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As mórbidas tonalidades laterais das tristes cinzas de um País

20/10/2017

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Por Gonçalo Duarte Gomes

A propósito de fogos, e da forma como em Portugal se debatem causas, efeitos e responsabilidades, recordei-me de um cão, que há na rua onde moro.


Estuporado, ladra feroz e incessantemente de cada vez que passo defronte do portão junto ao qual preguiçosamente dormita todo o dia. Não interessa se me rio ou faço cara feia para ele. É uma besta do Inferno, pronta a arrancar-me um membro ou até a cabeça. Em boa verdade, a única coisa que identifico como capaz de arrancar aquele cão à letargia é a perspectiva de ladrar.

Mas não me chateia. Até respeito aquele cão.

Porque tal como ladra à minha passagem, ladra à passagem de qualquer outra pessoa. É a sua visão, o seu princípio, a sua afirmação. Perto daquele portão não passa ninguém. Não me chateia e respeito-o porque é coerente e defende aquilo em que acredita, contra tudo e contra todos.

Mas nem todos os cães são assim.

Há cães cujo ladrar depende. Nunca sabemos realmente o que pensam ou aquilo em que verdadeiramente acreditam, porque não acreditam propriamente em nada, ou antes pensam o que lhes dizem para pensar. Depende do dia, da pessoa, do que trazem vestido, por que lado se apresentam. Apenas reagem a estímulos. Esses cães chateiam-me. Perturbam-me. Desprezo-os, na sua esterilidade de ideias.

Eu, que até adoro cães. Mas esses não.

Aliás, nem os considero cães. Olho para eles e vejo catos. Não cactos, porque cactos escreve-se com c, ao contrário de catos. Catos, cães gatos, ca-tos. A sua fidelidade e lealdade a princípios é obedientemente volátil, contorce-se felinamente, lateralmente. Porque não têm consciência, memória ou escrúpulos. Apenas têm interesses. Desprezo catos.

Curiosamente, os catos, originários de zonas pantanosas, dão-se lindamente sobre terra queimada.
Seja queimada de esquerda ou queimada de direita.

Sim, porque em desertos de cinza, sobre os cadáveres de gente e paisagem, os olhos dos catos conseguem mesmo distinguir tonalidades, que agrupam por lateralidade. É uma espécie de paleta. Morto ou queimado à esquerda, morto ou queimado à direita. Consoante o azimute, assim se animam, fazendo lembrar o cão que me hostiliza porque do seu portão me acerco mas respeito, ou assim se calam, lembrando os catos de que afinal não passam e que desprezo. E vice-versa. Porque apesar de se morderem mutuamente, são todos iguais. Desde que no lado certo, não há mortos ou desolação que os inquiete.

Sim, os catos dão-se lindamente sobre terra queimada.

E à sua passagem, e na sua presença, nada floresce, nada renasce, nada se ergue das cinzas.

Tudo permanece queimado. Porque para eles, há sempre um queimado certo.

​Era bom que os cães, como aquele que me hostiliza, afugentassem os catos dos nossos portões.


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