, muitas cabanas e telheiros debaixo dos quais se fazia a beneficiação da sardinha. Mas, muito para lá da aparência modesta, ali se encontrava um verdadeiro “tesouro oculto”, de acordo com os relatórios que chegaram ao Marquês de Pombal: um “tesouro”, porque constituía uma actividade altamente lucrativa… “oculto”, porque os lucros escapavam por completo ao controlo fiscal das autoridades locais e, consequentemente, aos cofres da Coroa.

Para obviar esta situação, Pombal tomaria várias medidas legislativas que resultaram numa autêntica “guerrilha das pescarias” com o vizinho Reino de Espanha. O corolário das intervenções pombalinas ocorreria a 17 de Dezembro de 1773, data em que foi decretada a edificação de uma nova vila que teria em vista substituir as instalações de Monte Gordo. O local não poderia ser essa praia, dada a instabilidade do areal e a força destruidora e imprevisível do mar. Foi então escolhido o sítio do Barranco, na margem direita do Guadiana, no termo da antiga vila de Santo António de Arenilha, onde já se assegurava uma forte presença militar.

Aprovada a localização, uma carta régia de 30 de Dezembro de 1773 incumbiu o Governador do Algarve da construção de uma vila regular, com arruamentos dispostos em linha recta, onde se acomodassem todas os edifícios com funções civis e industriais: “nele fareis delinear a dita Vila reedificada com uma competente Praça; na qual a Igreja; a Casa de Câmara; e o Terreiro do Pão tenham o Primeiro lugar sem lhe faltar comodidade para se fazer um amplo Mercado (…). Tomando a mesma Praça por centro, mandareis reproduzir dela em linhas rectas as Ruas necessárias para se formarem as Casas, Telheiros, Lagares e Armazéns das Pescarias”.

Desta carta régia, aliada ao local escolhido para edificação da vila, sobressaem três aspectos absolutamente essenciais: a estratégia política do local escolhido para a edificação; a configuração singular do urbanismo da nova vila; e a sua vocação industrial.​
ImagemCarta hidrográfica do Rio Guadiana, datada de finais do século XVIII, na qual já se pode observar a nova vila edificada num traçado regular.
Quanto ao local, a vila foi edificada na linha fronteira, na margem direita do Guadiana, voltada para a vizinha Espanha, numa mensagem clara de afirmação do poder político da Coroa Portuguesa. É, acima de tudo, a afirmação do poder perante o Reino vizinho, pois o objectivo último era o de retirar aos espanhóis o controlo e os lucros obtidos pela exploração do pescado em Monte Gordo, redireccionando-os para o erário público nacional. Foi, portanto, uma estratégia de afirmação do controlo do Estado português: doravante, ficaria inviabilizado o contrabando de peixe fresco e todo o pescado passaria por um apertado controlo alfandegário.

No que toca à configuração singular do urbanismo, em Janeiro de 1774 chega ao Algarve a primeira planta da futura vila, enviada pelo Marquês de Pombal e concebida pela Casa do Risco das Obras Públicas – a mesma Casa do Risco criada em 1755 para fazer face à urgente construção da capital após o terramoto, e através da qual se desenvolveu o estilo pombalino da baixa lisboeta, o mesmo que iria marcar Vila Real de Santo António. Tratando-se de uma vila edificada de raiz, constituiu a oportunidade perfeita para unir urbanismo e ideologia política. A planta enviada pela Corte representava uma vila rectangular orientada em função do Guadiana: na frente ribeirinha, voltada para Espanha, a Alfândega ladeada pelas Sociedades de Pescarias; no centro, uma praça em quadrado perfeito, formada pelos edifícios das Casas de Câmara e Cadeia, do Corpo da Guarda e da Igreja, e a partir da qual derivavam arruamentos regulares em ângulos rectos onde se localizariam as habitações térreas dos pescadores.  Uma vila desenhada segundo os princípios de ordem e racionalidade característicos do Iluminismo.

​Por fim, trata-se de uma autêntica 
vila-fábrica: as Sociedades de Pescarias e os armazéns localizados na rua traseira espelhavam a vocação industrial da vila, de transformação e armazenamento do pescado para exportação. As técnicas de salga e conservação da sardinha, desenvolvidas nos telheiros da praia de Monte Gordo e que haviam subsistido como herança dos armadores catalães, foram transferidas para estes novos edifícios com condições materiais mais condignas. Doravante, todo o pescado, especialmente a sardinha, era transportado até ao porto comercial da nova vila, verificado pelos funcionários alfandegários e redireccionado para as sociedades pesqueiras. Aí, a sardinha entrava pelo portão principal, passava por um controlo interno e era transportada para a traseira dos edifícios, composta por um telheiro em forma de U, onde era amanhada, salgada e acondicionada em barricas; estas eram posteriormente depositadas nos armazéns das Sociedades, no lado oposto da rua traseira, onde ficariam a aguardar comercialização.

Imagem
Pormenor das Sociedades de Pescarias extraído do Desenho-relatório da construção de VRSA, de autoria de José Sande de Vasconcelos. Outubro de 1774.

A primeira pedra da nova vila foi lançada a 17 de Março de 1774, dando desde logo início à construção dos edifícios mais emblemáticos: a Alfândega, que desempenha o papel fundamental de registo e controlo do pescado; o Quartel e a Casa de Câmara e Cadeia, destinados às autoridades civis e militares; e as Sociedades de Pescarias, fundamentais para a função industrial da vila. Até a toponímia escolhida para os arruamentos foi pensada ao pormenor, estabelecendo a hierarquização das principais figuras da Família Real Portuguesa, que por essa via apadrinhava, simbolicamente, a fundação. Além disso, formando uma espécie de barreira espiritual em torno da vila, as ruas situadas nos extremos oeste, norte e sul designavam-se por Rua Real de São José, Rua de São Sebastião e Rua de Santo António, respectivamente, invocando os patronímicos de D. José I, de Sebastião José de Carvalho e Melo e o topónimo da antiga vila de Arenilha, Santo António.
​
Não deixa de ser curioso, porém, que numa versão inicial da toponímia que não se chegou a implementar, o próprio Marquês de Pombal se tivesse feito representar de forma mais evidente, em alternativa a alguns membros da Família Real, através de arruamentos designados do Marquês e da Marquesa. Ainda que não se tivessem implementado, a presença simbólica do Marquês ganhou destaque por outra via, no dia de inauguração da vila, em 1776: ocorreu precisamente a 13 de Maio, dia de aniversário do Marquês de Pombal. 
Imagem
Planta da nova vila com uma toponímia que em parte não chegou a ser implementada, inscrita pela mão do Marquês de Pombal.

Os tempos que se seguiram não seriam favoráveis a Pombal: a 24 de Fevereiro de 1777, quando morre D. José, é imediatamente afastado do poder político. O reinado de D. Maria I daria início à Viradeira, que se traduziu na inversão das anteriores políticas pombalinas. O Marquês, sempre controverso na sua acção política, virou persona non grata e foi assim que terminou os seus dias, falecendo a 8 de Maio de 1782. O decurso do tempo viria, porém, a restituir-lhe a devida importância histórica, e a sua figura política viria mesmo a ser sucessivamente enaltecida e aproveitada por liberais e por republicanos.
​
Em Vila Real de Santo António, que hoje, 13 de Maio, comemora o seu feriado municipal, o legado do Marquês de Pombal encontra-se bastante vivo. Mas, ainda que seja aí que se espelha a face mais visível da acção pombalina no Algarve, seria redutor cingir a herança de Pombal a essa cidade. Através do projecto de Restauração do Reino do Algarve, Pombal marcou de forma indelével a história de toda a região algarvia, percebendo o seu imenso potencial e colocando-a entre as prioridades da agenda política. Algo que, nos dias de hoje, tarda sempre em acontecer…
4 Comments

A importância do Mar na economia do Algarve: um olhar sobre o passado com perspectivas para o futuro

27/4/2020

2 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

O que queremos nós para o Algarve pós-pandemia?


O surto pandémico que agora enfrentamos serviu para deixar a descoberto a fragilidade da economia portuguesa e, no caso do Algarve, veio revelar o que de há muito já se sabe: que a região padece de uma grande vulnerabilidade económica por se ter alicerçado quase única e exclusivamente no sector turístico.

Passadas algumas semanas do início da pandemia no país, a situação é tudo menos animadora. Os dados divulgados pelo IEFP mostram que na região o número de desempregados inscritos, em Março, subiu 41,4% em relação ao mesmo mês do ano passado. Ademais, a subida do desemprego no Algarve foi 14 vezes maior do que a registada a nível nacional, fixada nos 3%.

Apesar do cenário ser alarmante, não há nele propriamente uma novidade: a região também sofreu há não muito tempo de um grande embate com a crise financeira de 2008, cujos efeitos se fizeram sentir sobretudo nos anos subsequentes. Basta relembrar que nos anos de 2010 e 2011 o Algarve registou as mais elevadas taxas de desemprego do país – de 13,4% e 15,4%, respectivamente –, e no ano seguinte de 2012 partilhava o nefasto pódio com a Área Metropolitana de Lisboa, registando 17,6%. Só de 2013 em diante é que a situação se inverteu progressivamente na região.

Que agora enfrentemos uma nova e acentuada onda de desemprego no país, com especial incidência na região algarvia, não é algo que nos apanhe propriamente de surpresa. Resta saber se, ao contrário do que aconteceu anteriormente com a crise de 2008, é desta que vamos realmente aproveitar a oportunidade para a tão almejada diversificação da economia regional.

Claro que entre a teoria e a prática vai um grande passo. É fácil concluir que uma diversificação da economia do Algarve permitiria diminuir a excessiva dependência do turismo e reduzir o impacto em momentos de maior fragilidade económica. Mais difícil é sedimentar as bases dessa diversificação.

Neste âmbito, não queria deixar de aludir, por me parecerem em tudo pertinentes e promissoras, as propostas de diversificação que o Luís Serra Coelho, também autor aqui no Lugar ao Sul, já referiu noutras ocasiões: as tecnologias de informação, que já encontram, por exemplo, no projecto Algarve Tech Hub alguns passos dados; a produção de energia renovável, aproveitando uma das vantagens naturais do Algarve, isto é, a exposição solar; e o mar, imenso recurso com um potencial tremendo.

As propostas acima enunciadas deixam bem patente que o sol e o mar que fazem do Algarve uma região turística tão apetecível são os mesmos sol e mar que podem potenciar o desenvolvimento de outras actividades económicas na região, no futuro.

No meu breve apontamento histórico de hoje, gostaria de relembrar sobretudo a importância do Mar na economia regional ao longo dos séculos: foi através do mar que a região conheceu períodos áureos de desenvolvimento económico e foi através do mar que a região se soube reinventar ao longo dos tempos, aproveitando os recursos aí contidos e a abertura ao mundo exterior para se tornar mais competitiva.

Já tive oportunidade de sublinhar, num outro artigo, o impacto que o período de Expansão Marítima teve para a região. O Reino do Algarve, historicamente quase sempre muito isolado do restante Reino de Portugal, mas com uma vasta linha costeira que sempre lhe permitiu manter contacto com o exterior, ganha protagonismo ao tornar-se o palco preferencial das expedições marítimas no século XV.
​
O Algarve prosperou e cidades como Lagos e Tavira passaram, então, por um período de grande desenvolvimento económico: a primeira, sob a liderança do Infante D. Henrique, em muito beneficiaria com as lucrativas actividades comerciais estabelecidas pelas novas rotas marítimas do Atlântico; a segunda, sobretudo na primeira metade do século XVI, beneficiaria da sua posição privilegiada para o apoio às praças que os portugueses iam conquistando no Norte de África.
Imagem
Mapa da costa do Algarve, c. 1600, pormenor [disponível na BNP Digital]

​A secundarização da região na partida das expedições atlânticas, que depois da morte do Infante D. Henrique se começam a fazer de Lisboa, e a perda progressiva das praças africanas, levaram a que a região entrasse, no século XVII e durante boa parte do século XVIII, num período de estagnação económica e de subaproveitamento crónico dos seus recursos naturais. Ainda assim, mesmo durante este período, foi sempre o mar que serviu de alicerce às principais actividades económicas regionais.

Bastará, para tal, recordar a pesca do atum e da sardinha, as mais rentáveis espécies capturadas na região. O atum era de tal forma lucrativo, que esta pescaria passou a ser um direito senhorial da Coroa Portuguesa desde o reinado de Afonso III, com a conquista definitiva do Algarve e sua integração no Reino de Portugal no meado do século XIII. Era, pois, uma pescaria real ou privilegiada, capturado nas almadravas – designação de origem árabe das armações de pesca desta espécie – que teve uma grande expressão no século XVI e, embora tivesse diminuído nas centúrias seguintes, não deixou de ser uma das principais fontes de rendimento da região.

Quanto à sardinha, a sua exploração aumentou exponencialmente nas primeiras décadas de Setecentos e daí em diante, quando na praia de Monte Gordo se instalou uma comunidade de negociantes catalães que rapidamente conseguiu incrementar a pesca dessa espécie recorrendo à utilização da xávega – método tradicional de pesca de arraste – e implementando uma indústria tradicional de salga e conservação do pescado.

Ademais, convém acrescentar que a par com esta exploração dos recursos piscatórios, o Algarve se manteve sempre ligado a outras parte dos globo por via marítima através de uma actividade comercial sustentada pelos frutos regionais – tais como o figo, a amêndoa, a alfarroba, a laranja da China (doce), aos quais acresce a cortiça –, com rotas que se expandiam a todo o Mediterrâneo e ao Atlântico Norte.

Não é, pois, de estranhar que, quando nas décadas de 60 e 70 do século XVIII o Marquês de Pombal volta as suas atenções para a empobrecida economia algarvia, sejam precisamente as potencialidades económicas das pescarias e a abertura comercial dos portos marítimos algarvios que lhe iriam captar as atenções e ser alvo de um plano de reformas que então se designou de “Restauração do Reino do Algarve”. Este projecto reformista entendia que a economia da região devia ser dinamizada pelo incremento das pescarias, por um lado, mas também da agricultura, que serviria para aumentar o comércio marítimo da região.

As pescas foram, no entanto, o principal alvo estratégico de Pombal. Além das medidas de alívio fiscal que animaram as pescarias algarvias no seu todo, para aumentar a pesca do atum, cujas almadravas haviam ficado muito destruídas pelo terramoto de 1755, o ministro de D. José criaria, por alvará de 16 de Janeiro de 1773, a Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve, a última das companhias monopolistas pombalinas. Quanto à pesca da sardinha, para a rentabilizar e evitar que os seus lucros escapassem aos cofres do estado, Pombal manda edificar Vila Real de Santo António, uma verdadeira vila-fábrica orientada para a captura e transformação da sardinha.
Imagem
Desenho-relatório da construção de VRSA, de autoria de José Sande de Vasconcelos. Outubro de 1774 [Reprodução disponível no Arquivo Histórico de VRSA]

​​Na centúria seguinte e sobretudo já no século XX, o olhar estratégico para o desenvolvimento económico da região passaria novamente pelo mar. O Algarve inseriu-se no quadro mais amplo da industrialização moderna através do desenvolvimento de uma pujante indústria de conservas de peixe. A primeira fábrica instalada na região foi a do italiano Angelo Parodi, em Vila Real de Santo António, em 1879; daí em diante foram surgindo mais fábricas de diferentes dimensões, com particular incidência nas localidades de Vila Real, Olhão, Portimão e Lagos.
Imagem
Foto antiga da Fábrica Parodi, em VRSA. As chaminés captadas denunciam a vocação industrial desta vila.

​A indústria das conservas de peixe foi a mais importante alavanca da economia regional na primeira metade do século XX, que em muito beneficiou dos recursos naturais da região, do posicionamento estratégico dos seus portos marítimos para escoamento do produto, e de uma elevada procura por parte do mercado externo, nomeadamente durante os anos da I e da II Guerra Mundial. Porém, esta indústria entraria em declínio na década de 60, incapaz de fazer face à concorrência marroquina, onde o custo da mão-de-obra era baixíssimo, acabando por conquistar os mercados anteriormente ocupados pela produção algarvia.

Pari passu com o declínio da indústria conserveira está o exponencial crescimento do turismo na região algarvia, para o qual o mar, aliado ao excelente clima, foram factores determinantes. Apesar de as reivindicações sobre o potencial turístico algarvio soassem já desde os inícios do século XX, foi a partir da década de 60 que se verificou realmente um surto edificatório que alteraria a fisionomia do litoral algarvio, ao qual se somou a inauguração do aeroporto de Faro, em 1965. O Algarve entra, como sabemos, nos circuitos turísticos internacionais e o turismo passou desde então a constituir a principal base económica da região.

A história económica do Algarve recorda-nos, pois, que a região se soube reinventar e readaptar ao longo dos séculos tendo por base esse imenso recurso que tem ao seu dispor: o mar. Por que não olhar novamente para o mar com outros olhos e redobrada atenção? Parece-me que não devemos descurar, por um lado, a importância das actividades marítimas tradicionais, que possuem um elevado potencial de valorização cultural da região.

Por outro lado, o próprio sector das pescas tem imenso potencial de modernização e pode ser altamente lucrativo. Um bom exemplo é o do atum-rabilho, actualmente explorado na costa algarvia em três armações modernas: duas pertencentes a uma empresa espanhola e outra de capitais japoneses. O atum-rabilho chega mesmo a atingir os mil euros por quilo no mercado de Tóquio, mas a quota portuguesa para pesca desta espécie corresponde a menos de 3% da quota da União Europeia, o que é manifestamente insuficiente e estrangula qualquer hipótese desta actividade lucrativa vir a ganhar mais espaço na região – recorde-se, a este propósito, que nos inícios do século XX o Algarve tinha dezanove armações de atum activas…

Ademais, as energias renováveis marinhas não poderiam constituir um elemento estratégico de desenvolvimento sustentável da região? A este propósito, relembro que a CCDR-Norte anunciou, em Novembro do ano passado, que as energias renováveis marinhas, incluindo a energia eólica offshore, seriam uma aposta futura para o próximo programa operacional regional do Norte.  Não seria de avançar numa estratégia semelhante no que à região do Algarve diz respeito?

Passos nesse sentido já foram dados pela Universidade do Algarve: em Junho de 2017, investigadores desta instituição instalaram, num projecto pioneiro a nível nacional, um dispositivo de extracção de energia das correntes de maré, nas proximidades da barra de Faro-Olhão, com o intuito de estimar a capacidade de produção de energia à escala comercial. Aliás, é de sublinhar o papel decisivo que deve ter a Universidade do Algarve na condução científica de uma linha estratégica e inovadora que tenha em vista promover os vastos recursos que o mar tem para nos oferecer.

Que futuro queremos nós, afinal, para o Algarve no pós-pandemia? Não é uma questão fácil, mas o caminho deverá ser sempre o da diversificação… E o mar poderá ser uma das respostas.
Imagem
2 Comments

O que têm em comum a Covid-19 e o Terramoto de Lisboa de 1755?

24/4/2020

0 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Bem sei que me arrisco a que a pergunta que dá mote à minha reflexão de hoje possa, aparentemente, parecer um verdadeiro desconchavo. Afinal de contas, o que podemos nós encontrar em comum entre o vírus que agora nos aflige e o terramoto que destruiu a capital portuguesa e também o Algarve a 1 de Novembro de 1755?


A resposta, porém, afigura-se-me muito evidente: une-os a filosofia!

Quer o surto pandémico que agora enfrentamos, quer o terramoto de 1755 constituem eventos extremos e catastróficos desencadeados pela Natureza que, ao colocarem em causa a aparente ordem natural do mundo, inspiram reflexões mais profundas sobre a fragilidade da condição humana e a sobre a forma de lidar com as adversidades.

A Covid-19 causou uma onda global e popular de optimismo associada ao movimento #VaiFicarTudoBem, que se desenrola nas mais diversas frentes da sociedade. Se por um lado encontramos as crianças a desenhar arco-íris em cartolinas e lençóis para embandeirar as janelas das suas habitações, motivadas pelos pais deliciados com tais proezas infantis, por outro lado assistimos a muita gente reputada na praça pública a embarcar na mesma onda optimista, que não raras vezes tem dado azo a entrevistas, a artigos de opinião e afins que se parecem ter desvinculado totalmente da realidade e são alheios a qualquer reflexão mais crítica e profunda sobre as consequências futuras desta crise.

No reverso da medalha – e numa aparente concepção maniqueísta do mundo – encontram-se aqueles que, sendo críticos do movimento #VaiFicarTudoBem, por contraste se situam exactamente no extremo oposto: além de tecerem críticas à ingenuidade dos eternos optimistas, apresentam cenários de tal modo fatalistas e distópicos que se tornam absolutamente paralisadores e inoperantes.

Esta problemática já tem sido, inclusivamente, abordada por outros autores aqui, no Lugar ao Sul. Recentemente, a Anabela Afonso relembrou que o optimismo não implica ignorar as dificuldades, e que pode inclusivamente constituir uma importante força catalisadora do trabalho que terá de ser empreendido para superarmos a crise.

Por outro lado, também o Gonçalo Duarte Gomes já tem por diversas vezes alertado para o perigo do “psicadelismo do #vaificartudobem e o niilismo do #vaitudocorrermal”, e apelado à necessidade de se encarar a situação actual e o futuro com realismo, sendo que se impõe encontrar um meio termo mais pragmático que pode ser até simultaneamente optimista e pessimista.

Com o devido distanciamento histórico, esta discussão actual faz em tudo lembrar as discussões filosóficas originadas por ocasião do Terramoto de 1 de Novembro de 1755.

Ora, como sabemos, na manhã desse fatídico Dia-de-Todos-os-Santos, a terra tremeu durante vários minutos, deixando um rastro imenso de destruição na cidade de Lisboa. Mas não só! Também o Algarve seria amplamente afectado, quer no sotavento, mas sobretudo no barlavento, uma vez que o epicentro do terramoto se localizou alguns quilómetros ao largo de Sagres. Foi, porém, em Lisboa que a destruição foi mais massiva. O terramoto fez ruir uma parte substancial das edificações da capital portuguesa, causando milhares de mortos. Os que fugiram, aterrorizados, dos edifícios que ruíam para a beira do Tejo, foram depois apanhados no tsunami que se seguiu. Findo o tsunami, vieram os incêndios, que conduziram parte da capital à devastação total. 
Imagem
Lisboa em ruínas após o terramoto de 1755 [gravura disponível online na BNP Digital]

Cenário absolutamente tenebroso e catastrófico, que constitui um dos episódios mais marcantes da História de Portugal. Foi o terramoto que deu força política ao Marquês de Pombal e fê-lo ascender como o estadista de força do reinado de D. José. Pombal conseguiu, efectivamente, reerguer a capital dos escombros, elaborando todo um plano de reconstrução da baixa lisboeta pautado pelo racionalismo das “Luzes”.

A catástrofe causada Terramoto de Lisboa de 1755 teve, no entanto, repercussões muitos mais amplas do que a escala nacional. Por toda a Europa circularam relatos, notícias e gravuras da destruição da cidade portuguesa, suscitando várias reflexões filosóficas nos mais ilustrados pensadores da época. As mais célebres encontraram expressão pela pena do filósofo Voltaire: em 1756 publica o Poema sobre o desastre de Lisboa, e em 1759 publica Cândido, ou o Optimismo.

Em ambas as obras, as principais críticas de Voltaire recaíam sobre o optimismo, conceito que requer algum enquadramento à época, na medida em que estava sobretudo vinculado à metafísica de Leibniz e à sua Teodiceia. A teodiceia foi um conceito cunhado em 1710 para tentar conciliar a ideia do “mal” com a ideia de um Deus infinitamente bondoso. Significa, no sentido literal, “justiça de Deus” e procurava, no âmago, responder à seguinte questão: “Se Deus é bom, então por que permite que exista o mal no mundo?”.

Numa visão totalizadora e universal, Leibniz concluiria sendo o mundo criado por Deus e, logo, perfeito e harmonioso, seria possível conciliar nele o máximo de bem e o mínimo de mal. O mundo é, portanto, “o melhor de todos os mundos possíveis”, máxima que resume a filosofia do optimismo de Leibniz, pois neste mundo prevalecia acima de tudo o bem.

Em suma, tudo vai bem, no melhor dos mundos possíveis! Eis o optimismo vigente na primeira metade do Século das Luzes, que em tudo nos faz lembrar os dias que correm.

Voltaire iria opor-se veementemente ao optimismo de Leibniz. Afastando-se da visão universal do filósofo alemão, Voltaire concentra-se em exemplos concretos para mostrar que nem tudo vai bem. O terramoto de Lisboa de 1755 seria precisamente um dos maiores exemplos com o qual Voltaire intentaria desmontar a metafísica de Leibniz, quando escreve o Poema sobre o desastre de Lisboa, onde questiona como é que no mais bem ordenado dos universos possíveis existe uma tão grande desordem e tamanha infelicidade, que arrasta consigo inocentes e culpados? Ainda por cima – e ironicamente –, uma tragédia ocorrida num dia de celebração da fé e de devoção, como o era o Dia-de-Todos-os-Santos.

Mas é sobretudo em Cândido, e ainda sob a influência do terramoto, que a crítica de Voltaire se agudiza. Nesta obra satírica, Voltaire narra a história do personagem homónimo, que é sempre acompanhado e exposto aos ensinamentos do seu mestre, Pangloss, o qual que simboliza a vulgarização do pensamento de Leibniz na máxima acima enunciada de que tudo vai bem, no melhor dos mundos possíveis. Sempre sob essa máxima, ao longo da narrativa Cândido é sujeito às maiores adversidades e dificuldades: é expulso do local onde mora, é preso, torturado, perde a sua amada e os seus amigos, e todas estas situações ocorrem com os maiores requintes de crueldade.

A obra serve, pois, para colocar o optimismo e a ideia de que este mundo era o melhor dos mundos em confronto com a desgraça, que aparece aí hiperbolizada, mas que leva o protagonista a questionar os ensinamentos do seu mestre: talvez o mundo não seja, afinal, o melhor dos mundos!

Mas, à medida que Cândido vai sofrendo uma sucessão picaresca de dissabores, existe uma outra ideia que vai surgindo ao longo da obra e que se exprime na sua última linha: é preciso cultivar o nosso jardim. Isto é, o mundo é uma mistura entre o bem e o mal e pode não ser o melhor possível, mas pode ser tornado melhor. É possível ao homem manter-se no bom caminho se for devidamente esclarecido pelas luzes da razão e se tiver consciência do seu papel no mundo. Fosse Cândido mais consciente da existência do mal e das imperfeições do mundo, e ter-se-ia certamente poupado de passar por tantos desgostos!

Apesar da crítica aguçada, Voltaire não assume uma posição diametralmente oposta ao optimismo, que se espelharia no pessimismo. O que ele critica, acima de tudo, é a ideia de predestinação que aparece associada ao optimismo leibniziano, que isenta o homem de qualquer papel activo na construção de um mundo melhor, pois pressupunha-se que este mundo harmonioso e ordenado era criação divina e já era o melhor dos mundos, ainda que nele também existisse o mal e a tragédia.

Para Voltaire, o optimismo nos moldes em que era desenhado espelhava uma visão pueril, ingénua e meramente contemplativa do mundo que era muito prejudicial à ideia de progresso. E o progresso era uma das principais bandeiras do Iluminismo, sendo que para existir progresso é necessário que haja esclarecimento e pragmatismo.

Ora, quer-me parecer que é possível transportar para a actualidade esta discussão filosófica setecentista. Isto porque, salvo algumas excepções, a onda do #VaiFicarTudoBem quase parece uma adaptação para a actualidade do optimismo leibniziano e da ideia de que os eventos seguem o seu rumo “natural”, não havendo muito que possamos fazer para os contrariar. É uma noção absolutamente inoperante e imobilizadora! Desenharmos arco-íris e repetirmos vezes sem conta que “Vai ficar tudo bem”, enquanto à nossa volta o mundo se desmorona, será mesmo a melhor forma de encarar a situação que temos de enfrentar?

O que mais me deixa perplexa nesta onda actual de optimismo não é o optimismo em si, pois acredito que uma boa dose de optimismo faz mais pela motivação do que o inverso. O que me deixa perplexa é quando esse optimismo se transmuta num recalcamento dos problemas e numa total ausência de espírito crítico relativamente ao futuro difícil que temos de enfrentar. Não quero com isto dizer que seja necessário resvalar para o campo oposto do pessimismo, igualmente pernicioso, mas sim que neste cenário generalizado de optimismo pueril, introduzir uma boa dose de realismo e pragmatismo voltairianos não faz se não bem.
​
Isto é, não creio que devemos aceitar, passivamente, que as coisas são como são e que tudo vai ficar bem no melhor dos mundos possíveis. Ao invés, talvez possamos relembrar que nem sempre tudo fica bem e que o mundo nem sempre é o melhor dos mundos, mas que este mundo pode ser transformado num mundo melhor. E é nesse sentido que temos de trabalhar: conscientes do presente, com um olhar mais amplo voltado para o futuro e contribuindo activamente para transformar o mundo em que vivemos.
Imagem
0 Comments

Um Hospital das “Luzes” para o Algarve: saúde e assistência em Faro nos finais do século XVIII

13/4/2020

10 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

​
No passado ano de 2019, o Hospital de Faro celebrou os seus 40 anos de existência. Inaugurado em Dezembro de 1979, a então recém-nascida unidade hospitalar destinava-se a suprir as carências da população algarvia no acesso aos cuidados de saúde e, simultaneamente, a dar uma resposta mais condigna às necessidades daquela que já então era a região de maior valor turístico do país.

Pouco mais de quarenta anos volvidos após essa inauguração, é seguro dizer que o Algarve mantém actualmente os mesmos problemas que naquela época se pretendiam resolvidos: face ao crescimento populacional e ao desenvolvimento do sector turístico, a região precisa hoje, urgentemente, de um novo hospital que dê resposta às suas necessidades.

Esta reivindicação está longe de ser nova e encerra em si mesma uma longa história, com potencial para nos deixar a todos nós, cidadãos, angustiados e bastante preocupados com a inércia dos decisores políticos e com a aparente incapacidade de priorização das necessidades da região nas agendas governativas.

Esta história, relativamente recente, remonta a 2002, quando por Despacho do então Ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, foram criados os Grupos de Coordenação Interdepartamental para o lançamento das parcerias público-privadas, no qual se incluía o Grupo Interdepartamental para o lançamento de uma nova unidade hospitalar no Algarve, a desenvolver no Parque das Cidades Faro-Loulé. Depois de avanços e recuos, esta história atingiria o seu “auge” em 2008, ano em que o então primeiro-ministro José Sócrates lançaria mesmo a primeira pedra do novo Hospital, que estaria pronto em 2013.

Só que não. E a história virou estória…

Volvidas quase duas décadas, o que nos resta é uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, com a diferença de que os problemas estruturais não só não desapareceram, como se adensaram. Esta reflexão é tanto ou mais pertinente no actual contexto em que enfrentamos uma grave pandemia. Não obstante o esforço absolutamente meritório de todos os profissionais de saúde, há que relembrar quão melhor e mais eficiente poderia ser resposta dos serviços de saúde se não se tivessem negligenciado, durante anos, as necessidades da região…

Porém, o que me traz aqui hoje não é um exercício de história contrafactual, por muito interessante que este possa ser. O que me traz aqui hoje é mais um breve apontamento histórico que relembra o Algarve no Século das Luzes e o esforço empreendido nos finais dessa centúria para a construção de uma unidade hospitalar, em Faro, mais adequada às necessidades da época: o Hospital da Misericórdia de Faro.

Antes de mais, convém atentar ao significado mais específico da palavra hospital. Se actualmente o identificamos imediatamente como o local destinado ao atendimento de doentes a fim de proporcionar diagnóstico e tratamento necessário, esta definição não é assim tão linear para períodos anteriores. No Vocabulario Portuguez e Latino de autoria de Raphael Bluteau – considerado o primeiro dicionário da língua portuguesa, publicado entre 1712 e 1728 –, hospital define-se como um “lugar público, em que se curam os doentes pobres” e “em que se agasalham e sustentam os pobres”.

Esta definição relembra-nos que para períodos anteriores, nomeadamente durante a Idade Média e a Idade Moderna, a definição de hospital se encontra intimamente associada à religião cristã: os hospitais eram, antes de mais, locais de caridade que cumpriam importantes funções de acolhimento e assistência aos pobres e desvalidos; destinavam-se, também, ao tratamento de enfermidades, mas de doentes pobres, uma vez que para os grupos sociais mais favorecidos os problemas de saúde eram tratados em casa. Por isso mesmo, os hospitais estavam quase sempre associados a organizações de caridade, como as confrarias e as irmandades.

No caso de Faro, há notícia de um hospital primitivo datado dos inícios do século XVI, anexo à Igreja do Espírito Santo, cuja edificação teria resultado da doação de um benemérito, de nome João Dias. Em 1583, no local da igreja manuelina do Espírito Santo iniciou-se a edificação, por ordem do Bispo D. Afonso de Castelo Branco, da Igreja da Misericórdia, que manteve e integrou o hospital anexo.
​
Este hospital da Misericórdia teria servido a cidade de Faro nas duas centúrias seguintes. Mas já no final de Setecentos este cenário alterar-se-ia, pois teria lugar um acontecimento determinante para toda a região algarvia e, em particular, para a cidade de Faro: a nomeação de D. Francisco Gomes de Avelar como Bispo do Algarve, em 1789, cargo que ocupou até ao ano da sua morte, em 1816.
Imagem
​D. Francisco Gomes de Avelar, Bispo do Algarve entre 1789 e 1816

D. Francisco Gomes de Avelar (1739-1816) destacou-se de forma notável na sua acção pastoral e incorporou verdadeiramente o espírito do Iluminismo Católico. O Iluminismo foi o movimento intelectual que marcou o Século das Luzes e que se define pelo apelo às luzes da razão – ou seja, da inteligência – a fim de dissipar a ignorância, o erro, o atraso, os preconceitos e todas as injustiças que desses males resultam. Há um apelo e confiança na razão humana esclarecida, através da qual era possível um progresso tanto material, como moral, obtido por intermédio de reformas das instituições e dos comportamentos. O ideário das luzes foi progressivamente penetrando na consciência dos monarcas e seus conselheiros, ministros e outros agentes, traduzindo-se no desenvolvimento de sistemáticas reformas económicas e administrativas que irradiaram em vários estados europeus, tal como aconteceu em Portugal, com o Marquês de Pombal.

Mas não só! Também a Igreja Católica se reformou e o clero protagonizou diversas reformas inspiradas pelo ideário das “Luzes”. O Iluminismo Católico tem por base a ideia de que houve um movimento de reforma eclesiástica no século XVIII, no qual se reafirmaram os dogmas essenciais da Igreja Católica, explicando a sua racionalidade de acordo com a terminologia moderna, e que se repercutiu numa reconciliação do Catolicismo com a cultura da época – nomeadamente através da aceitação das novas teorias económicas, científicas, etc –, visando contribuir para o progresso e reforma geral da sociedade.

A acção de D. Francisco Gomes de Avelar deve ser, pois, entendida neste contexto mais amplo do Iluminismo Católico. Oratoriano esclarecido, todos os seus biógrafos são unânimes em salientar que na sua formação foi crucial a estadia de quatro anos em Roma, onde foi apresentado ao Papa Pio VI e o seu leque de relações e amizades foi ampliado, travando conhecimentos que perduraram toda a sua vida. Aí teve também oportunidade de se sensibilizar para as artes, visitando os monumentos e obras artísticas de Roma, e contactando com artistas que à época aí se encontravam e que granjeavam de uma imensa reputação.

Nomeado Bispo do Algarve em 1789, o cenário com que se deparou quando chegou à região não era, de todo, o mais favorável: um território empobrecido e economicamente deprimido, com grande parte das igrejas em mau estado ainda devido aos efeitos do terramoto de 1755, com falta de estradas e caminhos que servissem a população local e um subaproveitamento crónico dos recursos agrícolas.

Não caberia aqui analisar toda a obra reformista empreendida por este bispo na região, que foi bastante vasta. Porém, no que à cidade de Faro diz respeito, foi pela por iniciativa deste bispo que se reconstruiu o Paço Episcopal, se edificou o Seminário, o Arco da Vila e, também, o novo Hospital da Misericórdia. Para levar a cabo tais obras, D. Francisco Gomes de Avelar chamou a Portugal o arquitecto italiano Francisco Xavier Fabri, que teria conhecido na sua estadia em Roma, e que acabou por ser o principal divulgador do estilo neoclássico no país, quando, depois da sua passagem pelo Algarve, foi incumbido de dirigir, em 1802 e em conjunto com o arquitecto José da Costa e Silva, as obras do Palácio Real da Ajuda.
​
No que ao Hospital da Misericórdia diz respeito, o Bispo ter-se-ia deparado com um espaço exíguo, com duas estreitas enfermarias muito abafadas, que mais serviam para propagar doenças do que para as curar. Condições pouco condignas a que o Bispo sentiu urgente necessidade em acudir.  O novo hospital, projectado pelo arquitecto Fabri, começa a edificar-se em 1795, na lateral norte da Igreja da Misericórdia. Com um espaço bastante amplo, a planta desenvolvia-se em torno de dois pátios interiores, acomodando no piso térreo as áreas de carácter administrativo e no piso superior o internamento e os cuidados de saúde.
Imagem

O novo hospital foi desenhado de acordo com os preceitos da época e enquadrado no discurso do progresso das “luzes”. Tinha, portanto, espaços amplos onde a circulação seria facilitada, com janelas rasgadas para permitir uma boa iluminação e ventilação. Uma das soluções dignas de nota foi a utilização de tectos de reixa, no 2º andar, precisamente para permitir a ventilação do espaço. Solução esta que, além do seu carácter funcional, em última instância reflecte o respeito e a integração de materiais e técnicas regionais no novo edifício neoclássico do hospital.
​
Também a fachada do edifício foi concebida para criar um conjunto harmonioso, obedecendo aos critérios de racionalidade das Luzes. Foi, por isso, perfeitamente alinhada com a fachada da Igreja da Misericórdia, ajudando a definir o enquadramento urbanístico da outrora designada Praça da Rainha, actualmente Jardim Manuel Bivar. Nesta fachada, o piso inferior desenvolve-se ao longo de uma ampla galeria composta por nove arcos de volta perfeita de grande unidade rítmica, através da qual se fazia o acesso ao interior do hospital.
Imagem
Praça da Rainha na década de 50 do séc. XX. Merece particular destaque para o conjunto formado pela Igreja e Hospital da Misericórdia.

A fachada deste edifício é, de resto, o elemento que ainda permanece mais fiel à traça original, dado que todo o espaço interior se foi descaracterizando com a utilização permanente do espaço e as necessárias adaptações que os novos tempos foram exigindo. Ainda assim, este hospital perdurou até ao século XX sem necessitar de grandes obras de fundo; já nessa centúria, seriam realizadas obras gerais na década de 20 e posteriormente seria remodelada toda a ala Norte, na década de 50. Estas obras permitiram adaptar o edifício e mantê-lo em funcionamento até à abertura do Hospital de Faro, em Dezembro de 1979, altura em que o antigo foi então desactivado.

O Hospital das “Luzes” permitiu que em Faro existisse uma unidade hospitalar moderna, que funcionou durante mais de centúria e meia, ininterruptamente. A sua edificação resultou da iniciativa de um homem esclarecido, o Bispo D. Francisco Gomes de Avelar, que desenvolveu toda a sua acção pastoral imbuído dos mais altos valores do Catolicismo e inspirado pelo ideário de progresso do Iluminismo, com o intuito de acudir aos interesses e necessidades do rebanho que tinha a função de apascentar. E o Hospital da Misericórdia foi apenas uma de muitas obras que este bispo deixou como legado à região algarvia.
​
A edificação do Hospital da Misericórdia de Faro, assim como a edificação e inauguração do Hospital de Faro foram marcos históricos importantes. Mas as necessidades de saúde não só não páram, como se complexificam e exigem respostas cada vez mais adequadas e soluções cada vez mais eficazes. Esperemos que a estes marcos históricos se some a edificação da prometida e tão almejada nova unidade hospitalar. Só não sabemos bem quando… Será que temos de esperar mais 20 anos?
Imagem
10 Comments

De quarentena na “Ilha dos Cães”: o Algarve e a peste bubónica em 1522

30/3/2020

21 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

Todos os anos, lá pelos inícios de Dezembro, a Porto Editora costuma lançar a lista das dez palavras que mais marcaram o ano que está prestes a findar, para votação e subsequente eleição da Palavra do Ano. Em 2019, a lista era composta por palavras como “desinformação”, “sustentabilidade”, “violência doméstica”, “influenciador”, entre outras. A votação elegeu a “violência doméstica” como palavra do ano, uma preocupante realidade que também não devemos descurar nos dias que correm, tal como a APAV já veio relembrar na recente campanha “Quem está isolado também pode ser vítima”.

Ainda estamos longe do final de 2020, mas talvez não seja assim tão despropositado assumir que entre as palavras da futura lista em votação poderão constar “pandemia”, “isolamento social”, “quarentena”… E é precisamente a propósito desta última que decidi trazer aqui, a este Lugar ao Sul, mais um apontamento histórico.

A quarentena é, na verdade, uma das medidas mais antigas e eficazes para se evitar a propagação e o contágio de doenças altamente infecciosas. A origem da palavra remonta ao século XIV, altura em que a Europa foi também assolada por umas das mais mortíferas pandemias da História: a peste negra – também conhecida por peste bubónica –, responsável pela morte de cerca de um terço da população europeia e por uma grave crise económica e demográfica.

Nessa época, a Península Itálica era o centro do movimento comercial europeu, pela sua privilegiada posição no Mediterrâneo; porém, precisamente por isso, era também um território muito exposto ao contágio da peste que chegava por via marítima aos seus portos. Foi por esse motivo que em Veneza, o maior porto comercial à época, se começou a decretar um período de isolamento para os navios que aí ancoravam: todos os passageiros, animais e mercadorias deveriam ficar isolados dentro do navio por um período de 40 dias antes de poderem desembarcar. Mais tarde, em 1403, seria também em Veneza, numa das ilhas da sua lagoa, que viria a ser criado o primeiro local de isolamento dedicado exclusivamente à quarentena marítima.

Foram os quarenta dias – ou, melhor dizendo, os quaranta giorni, em italiano – que estiveram na origem do termo quarentena.  Porquê um período de quarenta dias? A resposta não é consensual, mas pode estar relacionada com o simbolismo e presença desse número em várias passagens bíblicas do Antigo e Novo Testamentos: foi durante 40 dias e 40 noites que Moisés permaneceu no Monte Sinai para receber a Lei; foi durante 40 dias e 40 noites que Jesus se retirou para o deserto, privando-se de comer, antes de iniciar a vida pública; durou 40 dias o período em que Jesus ressuscitado instruiu os seus discípulos antes de subir ao Céu; dura 40 dias a Quaresma, período de penitência, oração e abstinência que antecede a Páscoa, iniciado na Quarta-feira de Cinzas.

A quarentena enquanto método de isolamento generalizou-se posteriormente a outros territórios além da Península Itálica, e foi recorrentemente utilizado em várias épocas de surtos epidémicos. Ainda que o período de isolamento estipulado nem sempre fosse o de quarenta dias, o termo quarentena subsistiu e continua ainda hoje a ser empregue para designar qualquer período de isolamento preventivo, independentemente do número de dias.

À semelhança do que assistimos actualmente com o Covid-19, a necessidade da quarentena justificava-se sobretudo devido à mobilidade das pessoas: aplicava-se, obviamente, para prevenir que uma determinada comunidade ou grupo fossem contaminados por indivíduos que tivessem vindo de territórios assolados por uma epidemia, ou que pudessem já ser eles próprios os portadores da doença. Neste contexto, Portugal, na sua vocação marítima e expansionista desenvolvida do século XV em diante, foi sempre um território muito exposto aos surtos epidémicos, e não raras vezes recorreu à quarentena para prevenir os contágios.
Foi precisamente o que aconteceu no Algarve, no século XVI.

No contexto da política régia de expansão além-mar, o Reino do Algarve, outrora muito isolado do restante Reino de Portugal em virtude dos seus condicionalismos geográficos, adquire uma posição central e estratégica devido aos seus excelentes acessos portuários, tornando-se subitamente o palco privilegiado para a partida das expedições marítimas. A sua situação periférica inverte-se, com localidades como Lagos e Tavira a adquirirem uma importância decisiva na política expansionista.

Numa primeira fase, foi a urbe de Lagos que ganhou primazia. Em 1415 foi conquistada a cidade norte-africana de Ceuta e a partir de então, o porto de Lagos, estrategicamente localizado no prolongamento do Cabo de São Vicente e com uma ampla baía com condições ideais para a navegação, tornou-se o principal centro de operações. Foi aí que o Infante D. Henrique assentou residência poucos anos depois da tomada de Ceuta, depois de ter sido encarregue por D. João I da sua defesa e provimento. Sob a liderança do Infante, partiriam de Lagos as navegações exploratórias em direcção ao Atlântico, tais como a expedição de Gil Eanes, em 1434, que foi além do limite marítimo conhecido, ao ultrapassar o Cabo Bojador. Progressivamente estabeleceram-se novas rotas do Atlântico e a empresa marítima tornou-se cada vez mais atractiva, sobretudo pelas lucrativas actividades mercantis.

Lagos prosperava. Mas a morte do Infante D. Henrique, em 1460, viria a ditar um ponto de viragem: o centro coordenador das navegações foi-se transferindo gradualmente para Lisboa, e Lagos, ainda que permanecesse o principal centro de comércio ultramarino na região, foi perdendo a sua posição de destaque no Algarve. Não obstante, o Reino do Algarve continuou a prosperar e a crescer, sendo que a partir de 1471, com a conquista das praças norte-africanas de Tânger e Arzila, a simbólica designação de Reino do Algarve transformou-se em Reino dos Algarves, abrangendo simultaneamente a região d’aquém mar e as regiões d’além mar.

Doravante, a vocação do Algarve já não seria tanto a de servir de palco às navegações no Atlântico. Com o crescente número de praças portuguesas no norte de África – às já referidas Ceuta, Arzila e Tânger somam-se Alcácer Ceguer, Safim, Azamor e Santa Cruz de Cabo de Guê, e, ainda, a construção de raiz da praça de Mazagão já durante o reinado de D. Manuel I – o centro das operações marítimas muda-se para Tavira nos finais de Quatrocentos e sobretudo na primeira metade de Quinhentos. Esta vila localizada na metade oriental do Algarve, com bons acessos marítimos e um porto em crescente evolução, passou a ser o local de eleição para o contacto e acesso às praças norte-africanas e ao Mediterrâneo.

A posição privilegiada de Tavira não só permitia o contacto frequente com o norte de África, como a própria povoação desempenhou funções importantes na defesa militar das praças africanas, cedendo o seu porto para ser utilizado pelas armadas da Coroa, mas também enviando as suas gentes para a sua guarnição militar e defesa. Em 1508, por exemplo, os tavirenses desempenharam um papel importante no combate ao cerco de Arzila. Por isso mesmo, no ano seguinte, D. Manuel manda fundar em Tavira o Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, mais conhecido por Mosteiro das Bernardas, em acção de graças pelo levantamento desse mesmo cerco, para o qual o contributo dos tavirenses havia sido determinante. Em 1516, foram novamente os moradores de Tavira que impediram a perda de Arzila.

Mas os perigos no Algarve d’além mar não eram somente de cariz bélico. Em 1522, Arzila é assolada por um nefasto período de fome e de peste bubónica, que levou a que as mulheres e filhos das famílias que guarneciam essa praça quisessem regressar a Portugal. Foi-lhes dado salvo-conduto para que o pudessem fazer, mas era necessário acautelar que a peste do Algarve d’além mar não viria assolar também o Algarve d’aquém mar. A estratégia passou, então, pela quarentena para todos os que regressassem daquela praça marroquina para terras lusas.

É através de Bernardo Rodrigues, autor dos Anais de Arzila – crónica inédita do século XVI – que ficamos a conhecer melhor de que forma se processou a quarentena. Diz-nos este que aquando da peste, as mulheres e filhos dos moradores portugueses de Arzila regressaram a Portugal entre os meses de Fevereiro e Março de 1522. Foram mais de quinhentas pessoas que então embarcaram em Arzila com destino ao Algarve, tendo ficado obrigadas a cumprir dois meses de quarentena na ilha dos Cães, perto de Tavira, com a excepção da senhora condessa, esposa do Capitão de Arzila, que se refugiou e cumpriu quarentena em Renilha.

Ilha dos Cães? Renilha? Estes topónimos requerem, claro, uma explicação adicional. Comecemos pelo último. Renilha é, na realidade, Santo António de Arenilha, povoação localizada no extremo-oriental algarvio, na foz do Guadiana, nas proximidades da qual se iria edificar, na década de 70 do século XVIII, por ordem do Marquês de Pombal, Vila Real de Santo António. Quanto à ilha dos Cães, o próprio Bernardo Rodrigues refere tratar-se de uma ilha nas imediações de Tavira. Podemos assumir, assim sendo, que se trata de uma das ilhas-barreira da Ria Formosa, sendo que a carta corográfica de João Baptista da Silva Lopes, de 1842, localiza o topónimo de ilha dos Cães na actual ilha da Culatra.
Imagem
Pormenor da carta corográfica do Reino do Algarve, de João Baptista da Silva Lopes, 1842
Apesar dos eventuais perigos oriundos dos ataques piratas à costa algarvia, as ilhas-barreira da Ria Formosa constituíam, de facto, pelo seu isolamento, o local ideal para um período de quarentena. No entanto, sem quaisquer construções de alvenaria, estas ilhas não seriam, certamente, providas de grandes infraestruturas para albergar o mais condignamente as famílias oriundas de Arzila. Será lícito supor que as mesmas teriam ficado instaladas em estruturas provisórias, possivelmente cabanas de colmo em tudo semelhantes às dos pescadores que proliferavam um pouco por todo o litoral algarvio, nas comunidades piscatórias sazonais.
Imagem
Cabana de colmo da Praia de Monte Gordo, representativa do tipo de construções efémeras de várias zonas costeiras algarvias
A medida preventiva de 1522 evitou, de facto, um surto de peste bubónica na região algarvia nesse ano. O Algarve, porém, não se livraria de ter de lidar com surtos de peste noutras épocas: foi o que aconteceu em 1601-1602, anos de peste em Lagoa, Faro, Portimão e Alvor, agravados pela fome e más colheitas; foi o que aconteceu em 1645-1646 com uma peste importada no Norte de África, que atingiu particularmente Tavira, que terá perdido entre 10 a 24% da sua população; foi o que aconteceu, também, em 1649-1650, quando a peste bubónica, nessa altura uma verdadeira epidemia mediterrânica, atingiu Silves, Lagos, Loulé e Faro, sendo que nesta última localidade terá vitimado entre 19 a 31% dos habitantes.

A História da região algarvia relembra-nos, pois, da sua vocação marítima e da sua posição estratégica no complexo luso-hispano-marroquino do golfo de Gibraltar e na ligação ao Mediterrâneo; por isso mesmo, tratava-se de uma região muito exposta aos surtos epidémicos, quer fosse pela actividade piscatória que se estendia até aos mares de Larache, quer fosse pelas rotas marítimas de circulação de pessoas e bens, que abrangiam todo o Mediterrâneo e se alargavam até ao Norte da Europa e, inclusivamente, à América do Norte. Por aqui circulavam pessoas oriundas de várias partes do globo. E onde circulam pessoas, podem circular, também, doenças, em períodos de surtos epidémicos.

Actualmente, tal como no passado, a região continua a ser potencialmente muito exposta às epidemias, ainda que por motivos diferentes. O Algarve é uma região apetecível pela sua vocação turística, o que no actual contexto já suscitou preocupação, por parte das autoridades e da população em geral, de que os que cá possuem segundas habitações decidam rumar à região para “vir curtir uma quarentena esperta, aquecida ao Sol do Algarve”. Não o façam! Neste momento de estado de emergência deve imperar o bom senso, o civismo e o respeito máximo pelas recomendações das autoridades.

Ademais, olhemos para a nossa História e retiremos daí as melhores aprendizagens que conseguirmos: ninguém nos está a pedir, tal como aconteceu aos nossos antepassados, que façamos quarentena numa ilha totalmente desprovida de condições sanitárias, onde as instalações resumir-se-iam certamente a umas poucas e frágeis palhotas. Temos – pelo menos, e felizmente, para a maioria de nós – o privilégio de poder cumprir o isolamento e a quarentena no conforto dos nossos lares, sentados nos nossos cómodos sofás, permanentemente ligados ao mundo através da internet.

Será que pedirem-nos, pelo bem comum, que fiquemos em casa, é pedir assim tanto?
21 Comments

A História em construção: o COVID-19 e o estado de emergência nacional

23/3/2020

0 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

No meu último artigo, relembrei que a História nos mostra que os eventos pandémicos são cíclicos, tendo afectado os nossos antepassados em diversas ocasiões, ao longo dos séculos. A mais recente e grave pandemia, antes do Covid-19, ocorreu há pouco mais de 100 anos, quando em 1918-19 a gripe pneumónica foi responsável por mais mortes do que a Primeira Guerra Mundial ou do que a Segunda Guerra Mundial.
​
Os eventos são cíclicos, mas a verdade é que a História é irrepetível, e enfrentamos hoje circunstâncias muito adversas e distintas das anteriores, com repercussões muito graves, que só daqui a algum tempo nos será realmente possível analisar. Estamos a experienciar um momento histórico sem precedentes, em que não é só o país que está parado e foi afectado, mas sim todo o planeta. E a História que agora estamos a escrever é uma História global, é a História da Humanidade.
Imagem

Read More
0 Comments

O COVID-19 e as pandemias na História: recordando a pneumónica de 1918-1919 no Algarve

16/3/2020

3 Comments

 
Por Andreia Fidalgo

No seu último artigo sobre “O COVID-19 e os dois calcanhares de Aquiles do Algarve”, aqui no Lugar ao Sul, o Gonçalo Duarte Gomes veio relembrar, de forma consciente e ponderada, as vulnerabilidades da região algarvia perante a actual pandemia, mas terminava com uma mensagem de esperança, escrevendo que “A noite é sempre mais escura antes da alvorada. Mas, infalivelmente, o Sol volta a nascer”.

Hoje regresso eu aqui ao Lugar ao Sul para reforçar esta mensagem de esperança, relembrando que a História da Humanidade esteve já sujeita a adversidades semelhantes e que, invariavelmente, a História nos relembra que os períodos de crise são cíclicos e que a Humanidade volta sempre a encontrar o seu equilíbrio na luta constante para sobreviver e para se manter sã em períodos difíceis.
Imagem
Enfermaria improvisada, por ocasião da pandemia de 1918, provavelmente nos EUA.
Nas últimas semanas, não raras vezes tem sido relembrada a peste negra em associação à rápida propagação do novo coronavírus. A peste negra subsiste no nosso imaginário como uma das epidemias mais mortíferas da História, absolutamente avassaladora, responsável por dizimar uma parte significativa da população. Efectivamente, esta epidema teve repercussões muito nefastas nos continentes asiático – de onde foi originária – e europeu, sobretudo entre os anos de 1346 e 1353, estimando-se que tenha sido responsável pela morte de cerca de 25 milhões de pessoas só na Europa, o que corresponde a cerca de um terço da população. A doença era causada pela bactéria Yersina pestis e, ao que tudo indica, transmitida ao ser humano através das picadas de pulgas e piolhos, numa época em que as condições de higiene e sanitárias eram, evidentemente, muito precárias ou até inexistentes.

Em Portugal, a peste negra entrou em 1348, provavelmente por altura de S. Miguel, isto é, nos finais de Setembro. Durante os três meses seguintes, estima-se que esta epidemia terá sido responsável pela morte de cerca de um terço a metade da população portuguesa, fazendo com que o país mergulhasse, à semelhança de outros territórios europeus, numa grave crise demográfica e económica. Os surtos da peste negra não se ficaram pelo século XIV e continuaram a assolar periodicamente, com maior ou menor intensidade, o país, assim como outras partes do globo, até ao século XIX, ainda que sem as repercussões dantescas do anterior período medieval.

Por associarmos esta epidemia à Época Medieval, parece-nos sempre uma realidade demasiado longínqua e até inimaginável nos dias de hoje. De facto, apesar de lidarmos agora com uma situação muito preocupante de pandemia, a peste negra medieval ocorreu num cenário que seria actualmente impensável, na medida em estamos hoje num patamar de evolução e desenvolvimento científico absolutamente notável, sem qualquer tipo de comparação possível com o período em que a Yersina pestis causou as suas maiores vítimas.

Nos dias que correm, perante a propagação do COVID-19, não nos faltam recomendações sobre as diversas formas de prevenir o contágio e informações detalhadas sobre a doença e sobre os sintomas mais comuns; não faltam, também, profissionais de saúde empenhados em tratar, no terreno, os doentes que entretanto vão aumentando de dia para dia, assim como não faltam equipas de cientistas que se esforçam ao máximo por investigar e conhecer o novo coronavírus, procurando afincadamente criar uma vacina e fármacos eficazes ao seu combate. E, além disso, claro que não é expectável que esta pandemia com a qual lidamos agora conduza ao desaparecimento de um terço da população mundial, o que seria sem dúvida ainda mais catastrófico do que o cenário já de si bastante alarmante em que agora nos encontramos.

O desenvolvimento científico da contemporaneidade trouxe à medicina progressos absolutamente assinaláveis, com um aumento exponencial da esperança média de vida, vacinação e a erradicação de várias doenças outrora mortíferas. Por isso mesmo, estamos hoje, felizmente, muito melhor preparados para lidar com as novas doenças… Mas estamos, no reverso da medalha, muito menos preparados do que os nossos antepassados para lidar com a morte… E, na verdade, apesar de sabermos, em teoria, que as epidemias são cíclicas, tal como a História nos ajuda a relembrar, não estamos também nada preparados para lidar com elas. Tal como não o estavam os nossos avós e os nossos bisavós quando, nos finais de 1918, tiveram de enfrentar uma das mais mortíferas pandemias de que há registo na História: a gripe pneumónica, também conhecida como gripe espanhola, causada por uma estirpe do vírus Influenza A, subtipo H1N1, altamente contagioso e particularmente agressivo, causador de pneumonias e responsável por uma elevada mortalidade, sobretudo em jovens adultos saudáveis, e não tão elevada, como seria de esperar, nos grupos de risco como os idosos, os doentes crónicos e as crianças.

Durante os anos de 1918 e 1919, estima-se que a pneumónica tenha afectado cerca de 500 milhões de pessoas e que tenha causado a morte de entre 50 milhões a 100 milhões de pessoas em todo o mundo; somou mais vítimas do que a peste negra na Europa, mais do que a Primeira Grande Guerra (16 milhões) e provavelmente mais do que a posterior Segunda Grande Guerra (entre 50 a 85 milhões), tendo sido, portanto, responsável pelo desaparecimento de cerca de 5% de população mundial daquela época.  

Não se sabe ao certo a origem desta doença, embora a maioria dos estudiosos defenda que terá aparecido num campo militar dos EUA, no estado do Kansas e se tenha propagado a partir daí, pelo Atlântico e pelo Pacífico, para os outros continentes. A rápida propagação da doença em muito se terá propiciado pela movimentação e posterior desmobilização das tropas da Grande Guerra, que teria o seu término em Novembro de 1918. A pneumónica desenvolveu-se em três vagas: a primeira entre Março e Abril de 1918; a segunda vaga irrompeu em Agosto até finais desse ano e foi a mais virulenta e mortífera; a terceira vaga ocorreu nos inícios do ano seguinte.

Neste cenário, Portugal não foi excepção. Estima-se que esta gripe foi responsável pela morte de 2% da população portuguesa (cerca de 135.000 pessoas), deixando a descoberto as fragilidades da rede de assistência médica no país durante o instável governo de Sidónio Pais, numa época em que Portugal sofria os efeitos adversos de participação na Grande Guerra e enfrentava uma grave crise económica, política e social. A segunda e mais intensa vaga da pneumónica começou na região do Porto, em Gaia, em meados de Agosto e daí foi irradiando para o resto do país. Chegaria ao Algarve em inícios de Outubro de 1918. E, tal qual o novo coronavírus, foi também um vírus muito democrático, que contagiou e afectou pessoas de todos os grupos sociais. Por cá, não lhe resistiria o advogado e poeta olhanense João Lúcio, que aos 38 anos deixou para sempre o seu “Algarve impressionista e mole”.

Os dois concelhos inicialmente mais afectados na região algarvia foram Loulé e São Brás de Alportel, onde a intensidade e fatalidade da pandemia teriam causado desde logo algum pânico entre a população, noticiado pela imprensa regional. Daí, alastrou-se aos concelhos limítrofes de Tavira, Olhão e Faro na segunda quinzena de Outubro e antes do final desse mês também foram afectados os concelhos do barlavento, nomeadamente Portimão, Lagoa, Lagos e Monchique. Os últimos concelhos afectados parecem ter sido Albufeira, Aljezur e Alcoutim, onde a taxa de mortalidade foi mais elevada em Novembro; porém, nenhum concelho algarvio, fosse ele do sotavento ou do barlavento, escapou ao surto pandémico, que teve consequência muito nefastas para a população.

Num telegrama dirigido pelo então Governador Civil de Faro ao Presidente da República, solicitava-se a protecção do Algarve perante um cenário absolutamente calamitoso, afirmando que a “epidemia varre povoações inteiras havendo já cemitérios completamente cheios, fazendo-se enterramentos em campa rasa. Faltam medicamentos, arroz, açúcar, velas, petróleo, massas, manteigas, batatas, e há três dias que não há pão”. Este cenário não era exclusivo da região algarvia e o governo central viu-se então obrigado a tomar medidas de combate à pandemia… porém, não tão drásticas como efectivamente deveriam ter sido, de forma a conter a doença. O então Director Geral da Saúde, Ricardo Jorge, acreditava que sendo a gripe causada por um vírus, só uma vacina poderia resolver o problema, pelo que considerava que as medidas tradicionais como o isolamento seriam ineficazes. Por isso mesmo, chegou mesmo a defender que a vida social e as distracções deveriam prosseguir para não aumentar o isolamento e o pânico entre a população.

Não obstante, o elevado contágio acabou por levar ao encerramento de escolas e universidades, de serviços públicos, e as feiras e romarias foram interditas. Foram tomadas medidas, em articulação com as autoridades locais, que passaram por informar a população das adequadas medidas profiláticas no combate à gripe, por garantir a presença suficiente de médicos em todos os distritos para acudir aos casos de doença, e por providenciar um melhor atendimento nas farmácias, assim como a disponibilização de medicamentos. Além disso, o Estado Português incumbiu-se de ajudar financeiramente as delegações de saúde dos distritos para socorro das populações afectadas pela pandemia. Ainda assim, muito tardiamente. A resposta do Estado não acompanhou a rapidez de propagação do surto gripal, revelando não só as dificuldades de comunicação do centro com a periferia, como também as frágeis estruturas de apoio e assistência na saúde em Portugal.

Os últimos três meses de 1918 corresponderam a um cenário de caos e pânico em todo o país, com desastrosas consequências não só demográficas, como também económicas e sociais, numa conjuntura já de si muito complicada. Ajudaram a salientar as fragilidades de resposta do Estado e das diversas autoridades, fragilidades estas que, consumados os acontecimentos, são sempre tão fáceis de apontar, mas que, em última análise, são sobretudo resultado de decisões muito difíceis de tomar a quem cabe a responsabilidade de agir num período atípico de crise e de surto pandémico.

Não queria, porém, terminar esta reflexão salientando as fragilidades de então, que bem podem ser as de agora, mas sim terminá-la relembrando a forma como, perante uma situação tão difícil e trágica de perda de tantas vidas, se desencadearam no Algarve, como um pouco por todo o país, movimentos cívicos de solidariedade social e de entreajuda, que partiram de cidadãos anónimos, de associações, de comissões locais de apoio, do bispo e dos párocos, entre outros, que contribuíram como lhes foi possível com dinheiro, alimentos e outros géneros, ou ajudando as autoridades  no tratamento e prevenção da doença, ou mesmo na transmissão de informação e no apoio e conforto dos mais necessitados. Basta, para tal, relembrar os donativos da companhia de seguros “A Latina” aos concelhos de Silves, Portimão e Faro; ou a acção do industrial João António Júdice Fialho que, durante a epidemia, manteve um sistema organizado de serviços de apoio na doença aos seus funcionários e respectivas famílias; ou, ainda, o apoio da Associação da Senhoras da Caridade de Faro na angariação de fundos para as famílias mais afectadas – isto apenas para salientar alguns exemplos, de entre os muitos outros que então ocorreram.

Situações catastróficas e de grande dramatismo, que ameaçam a nossa vida e vida daqueles que nos são próximos, são também situações que tendem a fazer sobressair a nossa empatia e compaixão pelo drama do outro. São momentos em que nos sentimos compelidos a ajudar o próximo. Podemos, neste momento, encontrar algum conforto na nossa História, ao relembrar que, em 1918, os nossos avós e bisavós estiveram sujeitos a circunstâncias muito adversas, quiçá bem mais penosas que as nossas, e que foram, ainda assim, capazes de as ultrapassar; lidaram de perto com a doença e com a perda de familiares e de amigos, e encontraram, ainda assim, ânimo e força para prestar assistência aos mais necessitados.

Podemos e devemos, neste momento tão difícil, envidar todos os esforços para fazermos a nossa parte no combate ao COVID-19… mesmo que nos pareça que a nossa parte é pequena e mesmo que corresponda somente a ficar no recato do nosso lar, protegendo-nos não só a nós próprios, como também aos outros. Se todos fizermos a nossa parte, todas as partes, que podem até parecer pequenas, juntas se tornam grandes e se fazem fortes!
​
Neste momento temos de nos manter unidos em torno de um mesmo objectivo comum: ultrapassar, da melhor forma e com os menores danos possíveis, esta pandemia. E assim será!
Imagem
3 Comments
<<Previous
    Visite-nos no
    Imagem

    Categorias

    All
    Anabela Afonso
    Ana Gonçalves
    André Botelheiro
    Andreia Fidalgo
    Bruno Inácio
    Cristiano Cabrita
    Dália Paulo
    Dinis Faísca
    Filomena Sintra
    Gonçalo Duarte Gomes
    Hugo Barros
    Joana Cabrita Martins
    João Fernandes
    Luísa Salazar
    Luís Coelho
    Patrícia De Jesus Palma
    Paulo Patrocínio Reis
    Pedro Pimpatildeo
    Sara Fernandes
    Sara Luz
    Vanessa Nascimento

    Arquivo

    October 2021
    September 2021
    July 2021
    June 2021
    May 2021
    April 2021
    March 2021
    February 2021
    January 2021
    December 2020
    November 2020
    October 2020
    September 2020
    August 2020
    July 2020
    June 2020
    May 2020
    April 2020
    March 2020
    February 2020
    January 2020
    December 2019
    November 2019
    October 2019
    September 2019
    August 2019
    July 2019
    June 2019
    May 2019
    April 2019
    March 2019
    February 2019
    January 2019
    December 2018
    November 2018
    October 2018
    September 2018
    August 2018
    July 2018
    June 2018
    May 2018
    April 2018
    March 2018
    February 2018
    January 2018
    December 2017
    November 2017
    October 2017
    September 2017
    August 2017
    July 2017
    June 2017
    May 2017
    April 2017
    March 2017
    February 2017
    January 2017
    December 2016
    November 2016
    October 2016
    September 2016

    RSS Feed

    Parceiro
    Imagem
    Proudly powered by 
    Epopeia Brands™ |​ 
    Make It Happen
Powered by Create your own unique website with customizable templates.