Por Gonçalo Duarte Gomes A 30 de Outubro de 1938, faz hoje precisamente 82 anos, uma versão radializada da novela alegórica "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells, foi emitida pelo Columbia Broadcasting System, narrada por Orson Welles, causando grande alarme e agitação social - e até episódios de pânico em alguns locais - nos Estados Unidos da América, por muita gente crer que era real a ficção radiofonicamente relatada. O argumento, hoje banal, foi na altura pioneiro: uma raça alienígena, fisgada no domínio do planeta Terra, não se ensaiou de invadir este nosso terceiro calhau a contar do Sol para o conseguir, atacando simultaneamente vários pontos nevrálgicos. Pelo meio, eliminar a Humanidade não pareceu ideia incómoda. Ou pelo menos não houve pruridos de fazer mossa, vá. Grande. No fim de várias peripécias, são micróbios as formas de vida que defendem a honra do convento terráqueo, desgraçando inapelavelmente os invasores extraterrestres, vergonhosamente eliminados pelo equivalente a pé de atleta ou intoxicação alimentar. Foi, de forma muito simplista, este enredo que, navegando pelas ondas do éter, levou medo a muitos lares americanos que, à data, tinham na rádio o principal entretenimento do serão familiar.
Medo. Medo derivado da desinformação, da falta de conhecimento, da surpresa e do choque induzido pelo formato e da confiança depositada no veículo. Medo que medrou em substrato fértil, fruto da época, do contexto social, da novidade da coisa, do cunho dramático da radialização - importa lembrar a veia cinematográfica de Welles - e de uma certa inocência geral da sociedade face a fenómenos de natureza mediática e ainda mais no campo da ficção científica. A 30 de Outubro de 2020, em Portugal, num dia em que se aplica um conjunto de condicionamentos sociais cujo enquadramento constitucional não é claro aos olhos de um leigo, e muito menos é claro o seu fundamento objectivo, é importante evitar qualquer tipo de aproximação a um momento "Guerra dos Mundos", de medo pela mediatização e desinformação, porque estamos com um problema real em mãos, e não uma ficção. Quase 8 meses após o decreto da pandemia por parte da Organização Mundial de Saúde, e numa altura em que diariamente os meios de comunicação social - com o alto patrocínio das entidades oficiais - nos bombardeiam à exaustão com sensacionais limiares ultrapassados, no que a infecções e números de mortes diz respeito, o verdadeiro recorde é o do banho mediático promotor de medo em que todos somos mergulhados, sem que, no entanto, de tal esfrega aparentemente resulte grande higiene, pelo menos do ponto de vista informativo. Não porque faltem dados, mas porque falta o tratamento desses dados, de forma a transformá-los em informação e, depois, em conhecimento. Conhecimento esse que é a ferramenta de excelência para construir consciência e... combater o medo. Sem esse conhecimento, oscilaremos numa espiral descontrolada e desinformada, entre o medo incapacitante e a incompreensão que atrevidamente (inclusivamente através de movimentos que muitas vezes alardeiam pseudociência, ou ciência não sindicável) se auto legitima no incumprimento e desrespeito pelas normas vigentes. E num cansaço anímico insustentável. Não bastam números, é necessária a sua interpretação e clarificação - a cada caso positivo corresponde efectivamente um doente, mesmo quando, por exemplo, não há sintomas? Não bastam testes, é necessária a clarificação inequívoca da sua fiabilidade - por exemplo para despistar a suspeita de uma relação entre o recente disparar de testes positivos e a aproximação da época da gripe sazonal. Não bastam mortos - morreram de quê, exactamente? De ou com Covid? E os que morreram por falta de assistência, sem Covid, nem apelo ou agravo? São um sacrifício necessário, ou ficam na berma da História, esquecidos como danos colaterais, mesmo que os seus números esmaguem os da patologia do momento? Na mesma linha, é preciso que nos expliquem adequadamente porque é que os mortos - e os vivos que lhes prestam homenagem - são problemáticos, mas a ida a um espectáculo, uma corrida de automóveis, uma festa partidária ou um transporte público colectivo a abarrotar, não são. Os critérios são de saúde pública? São sócio-económicos? Uma ponderação entre ambos, em proporções fluidas? Quais os impactos esperados com as medidas a aplicar? E qual o balanço de tudo o que já se fez até aqui? Ou, ao fim dos tais quase 8 meses de pandemia, continuamos tão às cegas e aos apalpões como estávamos no início? Em tempos como este, que se afiguram (e anunciam) críticos, a coerência é um bem maior nas linhas de orientação que são dadas para que todos cumpram. Por outro lado, contradições, excepções mal explicadas e ausência de critérios objectivos... são uma Caixa de Pandora escancarada. Não é necessário paternalismo. Não é necessário autoritarismo. É necessária transparência. É necessária informação. Para que todos possam ser responsáveis e responsabilizados. Porque as pandemias vêm e vão, mas era bom que a ideia do Estado de Direito e da confiança nas instituições sobrevivesse, e de boa saúde.
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Por Andreia Fidalgo Por vezes, a identidade cultural perde-se, porque não há quem dela tome conta. Nem mesmo as instituições às quais supostamente competiria tal tarefa difícil. Sempre me fez confusão esta coisa do Halloween. Quando eu era miúda, era coisa que não se celebrava, e máscaras só vê-las mesmo no Carnaval. Actualmente, são as próprias escolas a fomentar uma tradição importada, incitando os miúdos a vestirem-se a rigor, sob o consentimento praticamente unânime dos pais que só querem ver os petizes felizes e contentes (e quem os pode culpar?!). No entanto, se pararmos para pensar um pouco, talvez fizesse mais sentido que estas mesmas instituições escolares se preocupassem em manter vivas as tradições portuguesas (e, felizmente, ainda há algumas que o fazem!), transmitindo-as aos mais novos, para que com o passar dos anos estas não se percam por completo. Por cá, em certas regiões, havia um ritual igualmente interessante e já muito esquecido, chamado Pão-por-Deus (o nome nem sempre era este, variava de terra para terra). Trata-se de um peditório que decorria na manhã do Dia de Todos os Santos, no qual as crianças e os pobres batiam à porta das casas da sua vizinhança, com um saco de pano, pedindo pão por Deus, em troca de orações pelos mortos. As dádivas que recebiam não eram unicamente pão, ou bolos: podiam ser frutos da época ou mesmo moedas. O peditória era acompanhado de versos, tais como: "Pão por Deus, Fiel de Deus, Bolinho no Saco, Andai com Deus." Quando era oferecida a dádiva, podia-se responder: "Esta casa cheira a broa Aqui mora gente boa. Esta casa cheira a vinho Aqui mora algum santinho." Quando a dádiva era recusada, podia dizer-se o seguinte: "Esta casa cheira a alho Aqui mora um espantalho Esta casa cheira a unto Aqui mora algum defunto." Na ausência de resposta: "Se tem pão e não quer dar Deus lhe parta o alguidar Quando estiver a amassar." Esta tradição tem raízes antigas, provavelmente proveniente de rituais pagãos, posteriormente incorporados no Cristianismo. Há notícia, no século XV, de que havia a obrigação de distribuir pelos pobres, no Dia dos Fiéis Defuntos, o pão por Deus. O terramoto de 1 de Novembro de 1755 é apontado por alguns estudiosos como um momento-chave para cimentar a tradição do pão por Deus, visto que a miséria e a fome por ele gerados teriam incitado os peditórios. Uma tradição actualmente quase esquecida, substituída por um ritual importado, de origem anglo-saxónica. Não seria bem mais interessante reavivá-la? Sobre o Pão por Deus e todo o ritual do Dia dos Mortos, veja-se a interessante tese de Mestrado de Margarida Dourado Dias, O ritual do Dia dos Mortos na aldeia transmontana de Meixide : a expressão estética da lembrança e a procura da imortalidade, Universidade do Minho, 2009. No Dia de Todos os Santos, a terra tremeu: o Algarve e o terramoto de 1 de Novembro de 175528/10/2020 Por Andreia Fidalgo Na História de Portugal há um antes e um depois do terramoto de 1 de Novembro de 1755. Precisamente no Dia de Todos os Santos, há 265 anos, a terra tremeu e deixou grande parte da capital portuguesa destruída. Centenas de edifícios ficaram reduzidos a ruína. Milhares de vidas se perderam sob os escombros. Os que conseguiram fugir, aterrorizados, dos edifícios que desabavam, para perto do Tejo, foram surpreendidos pelo tsunami que se seguiu. Findo o tsunami, vieram os incêndios, que conduziram parte da capital à devastação total. Foi um duro e inesperado golpe para Lisboa e para o Reino de Portugal. Esta catástrofe veio agravar uma situação económica que já por si era bastante calamitosa. Estima-se que o montante das perdas económicas causadas pelo terramoto possa ter correspondido a cerca de 75% do valor do produto interno bruto do ano de 1755*, o que é bastante revelador do seu impacto nefasto na economia do país. Porém, foi também o terramoto que abriu caminho à ascensão de Sebastião José de Carvalho e Melo – mais tarde Marquês de Pombal – como o homem de força do governo de D. José. Sob a sua alçada seriam implementadas várias medidas económicas de carácter vincadamente proteccionista, destinadas a valorizar os sectores produtivos (agricultura e a indústria), a diminuir a dependência económica do exterior, a reduzir os desequilíbrios da balança comercial e, de uma forma geral, a favorecer o reforço do próprio Estado. Havia que centralizar o Estado e recuperar economicamente o Reino, que já entrara numa situação de crise antes do terramoto, e que com este se agravara ainda mais. Ao contrário do que costuma ser geralmente salientado, o terramoto de 1755 não teve apenas impacto destrutivo em Lisboa. Com o epicentro localizado a sudoeste de Sagres, também a região algarvia foi muito afectada por esta catástrofe e pelo tsunami subsequente. Sobretudo a zona do barlavento: na cidade de Lagos, a devastação foi tal que os relatos da época dão notícia de uma urbe onde quase todos os edifícios ficaram em ruínas e se registaram algumas centenas de mortos. Mas também semelhante cenário se teria registado nas cidades de Faro e Tavira, onde inúmeras edificações religiosas e civis foram afectadas e também se registaram dezenas de baixas. De Faro, à época com cerca de 7000 habitantes e onde o sismo contabilizou 200 vítimas mortais, chegou-nos o testemunho impressionante do intelectual Damião António de Lemos Faria e Castro, aí residente: “Em poucos minutos foi vista a formosa Faro um monte de ruínas, ela arrasada pelos fundamentos, raros edifícios escaparam, estes ficaram moídos. A devoção do dia havia chamado grande concurso às Igrejas, aonde muita gente ficou sepultada debaixo das suas abóbadas. As casas caídas que tomavam todo o vão das ruas, esmagou outra grande quantidade. Na praça se abriu uma rotura a que não se achava fundo” [1786]. A região demoraria muito tempo a recuperar desta catástrofe… Se em Lisboa, os esforços para recuperar a cidade foram imediatos, no que ao Algarve diz respeito, só na década de 70 é que teria alguma atenção por parte da Coroa e de Pombal, que então elaborou um plano para a sua “Restauração”. Plano este de curta duração e com escassos efeitos, visto que D. José morreu em 1777 e o Marquês foi imediatamente afastado do poder político, sem ensejo de continuidade de muitos dos projectos reformistas em curso. Desta forma, quando em 1789 D. Francisco Gomes de Avelar é nomeado bispo do Algarve, ainda se viria a deparar com uma região onde os efeitos do terramoto eram bem visíveis, sendo que grande parte da sua acção pastoral se viria a concentrar precisamente na reconstrução de muitos edifícios religiosos que ainda padeciam, na viragem do século XVIII para o XIX, dos danos causados pelo terramoto. A morosa recuperação da região encontra-se também atestada no relato do botânico e naturalista alemão Heinrich Friedrich Link, que visitou o Algarve em 1799. Sobre a cidade de Lagos, por exemplo, Link registava o seguinte: "Quando o grande terramoto destruiu Lisboa no ano de 1755, o mar também aqui se agitou, entrou de rompante por uma enseada em direcção a terra e devastou a região em redor. (…) Vive muita gente de condição na cidade e vêem-se algumas belas casas, mas também ainda lugares deixados vazios pelo terramoto de 1755, que muito fez sofrer esta cidade”. O terramoto deixou, pois, marcas profundas na região algarvia nas décadas seguintes. Mas será que podemos dizer que, por exemplo, os problemas económicos da região, ou mesmo do país, nessa época, resultaram única e exclusivamente desta catástrofe imprevista? Não, claro que não, pois embora esta os tenha agravado substancialmente, os problemas eram estruturais e pré-existentes. Também hoje não podemos dizer que os problemas que enfrentamos perante os desafios levantados pela pandemia, sejam única e exclusivamente derivados dela. Já aqui, numa outra ocasião e num plano mais filosófico, comparei (com as devidas reservas!) o terramoto de 1755 com a Covid-19: ambos constituem eventos extremos e inesperados, desencadeados pela natureza, que colocam em causa a ordem natural do mundo e inspiram reflexões algo semelhantes; mas, além disso, ambos tiveram/têm consequências graves sob o ponto de vista social, económico e político. Sendo certo que o Algarve precisa, actualmente, de uma atenção especial por parte do governo, dada a fragilidade da sua economia tão dependente do turismo, esperemos, no entanto, que os desafios que a região tem agora de enfrentar não se arrastem, sem resolução à vista e sem intervenção específica, como aconteceu em épocas anteriores da nossa História, de que o terramoto constitui um excelente exemplo. * De acordo com: José Luís CARDOSO, “Pombal, o terramoto e a política de regulação económica”, in Ana Cristina ARAÚJO et. al. (org.), O Terramoto de 1755: impactos históricos. Lisboa: Livros Horizonte, 2007, pp.165-181. Para uma descrição detalhada sobre os efeitos do Terramoto de 1755 no Algarve, veja-se: Alexandre COSTA, Carla SEABRA, Sara NUNES, “O que nos diz a História”, in Alexandre COSTA e Maria da Conceição ABREU (Coords.), 1755 – Terramoto no Algarve. [s.l.]: Centro de Ciências Viva do Algarve, 2005, pp. 13-152. Por Luís Coelho O Algarve abanou quando em Março se percebeu que a pandemia ia forçar o País (e o mundo) a parar. De facto, todos sabemos que sem turismo a região é (quase) economicamente irrelevante. A ironia acabar por ser grande: depois de um 2019 absolutamente extraordinário a todos os níveis (20.9 milhões de dormidas, das quais 76.2% geradas por não residentes; 1.2 mil milhões de proveitos totais captados pelos nossos estabelecimentos de alojamento turístico classificados, valor que que representa um crescimento homólogo face a 2018 de 7.1%) 2020 prometia ser ainda melhor. Infelizmente, tudo mudou muito rapidamente. Atentemos então na Tabela 1 para perceber melhor o que se passou: Como é possível verificar, face ao ano anterior, o Algarve conseguiu crescer em dormidas em Janeiro e Fevereiro de 2020. Estas são boas notícias para uma região historicamente assolada por níveis de sazonalidade elevados, os quais dificultam significativamente a gestão parcimoniosa dos avultados recursos – públicos e privados – dedicados à exploração do nosso fenómeno turístico. Lamentavelmente, a pandemia ditou o colapso do sector turístico na europa (e no mundo) a partir, sensivelmente, do final do primeiro trimestre. Os dados disponibilizados na Tabela 1 mostram a violência do que se abateu sobre nós: quebras de 52% nas dormidas em Março que são até simpáticas quando comparadas com as perdas de quase 100% registadas em Abril e Maio. As más notícias não se ficam por aqui. Os meses de verão, momento alto da economia algarvia, também não correram bem. Em particular, face a 2019, Junho registou uma quebra na procura turística de uns impressionantes 86% e Julho de 65%. Agosto, mês-rei do sol e praia a sul, também não resistiu. Perderam-se 39% das dormidas em termos homólogos. No final e em termos acumulados, os primeiros oito meses de 2020 registaram apenas 5.4 milhões de dormidas, valor que choca quando comparado com os 15 milhões do ano anterior. A quebra na procura sentiu-se tanto no mercado interno como externo embora com intensidades diferentes, facto que fica bem patente nas Tabelas 2 e 3 abaixo: Como é possível verificar, o mercado externo colapsou totalmente a partir de Março. As perdas homólogas de dormidas neste segmento são absolutamente indiscritíveis em Abril, Maio e Junho e extremamente pesadas em Julho em Agosto. Na vertente interna verificam-se também quebras acentuadas entre Março e Junho, havendo alguma "recuperação" em Julho. Valha-nos Agosto que trás consigo uma boa notícia: nesse mês verifica-se um crescimento homólogo de 10% face a 2019, o qual se explica pelo facto de muitos nacionais terem optado por ficar em Portugal em vez de passarem as suas férias no estrangeiro. Ainda assim, em termos globais, a perda no mercado externo é de uns impressionantes 76% (2.7 milhões de dormidas vs. 11.2 milhões em 2019) e de uns muito penalizadores 28% no mercado interno (2.7 milhões de dormidas vs. 3.8 milhões). Estes valores são, naturalmente, muito preocupantes para a região do Algarve e tornam-se agoniantes quando se monetizam, algo que fazemos com o auxílio da Tabela 4: Chamo a atenção do leitor para três aspecto-chave presentes na Tabela 4. O primeiro prende-se com o facto do sector hoteleiro algarvio ter conseguido aumentar os seus proveitos em termos homólogos nos primeiros dois meses de 2020. O segundo resume-se a um número: 537 (mil euros). Foi esta a facturação combinada da totalidade das empresas hoteleiras do algarve em Abril. A variação homóloga registada nesse mês é de 99%, o que volta a registar-se em Maio. As perdas nestes dois meses são, pois, simplesmente catastróficas e exemplificam bem o aperto que a tesouraria deste sector levou por esta altura. Infelizmente, o cenário não se altera significativamente em Junho e Julho. Agosto é já um pouco melhor mas ainda assim fica bem aquém do que seria esperado num ano normal. No final, em termos acumulados, a hotelaria classificada do Algarve perdeu 64% da sua facturação nos primeiros oito meses de 2020 face ao registado em 2019. Como sabemos, o governo decidiu apoiar as empresas nacionais implementando várias medidas de emergência. Permito-me destacar duas que me parecem especialmente importantes para as nossas empresas hoteleiras. A primeira é a do layoff, a qual penalizou fortemente os rendimentos dos trabalhadores mas desafogou a tesouraria das empresas, salvando - potencialmente - muitos postos de trabalho. A segunda diz respeito às moratórias sobre o crédito bancário. Esta é absolutamente vital já que, em face da natureza do seu activo e da sazonalidade do negócio, são muitas as empresas hoteleiras que dependem criticamente do acesso a este tipo de financiamento para poderem investir e sustentar o seu ciclo de exploração. Chamo a atenção para este aspecto por uma única razão: não sendo possível antecipar o cenário de saúde pública em Portugal (e na Europa e no Mundo) em 2021, é crítico que o governo olhe para a região do Algarve com particular atenção. A nossa dependência dos humores da procura turística tornam-nos especialmente frágeis do ponto de vista económico e social. Urge por isso continuar a implementar medidas que ajudem de facto a conservar ao máximo o nosso tecido empresarial, o qual se caracteriza por ser altamente fragmentado, concentrado em torno do fenómeno turístico e assente em microempresas com competências de gestão muito modestas. Qualquer hesitação nesta matéria pode desencadear tensões sociais severas passíveis de ditar a destruição de um dos principais activos turísticos da região: a segurança e o nosso famoso saber-receber. Por Gonçalo Duarte Gomes Numa altura em que no Algarve tanto se discute água, regadio, culturas agrícolas e outras coisas que tais, eis que surge a criatividade humana, descomplicando o que antes parecia difícil. Surgiu, aqui há dias, numa sessão de apresentação realizada a propósito da consulta pública da proposta de Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030, a ideia de afectar terrenos integrados na Reserva Agrícola Nacional (RAN) à instalação de explorações aquícolas. O conceito subjacente é simples: sendo o Algarve a região turística que é, a brutal pressão urbanística que incide sobre o litoral deixa pouco espaço ao que quer que seja. Vai daí, há quem queira instalar em terra equipamentos e estruturas associadas à aquacultura e… não tenha onde! Olhando em volta, o que é que se encontra de cantinhos disponíveis? As manchas de terrenos que, afectos à RAN, foram – sabe-se lá como! – resistindo aos ímpetos de betoneira, pois está claro! Recorrendo a um entendimento lato do que é a RAN e daquilo para que serve, apostando numa concepção lata de “reserva alimentar”, por oposição à mais estrita ideia agrícola, serviriam então estas bolsas de solos para estabelecimento de áreas de aquacultura (também aqui aparentemente com liberdades criativas na interpretação do conceito, regra geral aplicado em zonas de águas interiores e/ou de transição, como a Ria Formosa). Ordenamento do território, dizem. Em 1982, aquando do estabelecimento e criação da Reserva Agrícola Nacional, com o contributo decisivo de Gonçalo Ribeiro Telles, foi materializada uma visão estratégica, com o objectivo de salvaguardar os melhores solos agrícolas do País, consagrando-o como valor patrimonial essencial à permanência da Nação e recurso de segurança alimentar. Portanto, a ideia é reservar o solo pelo seu potencial produtivo, enquanto suporte de vida, e não apenas como suporte físico de fundação ou assentamento para tanques, bombas, casinhotos e afins – partindo do pressuposto optimista que a inovação não chega ao ponto de criar planos de água salgada em zonas mais interiores… Ou seja, isso sim, era verdadeiramente um acto de ordenamento do território. Inscrever na paisagem uma estratégia, em que a capacidade de produzir a partir da fertilidade do solo – e não a mera capacidade de produzir em cima de terra – ficava salvaguardada, ao serviço da geração presente e das vindouras. O Algarve não é extensivamente bafejado em termos de terras agrícolas, tendo hoje em dia cerca de 21% da sua área afecta a esse uso (ver aqui), sendo parte fruto da conversão de matos mediterrânicos. O sucesso desta actividade na região (que já originou saldo positivo na balança comercial, como ainda esta semana a Andreia aqui demonstrou), construiu-se historicamente sobre uma interpretação das condicionantes de solo e clima, a partir da qual foram apurados processos e técnicas construtivas para modelação de terrenos, acompanhados de criteriosa selecção de culturas, e sempre com grande respeito pela escassez do espaço útil e das terras com potencial produtivo – um traço cultural tipicamente mediterrânico. No ano passado, dados do Instituto Nacional de Estatística indicavam que, ao nível de soberania e défice alimentar, Portugal era auto-suficiente em leite, ovos, azeite, vinho, arroz e tomate para indústria, ao passo que se mantinha deficitário nos restantes produtos agrícolas, nomeadamente nas carnes, frutos, cereais (excepto arroz), batata, leguminosas secas, sementes e frutos de oleaginosas (excepto azeitona) e gorduras e óleos vegetais (excepto azeite), resultando num grau de auto-aprovisionamento* de aproximadamente 75%. No peixe, importa lembrar que o bacalhau, com base em dados de 2018, representa cerca de 500 milhões de euros de importações na balança comercial portuguesa. Para a soberania alimentar nacional, arrisco especular que o contributo do Algarve será residual (aceitam-se correcções). Se o crédito externo fechar ou for dificultado – devido a, por exemplo, uma pandemia – e as importações alimentares cessarem ou diminuírem por não haver mais vendas a fiado, como ficamos? Quem escolhe quem deixa de comer o quê? A aquacultura é uma actividade importante. Gera receita, gera emprego, diversifica a economia regional e está associada ao mar, um dos principais recursos da região, contribuindo para a auto-suficiência alimentar e para a prevenção da sobrepesca e dos seus impactos devastadores sobre os stocks pesqueiros e sobre toda a ecologia marinha. Mas sendo certo que quem vai ao mar se avia em terra, não é em terra que o mar se ordena – ou, pelo menos, não nestas terras de RAN. Porque comprometer o fundo de fertilidade que a RAN representa é um erro estratégico colossal, e totalmente desprovido de visão, que nos deixa ainda mais mal preparados para situações imprevistas e/ou de emergência, sendo a fome o risco primeiro no horizonte. A monocultura económica do turismo deixou o Algarve apeado em tempos de pandemia, demonstrando à saciedade que não é uma aposta sustentável, dada a tremenda vulnerabilidade que revela face a externalidades – o que não impede que os do costume continuem a impingir as mesmas velhas tretas, como se isto fosse só um percalço, e não uma deficiência estrutural. A aplicação dos dinheiros comunitários não resolveu nada de estrutural nesta matéria, fruto de todo um conjunto de circunstâncias que não cabe aqui analisar. Em tempos de novos quadros de apoio, e quando tanto ouvimos falar da “bazuca” de financiamento prestes a ser disponibilizada, e do seu tamanho, temos que acautelar que aqueles que ficam por ela responsáveis não disparam às cegas, nem têm dedos nervosos no gatilho, desejosos de gastar só por gastar, e em ideias mal consolidadas. Sob pena de, no futuro como agora, bazucas se revelarem minas anti-pessoais, e rebentarem com passos em falso. Mais do que o tamanho do martelo, interessa é acertar no prego. E o “prego” é a integração do Algarve e da sua economia no “Pacto Verde" europeu, com um modelo territorial verdadeiramente ordenado, que inscreva nas paisagens uma estratégia coerente e um futuro viável, e não uma manta de retalhos imediatistas – novamente, sem prejuízo do mérito das actividades em causa. Só assim iniciará a transição da sua economia para modelos assentes nos recursos e respeitadores das suas particularidades, em vez de se afundar no atraso de modelos meramente predatórios, quer das paisagens, quer das pessoas. Além de que, bem vistas as coisas, peixe de sequeiro não é a mesma coisa… * capacidade para satisfazer as necessidades de consumo de bens alimentares da população através da produção interna e/ou da importação de bens alimentares, financiados pelas correspondentes exportações
Por Andreia Fidalgo Não há a menor dúvida de que, na história da região algarvia, há um “antes” e um “depois” do fenómeno turístico. O grande boom do turismo, a partir da década de 60 do século XX, reestruturou e subjugou progressivamente toda a economia regional, criando o fenómeno da excessiva dependência desse sector que hoje, perante as actuais circunstâncias, não hesitamos em lamentar. Se, por um lado, somos forçados a aceitar que o turismo foi o principal motor de “desenvolvimento” do Algarve nas últimas décadas, por outro lado também seremos igualmente forçados a reconhecer que, em larga medida, este mesmo turismo também propicia e fomenta alguns dos maiores problemas e desafios que a região tem de enfrentar. E são vários os que poderíamos aqui invocar, tais como, por exemplo: o acentuar das desigualdades económicas e sociais; a precariedade e sazonalidade do emprego; a destruição e ameaça constante ao património cultural e natural da região; a descaracterização urbanística… entre muitos outros. Acima de todos eles, paira sempre, obviamente, a questão da excessiva dependência da economia regional desse sector. Mas, tal como diz o ditado, não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Por muito interessante que nos pareça, não creio que enveredar por um exercício de história contrafactual possa ser, neste momento, muito produtivo. Isto é, questionar como teria sido o “desenvolvimento” da região sem o “turismo” como o principal ingrediente à mistura será certamente um exercício interessante, mas que não nos leva a lado absolutamente nenhum. Nem creio, tampouco, que procurar culpados, ou tecer acusações de foro político-ideológico, ou até achar que se trata de uma conspiração cósmica (perdoem-me, mas há gostos para tudo!) seja igualmente produtivo. O “mal” já está feito, os problemas já existem, os desafios são constantes e o Algarve assume-se definitivamente como o exemplo máximo de que não se podem colocar todos os ovos no mesmo cesto. O que há a fazer, agora, em plena crise pandémica, é colocar os olhos no futuro e pensar na melhor forma de se trabalhar no sentido da diversificação da economia regional como, de resto, já tem vindo a ser defendido em diversas ocasiões e em diversos meios, e inclusivamente também aqui no Lugar ao Sul, por vários dos nossos autores. Colocar os olhos no futuro não significa, claro está, ignorar e desprezar o passado. Há que aprender com os erros cometidos, assim como beneficiar e explorar o que de positivo se fez. Será sempre mais fácil para qualquer um de nós que nos identifiquemos com o passado mais recente, recorrendo à História Contemporânea como uma aliada para a reflexão sobre os tempos que vivemos. Na verdade, é inevitável que o façamos, na medida em que o próprio turismo é fruto da Modernidade e da sociedade de consumo que a caracteriza. Então e se recuarmos um pouco mais? E se pensarmos na região no contexto de uma economia pré-industrial? E se pensarmos na região antes do desenvolvimento das indústrias, antes do turismo ser sequer uma possibilidade? E se pensarmos num Algarve em que o sol e a praia não eram mais do que elementos de uma bela paisagem e não uma forma de lazer? Nas economias pré-industriais, os rendimentos encontravam-se alicerçados na terra, nos recursos naturais e na capacidade de exploração e produção a partir desses mesmos recursos. Poderíamos até dizer que essas economias subsistiam precisamente por respeitarem os recursos que tinham disponíveis, retirando daí o melhor proveito possível. Nesta ordem de ideias, poderemos recordar que o Algarve subsistiu economicamente, durante séculos, com base na produção dos frutos tradicionais, de entre os quais o figo era o mais importante, e com base nas pescarias, particularmente do atum, mas também da sardinha e de outros peixes “miúdos”. Para ilustrar esta realidade, hoje relembro aqui um documento de autoria do Engenheiro José de Sande Vasconcelos (1738-1808), disponível online na Biblioteca Nacional Digital. Trata-se de um Mapa resumido dos géneros que entraram e saíram deste Reino do Algarve, entre Julho de 1780 e Junho de 1783. Em suma, neste documento estão registados todos os géneros que foram comercialmente transaccionados durante o referido período. Não o vou analisar exaustivamente, mas deixo aqui algumas das principais considerações que, na minha óptica, se podem fazer:
Posto isto, talvez a consideração mais significativa que se possa retirar da leitura deste documento diga respeito ao saldo da balança comercial francamente positivo, pois se de entradas (importações) se contabilizam 120.041$007 réis, de saídas (exportações) somam-se 408.986$998 réis. Não obstante o facto de devermos olhar de forma crítica para a fonte documental em causa e, inclusivamente, de termos em consideração que a sociedade daquela época era marcada por uma forte desigualdade de rendimentos que se reflectia numa componente social igualmente muito assimétrica, parece-me que é sempre bom recordar que o Algarve, mesmo “isolado” como um reino à parte que era – embora, supostamente, apenas de forma simbólica –, teve capacidade de manter a sua vitalidade económica, aproveitando e rentabilizando os recursos naturais disponíveis. Soube fazê-lo sempre, ao longo dos séculos, explorando os seus principais frutos, e investindo nas pescarias. E soube fazê-lo mais tarde, com o desenvolvimento industrial, reinventando-se através das pescas com destino às conservas, e da exploração do sobro com destino à indústria corticeira, sem nunca, no entretanto, deixar de investir no pomar de sequeiro tradicional. Isto da reinvenção, da diversificação e do respeito pelos recursos disponíveis foi algo em que, nós, os modernos (ou não seremos já nós os pós-modernos?!) falhámos redondamente! Falhámos, por exemplo, quando deixámos que o sector turístico – frágil e sempre dependente de terceiros – se transformasse na nossa principal e quase exclusiva fonte de rendimento; falhámos, por exemplo, quando desinvestimos sucessivamente nas pescas; falhámos, por exemplo, ao permitir o alargamento do regadio numa região tradicionalmente de sequeiro, comprometendo inclusivamente a existência daquele que é o mais vital recurso de todos: a água. As fragilidades regionais estão, actualmente, mais a descoberto do que nunca, com a actual crise que enfrentamos e bastará, para tal, recordar que o Algarve foi a região onde mais aumentou o desemprego, nos últimos meses. Até porque isto de se dizer que “falhámos” na estratégia económica adoptada nas últimas décadas não é uma mera abstracção… Por detrás da abstracção existem pessoas, existe o mundo real e o drama humano! Pessoas que perderam empregos, famílias que passam necessidades… Por isso mesmo, pergunto: até quando sacrificaremos o bem-estar dessas pessoas, em prol de modelos económicos esgotados, que não têm os interesses do todo em vista? Por Gonçalo Duarte Gomes Morreu esta semana Quino, genial cartoonista argentino que deixou órfã a sua mais conhecida filha, a inquieta e reivindicativa Mafalda, que desenhou durante cerca de uma década, e que se afirmou como um ícone cultural e político. Eu não sou do tempo da Mafalda. Ela nasceu quase a meio da década de 60 do século passado, e eu só me juntei a ela no mundo uma arroba de anos depois. E só muito depois disso a conheci. Mas aprendi imenso com ela. A Mafalda, na inocência aguerrida da sua ficcional meia dúzia de anos de idade, e no fervor arrebatador da afirmação da sua ética humanista e feminista, discutiu as grandes questões do seu tempo, do mundo e da sua Argentina. Guerras e tensões políticas e sociais, degradação ambiental, desumanização da sociedade, hipocrisia, desigualdades, organização e funcionamento do Estado (o facto da sua tartaruga se chamar Burocracia diz muito), corrupção e nacionalismos foram temas fortes, por entre reflexões – ou aflições – em torno de uma democracia conturbada, em cujo horizonte se desenhava a depois concretizada ameaça de uma ditadura. E, claro, o assunto mais fracturante de todos: a sua aversão à sopa! Ora as questões do meu tempo, que é o nosso tempo agora, são outras: guerras e tensões políticas e sociais, degradação ambiental, desumanização da sociedade, hipocrisia, desigualdades, organização e funcionamento do Estado, corrupção e nacionalismos, por entre as convulsões de democracias que não parecem ter respostas para a emergência de autoritarismos de natureza e espectro político variado e que se precipitam para distopias que embora imaginadas, nunca pareceram concebíveis. Bem vistas as coisas, a Mafalda não tem tempo nem idade. Tal como a consciência. Esta semana também, no passado dia 1, o Lugar ao Sul assinalou o 4.º aniversário desde que os seus residentes assentaram arraiais neste espaço sem geografia. Desde Outubro de 2016 que este espaço virtual é partilhado por pessoas de diferentes formações, profissões, actividades públicas e interesses, que aqui se juntam para em conjunto reflectir sobre o Algarve e o seu futuro. Num espaço livre e plural – que bom é poder não concordar! – e que funciona como tribuna que se abre para vozes que de outra forma dificilmente chegariam à praça pública. Pensar o Algarve não é fácil. Pensar no Algarve muito menos. Porque é uma região complexa. Porque é uma região pequena, onde quem diz o que pensa se expõe em circuitos muito curtos e pouco dinâmicos, com fraquíssima taxa de renovação, em que a cultura democrática é, apesar de tudo, incipiente, e onde discordar é antagonizar e não apenas... discordar. Porque é uma região que, mais do que província, se mantém, em muitos aspectos, inexplicavelmente provinciana, no que isso de menos bom implica, com visões ultrapassadas, e que ultrapassadas se inscrevem nas pessoas e na paisagem. Não por atavismo ou falta de capacidade de se arrancar dessa condição, mas por falta de rasgo para o tentar. Condicionada falta de fé, de acreditar. Para depois se mobilizar e conseguir. A antítese da Mafalda, portanto. Porque a Mafalda, com o seu olhar e pensamento crítico sobre o mundo e as pessoas foi, e é, toda uma escola de lutadora cidadania, ingenuamente acutilante, ambiciosamente sonhadora e corajosamente desassombrada.
Num tempo em que os muros do extremismo, da intolerância e do medo cercam as pessoas, isolando-as, em que a falsa promessa de segurança abafa a liberdade, em que a normalização e a higienização – muitas vezes em nome da diferença – purgam espontaneidade e diversidade, aumentando o desafio de tentar pensar abertamente, gosto de imaginar que, se a Mafalda fosse algarvia... teria gosto em fazer parte do Lugar ao Sul. E que aqui ajudaria, não obstante a modéstia deste espaço, a mostrar que o Algarve é capaz de (se) pensar! |
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