Por Gonçalo Duarte Gomes
A propósito de fogos, e da forma como em Portugal se debatem causas, efeitos e responsabilidades, recordei-me de um cão, que há na rua onde moro. Estuporado, ladra feroz e incessantemente de cada vez que passo defronte do portão junto ao qual preguiçosamente dormita todo o dia. Não interessa se me rio ou faço cara feia para ele. É uma besta do Inferno, pronta a arrancar-me um membro ou até a cabeça. Em boa verdade, a única coisa que identifico como capaz de arrancar aquele cão à letargia é a perspectiva de ladrar. Mas não me chateia. Até respeito aquele cão. Porque tal como ladra à minha passagem, ladra à passagem de qualquer outra pessoa. É a sua visão, o seu princípio, a sua afirmação. Perto daquele portão não passa ninguém. Não me chateia e respeito-o porque é coerente e defende aquilo em que acredita, contra tudo e contra todos. Mas nem todos os cães são assim. Há cães cujo ladrar depende. Nunca sabemos realmente o que pensam ou aquilo em que verdadeiramente acreditam, porque não acreditam propriamente em nada, ou antes pensam o que lhes dizem para pensar. Depende do dia, da pessoa, do que trazem vestido, por que lado se apresentam. Apenas reagem a estímulos. Esses cães chateiam-me. Perturbam-me. Desprezo-os, na sua esterilidade de ideias. Eu, que até adoro cães. Mas esses não. Aliás, nem os considero cães. Olho para eles e vejo catos. Não cactos, porque cactos escreve-se com c, ao contrário de catos. Catos, cães gatos, ca-tos. A sua fidelidade e lealdade a princípios é obedientemente volátil, contorce-se felinamente, lateralmente. Porque não têm consciência, memória ou escrúpulos. Apenas têm interesses. Desprezo catos. Curiosamente, os catos, originários de zonas pantanosas, dão-se lindamente sobre terra queimada. Seja queimada de esquerda ou queimada de direita. Sim, porque em desertos de cinza, sobre os cadáveres de gente e paisagem, os olhos dos catos conseguem mesmo distinguir tonalidades, que agrupam por lateralidade. É uma espécie de paleta. Morto ou queimado à esquerda, morto ou queimado à direita. Consoante o azimute, assim se animam, fazendo lembrar o cão que me hostiliza porque do seu portão me acerco mas respeito, ou assim se calam, lembrando os catos de que afinal não passam e que desprezo. E vice-versa. Porque apesar de se morderem mutuamente, são todos iguais. Desde que no lado certo, não há mortos ou desolação que os inquiete. Sim, os catos dão-se lindamente sobre terra queimada. E à sua passagem, e na sua presença, nada floresce, nada renasce, nada se ergue das cinzas. Tudo permanece queimado. Porque para eles, há sempre um queimado certo. Era bom que os cães, como aquele que me hostiliza, afugentassem os catos dos nossos portões.
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