Por Gonçalo Duarte Gomes … cantaria Nero (assim mesmo em cámone), se em vez da eterna Roma governasse antes a capital do Reino dos Algarves. Sair-lhe-ia no entanto o pirómano tiro pela culatra, pois se na capital do Império Romano teve oportunidade de destruir todo um sistema de poder que se inscrevia no desenho urbano e na arquitectura da cidade, em Faro é já muito pouco o que de relevo e significado sobra para queimar. Já se o dedinho incendiário lhe fugisse para a queima de mamarrachos, bem que a velha Ossónoba poderia tremer… Nero gravou, literalmente a fogo, o seu nome na História Universal, pela acusação que sobre ele impende – e que não é consensual nas fontes históricas – de ter encomendado o grande incêndio que, em 64 d.C., devastou aproximadamente metade da cidade de Roma. Mais ainda por, supostamente, ter aproveitado a calorosa ocasião para estrafegar uma lira (há quem diga que outro instrumento), torturando os ouvidos dos transeuntes – ao que parece, a divina iluminação não garantia, naqueles tempos, virtuosismo musical – enquanto ia atirando as culpas para cima da comunidade cristã, então um grupo a tender para o mal visto... Certo é que, na ressaca do fogacho, o caliente imperador redesenhou a cidade à imagem da sua concepção, provando, mais uma vez, que o urbanismo é uma forma de demonstração de poder, tal como o são todas as formas de moldar a paisagem, seja urbana ou rural. Na rua Reitor Teixeira Guedes, precisamente em Faro, podia encontrar-se, até há bem pouco tempo, um conjunto interessante de moradias, datadas principalmente do Séc. XIX , que era repositório de traços identitários da arquitectura e também, inevitavelmente, da sociedade de um certo período da história farense. A sua sobrevivência e presença, como em qualquer caso de persistência patrimonial, indicava a continuidade da tradição, que a modernidade ia continuando a albergar. Em 2017 – recorrendo a uma baliza temporal próxima – parte desse conjunto, na esquina com a Rua João de Deus, foi abaixo para dar lugar a um inenarrável mamarracho, perfeitamente desproporcional, que muito honra o epíteto que acompanha recorrentemente Faro, capital não apenas do Algarve, mas também dos citados monos arquitectónicos. Nesta semana assistiu-se a um incêndio em parte do pouco que sobrava, e que se encontrava ao abandono. O seu futuro provavelmente ditará um destino de capitulação urbanística, idêntico ao que varreu os restantes traços da antiguidade farense do mapa daquele quarteirão (e boa parte da cidade, note-se). Não pretendo discutir as teorias, mais ou menos conspirativas, que tentam explicar o processo de degradação que assolou aquele edifício. Principalmente porque me parecem irrelevantes. Certa, certa, é uma coisa e uma coisa apenas: o que aconteceu é fruto de uma clara opção política, de toda a cidade e não apenas dos decisores desde há décadas, que também inscreve uma identidade e uma visão. De abandono e desconsideração pelos valores culturais e patrimoniais inscritos no tecido urbano, com aqueles que não são classificados numa primeira linha de vulnerabilidade. Porque é, obviamente, uma opção quando se deixa algo que se afirma importante ao sabor do acaso ou, pior ainda, em flagrante delito de negligência – ironicamente, mesmo ao lado de um Tribunal e das instalações de uma Junta de Freguesia. Pena é que a cápsula do tempo que a cidade enterrou já esteja sete palmos abaixo de terra, pois de outra forma talvez ainda se lá pudessem enfiar uns destroços deste testemunho da Faro contemporânea. Assistimos a isto de forma recorrente, e não apenas em Faro. Recorde-se, a título de muito notável exemplo, o triste fim do Palácio da Fonte da Pipa, em 2017. É estrutural, não local, e, mais assustador ainda, talvez seja cultural. Por ocasião do incêndio do Palácio, li aí mais uma medida do fosso existente entre o opíparo e açucarado vocabulário que recheia os discursos oficiais sobre o tema e a prática de valorização do património. No papel e na verborreia, todos vivem o património como “memória colectiva”, “elemento fundamental da identidade” ou outros jargões análogos. No entanto, quando chega a altura de passar um cheque – podia ser o mesmo que paga rendas a privados para albergar serviços públicos – para sustentar tais pretensões (o eloquente, embora estrangeirado, put your money where your mouth is) começa a derrapagem generalizada que redunda no estampanço da ruína. Perante o que agora sucedeu, constata-se que nem todas as tradições são para apagar. Mas o futuro é risonho. Faro sonha, nestes dias, em ser Capital Europeia da Cultura. Um projecto estruturante, não apenas para a cidade, mas também para a região, que tão mais pujante será, quanto mais dinâmica for a sua capital. Um daqueles que, mesmo que falhe, valerá a pena pelo percurso de análise e introspecção que promove na tentativa. Um projecto que pressupõe a capacitação da cidade, dignificando o seu tecido urbano e elevando a sua qualidade, para que todo o tecido urbano seja palco de Cultura, muito mais do que os espaços ou equipamentos em que se possam materializar programações. Só será lamentável que a história e identidade urbana da cidade não caibam em tão ambicioso projecto. Ou será que cabem?
1 Comment
Miguel
10/5/2019 19:29:50
Espero que caibam Gonçalo, mas coisas de mais falham em Faro para que se possa afirmar como capital de qualquer coisa que não seja o mamarracho o petisco e patuscada e motards.
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