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Bem-vindo

Pandemia, Saúde e Algarve

30/9/2020

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Por Maria Inês Simões (convidada deste Lugar ao Sul)

Num momento em que a Europa se confronta com o ressurgimento em força dos casos de COVID19 decidi convidar a Dr.ª Inês Simões, uma orgulhosa Algarvia, para nos dar a sua visão sobre o que esta pandemia pode significar para o nosso Serviço Nacional de Saúde, em particular na nossa região. Boas Leituras (Luís Coelho). 

Sobre a Maria Inês Simões:
. Assistente Hospitalar em Medicina Interna na Unidade Hospitalar de Portimão – Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE., Hospital Lusíadas de Albufeira e Clínica Mediarade em Portimão
. Coordenadora médica da Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) do Barlavento
. Médica do Serviço de Helicópteros de Emergência Médica (SHEM) do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM)
. Médica no Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) do INEM
. Médica no Serviço de Medicina Hiperbárica do Hospital Particular de Alvor
. Docente afiliada na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa
. Docente convidada na Faculdade de Medicina da Universidade do Algarve
Ah, a Inês é uma grande Sportinguista!
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​Sou médica, por vocação. Sou algarvia, com orgulho e paixão. Condições estas que poderiam tornar mais fácil esta coisa de falar sobre pandemia, saúde e Algarve. Mas não. Na verdade, quando tento juntar estas três palavras, obrigo-me a assumir que muito antes da pandemia, a saúde já era catastrófica no Algarve.
 
Sou médica, como já disse. Fiz toda a minha formação em Lisboa e, por isso, durante 15 anos estive afastada da realidade do Algarve.
 
Cheguei à Unidade Hospitalar de Portimão, Centro Hospitalar Universitário do Algarve, no final de Outubro de 2018, praticamente na mesma altura em que as temperaturas começam a baixar e as típicas infecções respiratórias fazem aumentar a afluência aos serviços de urgência.
 
E porquê dizer isto quando o que se pretende é falar de pandemia? Pois é, é que falar de pandemia, saúde e Algarve sem antes contextualizar que os serviços já estavam sub-dimensionados e sub-preparados para o que é o normal e expectável todos os anos, ano após ano, é apenas demagogia. Falar de pandemia, saúde e Algarve sem referir as pessoas que todos os dias, dia após dia, se sujeitam a trabalhar em condições deploráveis e sem mencionar as pessoas que não se sentem valorizadas (e valem tanto!) ou as pessoas que não são reconhecidas (e merecem tanto!), é apenas hipocrisia. Falar de pandemia, saúde e Algarve sem antes dizer que os serviços já funcionavam com recursos humanos (muito) abaixo dos mínimos, que é cada vez mais difícil ‘vestir a camisola’ quando se exige tanto e oferece tão pouco, é ignorar o verdadeiro problema da saúde no Algarve. A culpa não é só da pandemia. A culpa não é da pandemia.
 
No Hospital de Portimão, no início de Março, foram definidas duas prioridades: a organização do serviço de urgência/Unidade de Cuidados Intensivos e a constituição de uma equipa dedicada à COVID-19, com o intuito de priorizar a segurança. Do doente e dos profissionais. Foram definidos circuitos e foi criado um serviço de internamento COVID-19.  Houve muita ajuda externa e destaco o contributo fundamental dos outros agentes de Protecção Civil (incluindo o Instituto Nacional de Emergência Médica que foi irrepreensível na adaptação de normas e procedimentos e em garantir a segurança dos seus profissionais), das Câmaras Municipais, de privados e anónimos. Volto a frisar as pessoas, aquelas que trabalham em circunstâncias miseráveis, todos os dias, dia após dia, nos hospitais, centros de saúde e outras instituições de saúde, que se dedicam de corpo, alma e coração para evitar aquilo que tenho mais medo, a total desumanização dos cuidados.
 
A saúdo no Algarve não é fácil. Nunca o foi. O Algarve fica sempre esquecido de Setembro até Julho. Falta gente, faltam incentivos, faltam condições dignas de trabalho. As pessoas estão exaustas, multiplicam-se entre tarefas cada vez mais cansativas e burocráticas. São constantemente agredidas, física, moral e emocionalmente. Mas são, somos, resilientes e continuamos a acreditar que esta capacidade de adaptação será recompensada. Exigimos mudar o destino da saúde no Algarve.
 
Na verdade, a saúde no Algarve em tempos de pandemia não me preocupa mais do que antes. Preocupa-me sim, e muito, o que será da ‘saúde’ do Algarve depois da pandemia. O que me inquieta é a consciência de que o Algarve, que vive predominantemente do turismo, entrou e está a afundar-se numa verdadeira crise económica e financeira; que os próximos meses serão de muito sacrifício para todos e que haverá muito mais pobreza, fome e doença.
 
Sou médica, por vocação. Sou algarvia, com orgulho e paixão. Quem me conhece sabe que sou uma sonhadora nata e optimista por natureza. Condições estas que tornam inevitavelmente mais fácil falar desta coisa de pandemia, saúde e Algarve. É tão mais simples juntar estas três palavras numa frase quando, tal como eu, somos muitos a trabalhar com doentes e pelos doentes, por vocação; e no Algarve, com orgulho e paixão.
 
E como eu acho que tudo tem, às vezes inacreditavelmente, um lado positivo, que esta coisa da pandemia nos permita olhar com orgulho, dignidade e respeito para os nossos profissionais; e que os próprios consigam perceber o seu real valor. Somos incríveis mas faltava-nos aprender uma coisa: resiliência não é sinónimo de resignação.
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Paisagem cultural com uma pitada de figo à mistura: o Cerro de São Miguel

29/9/2020

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Por Andreia Fidalgo

Hoje, 29 de Setembro, celebra-se o dia de São Miguel. Não é meu costume relembrar os dias dos santos – ou, no caso em particular, dos arcanjos –, mas parece-me que este é especial e merece ser recordado, pela importância que detém na herança cultural da região algarvia.

Não há no Algarve quem não conheça o Cerro de São Miguel, também designado por Monte Figo, ou até, mais coloquialmente, por “cerro das antenas”. Este sobressai como o ponto mais alto de um conjunto de elevações de orientação paralela ao litoral, denominado Serra de Monte Figo, que se estende pelos concelhos de Faro, Loulé, São Brás de Alportel e Olhão. Com 411 metros de altitude, o cerro situa-se na freguesia de Moncarapacho, concelho de Olhão, e constitui um miradouro privilegiado do sotavento algarvio: em dias claros, é possível avistar-se, daí, uma ampla extensão do território algarvio e contemplar as três sub-regiões naturais que tradicionalmente caracterizam o Algarve – o litoral, o barrocal e a serra – e cuja subdivisão tem em consideração as diferentes e particulares características geológicas da região.
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Pormenor da Carta Corográfica do Reino do Algarve de João Baptista da Silva Lopes, 1842.

​Por ser um elemento de elevado destaque paisagístico, a importância do Cerro de São Miguel como um ponto geográfico de referência é atestada desde a Antiguidade Clássica. Tudo indica que este cerro aparece pela primeira vez referenciado num escrito datado do século VI a.C. (I Idade do Ferro), um Périplo massaliota que se conservou na posterior composição poética Orla Marítima, de Avieno, autor latino do século IV d.C., e que contém a seguinte descrição:
“Em seguida estende-se o cabo consagrado a Zéfiro. Por fim, o cume da elevação chamada Zéfiris, cujas altas cristas sobressaem no cimo da montanha. Grande intumescência rasga os ares, envolvida sempre por uma espécie de névoa que lhe oculta o cume em nuvens. (…) Todo o que, de barco, ultrapassa a elevação de Zéfiris e penetra nas águas do nosso mar, de imediato é impelido pelo sopro do favónio".

​A interpretação geográfica mais comummente aceite destes versos aponta no sentido de que o cabo consagrado a Zéfiro não se trataria exactamente de um cabo, mas sim de um conjunto de elevações, mais concretamente a serra que se estende de Loulé a Tavira, sendo que o “cume da elevação chamada Zéfiris” seria identificado como o Monte Figo. Assim sendo, a tomar-se como válida esta interpretação, podemos considerar que o Monte Figo, devido à sua visibilidade, constituiu desde a Antiguidade um ponto de referência para a navegação, sendo que no século VI a.C. o culto que lhe era atribuído era o de Zéfiro, personificação grega do vento de oeste, propício à navegação.

É certo que o cerro se terá mantido como referência geográfica para a navegação durante muitos séculos. Por volta de 1600, na História do Reino do Algarve, Henrique Fernandes Sarrão refere-se-lhe da seguinte forma: “Os navegantes se guiam por este serro e lhe chamam Monte do Figo per outro nome e por ele tomam a barra de Faro”. O Monte Figo seria, por essa altura, tal como certamente sempre o tivera sido e assim continuou a ser, um ponto de referência importante para navegantes e para mareantes locais, que de dia por ele se guiavam para entrar na barra de Faro, como se de um autêntico farol se tratasse.
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O mesmo Fernandes Sarrão relembra que “neste serro há muitas árvores de fruito, e, em roda, muitas terras de pão” – de facto, entre as razões que explicam o povoamento do cerro na sua vertente norte, destaca-se certamente um solo propício ao cultivo dessas “árvores de fruito”, típicas de sequeiro. Outras razões se podem acrescentar, tais como a configuração do terreno, o poço com água potável e a acessibilidade. Não se trata propriamente do local mais aprazível para se constituir habitação:  na sua vertente sul, que apresenta grande declive, apenas alguns figueirais, pinheiros pouco desenvolvidos, medronheiros, carrasqueiras e arbustos de vários tipos o povoam; na vertente sudoeste, ainda mais hostil, o cerro está praticamente desprovido de vegetação; ainda assim, boa parte dele, sobretudo a vertente norte, é favorável ao cultivo de pomares de sequeiro.

Ainda que o pomar de sequeiro tradicional do Algarve não detenha, actualmente – e muito infelizmente! –, a importância que teve durante séculos no cultivo agrícola da região, ainda podemos imaginar, observando esta longa vertente norte, o que teria sido esse cultivo no seu auge, que a polvilharia certamente de figueiras, oliveiras, amendoeiras e alfarrobeiras, árvores constituintes do pomar misto de sequeiro típico da região. Aqui, há que dar o devido destaque à figueira, uma vez que o figo, para além da importância que detinha na alimentação da população algarvia, foi durante século o produto de maior exportação à escala regional.

O figo é, na minha perspectiva, o elemento chave para compreender o cerro de São Miguel, a dualidade toponímica que o caracteriza e o seu simbolismo no sotavento algarvio. É que esta paisagem cultural é, também, uma paisagem sacralizada… Será o figo, pela sua importância na economia local, também ele um fruto sacralizado? Ora vejamos.

Ao aceitarmos que o Zéfiris da Orla Marítima de Avieno possa ser identificado com o Monte Figo, depreendemos naturalmente que a sacralização dessa paisagem vem já desde tempos bem remotos. Algumas interpretações apontam no sentido de que o culto do Zéfiro se teria mantido até ao domínio cristão, altura em que teria passado para o do arcanjo São Miguel, o que não seria estranho, pois este arcanjo representa um sincretismo muito comum para o culto dos ventos.

Não podemos esquecer, porém, que entre o século VI a.C. – época em que sabemos com alguma segurança que o cerro era consagrado ao Zéfiro grego –, até ao domínio cristão consolidado no século XIII, existem duas ocupações significativas do território, a romana e a islâmica. Se pensarmos numa região fortemente romanizada, como era o caso, poderemos eventualmente assumir que um possível local de culto ao Zéfiro possa ter-se transformado num local de culto ao Favónio, o seu equivalente Romano, ou mesmo a um qualquer outro deus pagão da mitologia romana. Além do mais, se tivermos também em consideração que o culto ao São Miguel é antiquíssimo e que o próprio Imperador romano Constantino (272-337) – primeiro imperador a professar a fé cristã – lhe dedicou um templo perto de Constantinopla, então por que não assumir, eventualmente, uma origem mais antiga para o culto dedicado a esse santo no cerro? Aliás, durante o período islâmico é facto assumido que esse culto existia, como provável fruto da convivência entre moçárabes e muçulmanos, ou mesmo como resultado de se tratar de um arcanjo também incorporado pela religião islâmica. O culto a São Miguel em pleno domínio islâmico é, na realidade, atestado pela Crónica da Conquista do Algarve, no episódio da conquista de Tavira, datado de 1242, em que os mouros pedem tréguas aos cristãos durante o período do alacil – que corresponde à época das colheitas – cujo término indicado era, precisamente, São Miguel de Setembro.

Nesta Crónica reside também a chave que permite, a meu ver, explicar a existência dos dois topónimos: Monte Figo e São Miguel. “Monte Figo” pode derivar quer do próprio desenho do cerro, que há quem diga que se assemelha a um figo, mas, mais seguramente ainda, deriva do cultivo de figueiras que cobria grande parte do monte, cultivo este que – voltamos a frisar! – constituiu, durante séculos, a mais importante produção regional; por outro lado, tal como podemos ler na Crónica da Conquista do Algarve, é precisamente na altura do alacil que os mouros pedem tréguas aos cristãos para que possam colher as suas “novidades”, época que se estende do mês de Julho até São Miguel de Setembro, que se celebra no dia 29. É nesse dia que se acabam de colher os figos e, no dizer popular “em passando o dia de São Miguel é a figueira de quem quer”, ou seja, aí se inicia também o rabisco, em que qualquer pessoa pode colher das figueiras os frutos que sobraram.

Não parece, portanto, nada acidental que um Monte apelidado de Figo e um São Miguel que celebra o final da colheita desse fruto sejam dois topónimos para um mesmo local; antes pelo contrário, parecem tratar-se esses topónimos de duas faces de uma mesma moeda, pois se o primeiro alude a uma cultura tradicional de sequeiro que aí se praticava, assim como em toda a região, o segundo sacraliza a colheita desse fruto, marcando o seu término. E, sendo o figo a produção mais importante na região, não é de todo de estranhar que na tradição local tenham perdurado, até aos nossos dias, os dois topónimos.
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Fruto da sacralização do espaço, encontramos ainda na encosta norte uma ermida com o orago a São Miguel, e em tempos teria existido no topo do cerro um cruzeiro, do qual já não subsistem quaisquer vestígios. Quanto à ermida, trata-se de uma modesta edificação, sucessivamente reconstruída ao longo dos séculos, de onde é difícil retirar elementos estilísticos que nos permitam datá-la com alguma segurança; porém, os seus vãos de pedra que formam arcos ligeiramente quebrados parecem sugerir uma construção tardo-medieval, de estilo gótico, possivelmente anterior, portanto, ao século XVI. A singela ermida é composta essencialmente por dois volumes, um correspondente à nave e o outro à capela-mor, este último com uma cobertura muito curiosa, de quatro águas, mas de onde sobressai um invulgar volume cónico feito em argamassa. No interior, nada de grande importância se destaca no recheio, a não ser um painel de madeira com pinturas e dourados do século XVII e uma imagem do padroeiro datada do século XVIII.
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Em tempos, a ermida na encosta e o cruzeiro no topo eram locais onde afluíam com alguma frequência os fiéis. Existem notícias de animadas romarias que se faziam ao local, sobretudo na véspera e dia da sua festa, a 29 de Setembro, relacionadas com a celebração do final das colheitas do figo. Tradições enraizadas no cultivo da terra que se vão lentamente perdendo… Quer a sua realização e quer, inclusivamente, a sua memória.

Por isso mesmo, serve este breve apontamento de hoje para recordar o dia de São Miguel, o tradicional cultivo e colheita do figo e uma paisagem cultural que deles recebe os dois topónimos pelos quais ainda hoje é conhecida. Serve também para reflectir sobre o quanto cuidamos nós das paisagens culturais que nos rodeiam? Uma paisagem ameaçada, no sopé da sua encosta sul, por uma brutal espedrega, como tem vindo a ser notado recentemente; uma paisagem quase abandonada, naquilo que era a ocupação humana e o seu cultivo tradicional de sequeiro, na encosta norte; uma paisagem suja, descuidada e vandalizada no cume dos seus 411 metros de altitude; e, acima de tudo, uma paisagem acerca da qual as tradições e a memória histórica se vão progressivamente desvanecendo.
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É aqui, precisamente, que surge o grande desafio: como preservar esta paisagem e a memória histórica que ela encerra?
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Algarve: uma história sem jardins?

25/9/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Talvez pelas saudades colectivas induzidas por tempos de uma estranha pandemia que subtraiu, durante algum tempo, o espaço público ao espaço pessoal de cada um de nós, e ainda hoje o condiciona, os jardins parecem estar, felizmente, em alta.

Os jardins, no seu sentido mais abrangente, são uma constante tentativa de alterar uma condição de orfandade de Terra, recuperando o cordão umbilical que foi cortado pela nossa condição de filhos e filhas da Revolução Industrial e da posterior Revolução da Informação. Seres perturbados na nossa relação essencial com a nossa origem poeirenta, com a qual mantemos uma nostalgia genética que o consciente muita vezes combate, não cessamos de tentar realizar no espaço “o” inalcançável jardim – que alguns dirão ser do Éden – que a nossa psique exige.
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"O Jardim das Delícias Terrenas", de Hieronymus Bosch (1504)

Na Biblioteca Nacional de Portugal está patente uma exposição intitulada “Jardins Históricos de Portugal. Memória e Futuro”, que apresenta não só uma perspectiva sobre o acervo patrimonial de um determinado conjunto de jardins, como também olha o futuro e o papel que o jardim, enquanto repositório de memória e também processo de continuidade da identidade, pode desempenhar.

A própria RTP dedicou toda uma série de programas à temática dos jardins. No canal 1, preencheu manhãs dando a conhecer jardins históricos nacionais. Através do canal 2, proporcionou serões a percorrer jardins de arte.

Em comum, todas estas iniciativas têm o facto do Algarve delas não constar.

Porque o Algarve é, no geral, pouco dado a jardins, embora seja, por determinismo climático – sol e calor em abundância e intensidade – e opção económica – turismo – das regiões nacionais que mais ajuizada se revelaria se neles apostasse em força, pois a amenidade que proporcionam é factor de conforto e de atractividade.

Não porque os não tenha. Uma prova disso é o livro “Passeio Público: jardins, alamedas e recantos ajardinados” (editado em 2008, de Telma Veríssimo), que lançava um olhar sobre alguns espaços ajardinados, procurando deles deduzir uma cultura algarvia de espaço público.

E a juntar a essa obra, muitos outros estudos e inventários existem, concretamente os desenvolvidos no âmbito do curso de Arquitectura Paisagista da Universidade do Algarve.  

Ora, tendo os ditos jardins, a região só não os parece valorizar. O que francamente, não surpreende, face ao generalizado processo de gentrificação cultural e, consequentemente, paisagística, que atravessa.

Os jardins são espaços de verdadeira realização da comunidade, onde o espírito de lugar, que é também espírito das gentes, é partilhado e continuado por todos. Nos jardins, revela-se a sociedade. Nos comportamentos sociais, nos hábitos de utilização, nas sonoridades, na linguagem arquitectónica dos espaços, na presença da vegetação e na forma como ela é tratada, no asseio e cuidado emprestado à manutenção, entre muitos outros pequenos e grandes factores. É também espaço de higiene mental, de desafogo, descompressão, de (re)encontro com o tal sortilégio das nossas raízes telúricas perdidas. É espaço de contacto com nós próprios e com os outros. Onde nos permitimos ser humanos, numa sociedade cada vez mais desumanizada. Parques e jardins são mesmo viveiros de amor e de poesia.

Em Faro foi recentemente anunciado um investimento perto dos 2 milhões de euros, por parte do Município, na requalificação de dois “espaços verdes” emblemáticos, a Mata do Liceu e o Jardim da Alameda. Isto pode abrir novos capítulos não apenas para a conservação dos espaços públicos existentes na cidade, mas também perspectivas para a construção de novos espaços de raiz, concretamente jardins. No entanto, tendo em conta a dendrofobia vigente um pouco por todo o lado, e concretamente em Faro – já se abateu, inclusivamente, sobre o próprio Jardim da Alameda – importa perceber o que se entende por requalificação.

Veja-se o exemplo de Silves, em que a requalificação do jardim no Largo da República causou – e causa – polémica pelo abate de parte importante da vegetação existente (aparentemente fundamentado por um estudo do Instituto Superior de Agronomia, sobre o estado fitossanitário das árvores e uma avaliação de risco das mesmas). Não obstante eventuais razões, o resultado é um espaço desprovido de amenidade (pelo menos enquanto as novas árvores não crescem) e despido da própria memória e identidade.

Os jardins não param no tempo – aliás, o tempo é sempre o material mais difícil de trabalhar num jardim. Desengane-se também quem isso pensa. Até mesmo os jardins históricos, com desenhos datados de determinada época, estão sujeitos a vivências contemporâneas, caso contrário seriam peças de museu. Por isso, é natural e desejável que os espaços públicos também evoluam. Salvaguardando, naturalmente, aquilo que é o património que encerram, quer se trate de árvores, elementos construídos ou… um espírito, uma memória. Mas dando respostas adequadas à sociedade que os vive.

Talvez aqui tenha acontecido isso, e as respostas dadas digam muito sobre nós, enquanto todo.  
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Portanto, a questão não é tanto que os jardins do Algarve não tenham História. É mais perceber se o Algarve quer ter uma história com jardins.
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O trimestre horribilis

22/9/2020

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Por Luís Coelho
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Todos sabíamos que compatibilizar turismo com a pandemia COVID19 seria difícil. Os números estão aí para, infelizmente, provar esta ideia. Em particular, o mais recente destaque publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre a actividade turística revela uma quebra homóloga de -66.4% face a 2019 nas dormidas em estabelecimentos classificados em solo nacional. Uma análise mais fina dos números revela ainda que a queda do mercado nacional é expressiva (48.1%) e absolutamente dramática quando o foco é o mercado internacional: 73.9%.

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Adoro o fundo de uma barragem vazia ao pôr-do-sol!

10/9/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Num tempo que está a acabar, em que a arte podia ser livre, o filme “Apocalypse Now” deixou um vasto legado na História do Cinema e também na cultura popular. Uma das pérolas que ficam para a posteridade – pelo menos até que alguém a decida sanear e/ou higienizar – é a fala do Tenente Coronel Kilgore, quando, do alto da sua serena mas entusiástica desumanização, afirma: “I love the smell of napalm in the morning” (adoro o cheiro do napalm pela manhã).

Pois bem, olhando para a barragem de Odeleite nos seus 33% de capacidade de armazenamento ao pôr-do-sol, também eu tive o meu momento Kilgore, pensando como era simultaneamente hipnotizante e angustiante o cenário diante dos meus olhos.

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Perante tal secura, não pude deixar de regressar à velha mas sempre nova – porque sempre ignorada e secundarizada – preocupação da falta de água no Algarve.

Mas, porque ontem foi publicada uma entrevista com o Director Regional de Agricultura e Pescas do Algarve, foi inevitável a instalação de alguma confusão. Isto porque, na abordagem a variados temas, foram ali apresentadas algumas perspectivas importantes para a reflexão, de que destacaria três.

Primeiramente, importa subscrever o princípio veiculado nesta entrevista de que, nestas discussões, não se deve perseguir determinada cultura. Centrar obsessões numa determinada espécie, seja na agricultura, na silvicultura, ou em qualquer outro contexto, é centrar o olhar na árvore – aqui literalmente – perdendo de vista a floresta. Além de que é como multar um carro em excesso de velocidade, quando na verdade é para a pessoa que o conduz que devemos olhar com espírito crítico...

Das ideias a destacar, começo pela ideia de que o ordenamento de culturas agrícolas pode, de alguma forma, ser empurrado para a esfera dos Planos Directores Municipais, ficando então sob a alçada e responsabilidade dos Municípios. A necessidade – ou, no mínimo, a conveniência – de uma organização e avaliação estrutural da produção agrícola na região (consoante parâmetros de solo, clima, disponibilidades hídricas, canais comerciais, apostas estratégicas dentro de grandes opções de plano, etc.) não parece muito compatível com a sua transformação numa manta de retalhos casuística, feita do somatório das decisões municipais – o que tornaria, de resto, redundante a respectiva Direcção Regional. É um daqueles casos em que os cacos de uma jarra partida, mesmo depois de colados com muito cuidado, já não encantam prateleira alguma.

A segunda, a economia da coisa, ou de parte dela. Foi lançado à discussão um volume óptimo de facturação global do abacate no Algarve algures na casa dos 53 milhões de euros (1.600 hectares assumidos como plenamente produtivos, produzindo cerca de 15 toneladas por hectare, vendidas a 2,2 €/kg), o que é muita fruta. Resta saber quanto é lucro, deduzindo os custos operacionais.

Foi, inclusivamente, feito notar como, dessa forma, o abacate se posiciona competitivamente muito acima do sequeiro – considerado inviável para base da agricultura regional, excepto em visões líricas e românticas – sem no entanto apresentar números que possibilitassem a comparação.

No entanto, sabendo-se que, por exemplo, a alfarroba se vendeu – no circuito sério, não naquele em que as sacas caem misteriosamente da traseira de umas carrinhas – este ano entre 12 e 13 euros a arroba (cerca de 0,87 €/kg), que ocupa cerca de 13.500 hectares na região e que pode ter uma produtividade na casa das 3 toneladas por hectare, o valor de facturação ascenderia a algo como 35 milhões de euros – aos quais há que subtrair também custos de operação, naturalmente.

Ou seja, o abacate, numa área de cultivo 8 vezes inferior, obtém um valor 1,5 vezes superior. Dá que pensar.

Mas sequeiro não é só alfarroba, pelo que importaria também depois juntar a economia de outras culturas, nomeadamente o figo. E importaria ponderar o valor dos serviços de ecossistema que os pomares tradicionais de sequeiro prestam ao nível da biodiversidade ou da captura do carbono, que no caso da alfarrobeira atinge valores na casa das 17/18 toneladas por hectare.

Regadio também não é só abacate, dir-se-á, e muito bem, na mesma linha. Não dispondo de números mais abrangentes para os dois regimes, torna-se impossível o avanço nesta ideia, mas fica o desafio.

Finalmente, a água. Na entrevista, é referido que no Algarve a agricultura capta cerca de 75% dos seus consumos de rega nos aquíferos, e que os seus consumos correspondem a 56% do total regional (embora dados oficiais apontem para 67%, o que é diferente). Seja quanto for, será que esse custo operacional é efectivamente pago? Isto porque, embora as explorações paguem a electricidade que alimenta as bombas nos furos e as necessárias licenças e taxas sobre os mesmos, não pagam os volumes de água propriamente ditos, como fazem outros consumidores. Tendo que o fazer, manter-se-ia o regadio economicamente competitivo?

Além disso, nestas contas de somar e de sumir que se vão fazendo, a competitividade económica é ponderada face ao défice ecológico, que no fundo representa a socialização dos custos não internalizados no balanço do regadio?

E a água, independentemente de ser tirada do subsolo ou de barragens, não pertence toda ao mesmo ciclo? Não tem também um valor ecológico na paisagem, através das suas funções vitais, por exemplo no solo? Não existem riscos de intrusões salinas nas extremidades costeiras dos aquíferos que se vão esgotando, não há o problema da redução da qualidade da água – muita para consumo humano – nos volumes que se vão reduzindo?

Se tudo isto estiver a ser ponderado, óptimo. Caso contrário, boa sorte para todos nós.
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De qualquer forma, já com tudo isto em mente, lancei um olhar bem mais descontraído à albufeira de Odeleite, apercebendo-me de que afinal está tudo controlado, e que esta coisa dos níveis da água engana muito...
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O touro mecânico da Ria Formosa

4/9/2020

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Uma vez que aqui no Lugar ao Sul a maré – quase literalmente – é de Ria Formosa, e tendo em conta que ainda esta semana a Andreia Fidalgo foi ao baú da memória para nos trazer o seu apontamento sobre a Fortaleza de S. Lourenço, vamos lá remexer em mais velharias.

E aproveitando a oportuna lembrança da Andreia, sem nos afastarmos muito dela e com recurso a outras preciosidades que ela encontrou sob a poeira do tempo, e teve a gentileza de me indicar.
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A imagem acima é o Plano Hidrográfico das barras e portos de Faro e Olhão, de 1885.

Observa-se nesta carta como neste troço central da Ria Formosa a Barra do Lavajo, ou da Armona, com aproximadamente 2,3 milhas (algo como 4,3 quilómetros, sempre e naturalmente dependente da maré) de largura, constituía o mais amplo e significativo ponto de troca entre as águas oceânicas e o sistema lagunar. Sensivelmente a meio, estão indicadas as “pedras do antigo forte S. Lourenço”.
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Mais a Poente, é identificável o Farol de Santa Maria, erigido por volta de 1851.  
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E na Península do Ancão, mesmo no centro do que é hoje a Praia de Faro… a Barra do Encão, com cerca de 500 metros de largura!  
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Saltemos agora cerca de 30 anos, até 1916. 
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Na carta acima, é representada a barra e canais de Faro e Olhão, onde novamente os restos da Fortaleza de S. Lourenço marcam presença, e a Barra da Armona continua a ser um elemento preponderante. No entanto, neste intervalo, a sua amplitude reduziu-se para perto de 1,7 milhas (3,2 quilómetros, mais ou menos).

Nota também para a representação de arraiais de pesca na ponta da Culatra – então identificada como ponta do Cabelo – e na Armona. 
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Atalhando caminho, e avançando pouco mais de um século, até aos nossos dias, verificamos que o cenário mudou dramaticamente. Recorrendo já não à magnífica cartografia náutica, mas ao bem mais moderno e familiar Google Earth, é possível constatar que a outrora portentosa Barra da Armona está hoje reduzida a uma amplitude que andará na casa dos 550 metros, mais coisa menos coisa.
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Um aspecto determinante para explicar esta alteração profunda na morfologia desta zona é, sem dúvida, a abertura/alargamento, por dragagem, da Barra de Faro/Olhão e subsequente fixação com molhes, num processo que decorreu entre o final da década de 1920 e meados da década de 1950.

No entanto, mais do que para analisar casos específicos, este brevíssimo e muito simplificado exemplo serve para ilustrar, alertando para, um aspecto determinante para a compreensão da Ria Formosa: a sua dinâmica.

O sistema da Ria Formosa é constituído por cinco ilhas barreira e duas penínsulas, separadas por seis barras, que promovem a comunicação das águas interiores da laguna com as águas oceânicas. Estes elementos organizam-se de acordo com um grande dinamismo, em que a forma e extensão dos corpos arenosos é altamente mutável, em intervalos relativamente curtos, a par da migração e/ou abertura de novas barras e colmatação de outras. Das barras referidas, duas delas, a já referida Faro-Olhão e a de Tavira, encontram-se artificialmente fixadas, com recurso a molhes, sendo a sua manutenção assegurada através de dragagens periódicas para salvaguarda das condições de navegabilidade.

O corpo lagunar definido e confinado entre as ilhas e penínsulas e a margem continental é constituído por sapais, rasos de maré, canais de maré e pequenas ilhas de carácter lodoso ou arenoso, encontrando-se neste ecossistema vários habitats prioritários em termos de conservação da natureza, o que levou não apenas à classificação como Parque Natural, mas também à sua inclusão na Rede Natura 2000, a par da atribuição de outros estatutos de conservação.

Em termos de dinâmica do ecossistema, um dos aspectos mais marcantes prende-se com as trocas de água entre a laguna interior e o oceano, importantes não apenas em termos de prisma de maré – medida das trocas de água através das barras – mas também em termos de transporte sedimentar e respectiva influência na evolução da morfologia do sistema. Nesse enquadramento, as barras constituem-se como elementos determinantes, verificando-se que as mesmas (à excepção das artificialmente fixadas) se caracterizam por um regime migratório, onde se destacam as deslocações longitudinais, acumulando areias na extremidade de uma das ilhas e erodindo a extremidade da ilha seguinte.

Para lá destes padrões verifica-se ainda uma tremenda vulnerabilidade do sistema face a eventos climáticos extremos – como tempestades, por exemplo – que, no actual quadro de alterações climáticas tendem a aumentar a sua intensidade e periodicidade, pelo que a redução da exposição será de acautelar.

Os antigos conheciam bem e mantinham presente a consciência desta mutabilidade e quase volatilidade – temperamental, para os seguidores da Teoria de Gaia – e por isso baseavam as suas ocupações das ilhas-barreira em estruturas maioritariamente efémeras, com recurso a materiais locais, para que os inevitáveis estragos e perdas não fossem significativos.

É por isso que, quando olhos gulosos assentam sobre a Ria Formosa, pensando em implantar usos estáticos – por exemplo edificações – sobre um sistema elástico, convém não perder de vista esta imagem...
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Uma fortaleza submersa na Ria Formosa

2/9/2020

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Por Andreia Fidalgo

Na passada sexta-feira, o Gonçalo Duarte Gomes registou aqui, no Lugar ao Sul, as suas preocupações quanto ao uso totalmente desregrado da Ria Formosa e as consequências nefastas que as actividades recreativas desorganizadas poderão ter naquele que é um património de todos e que, por isso mesmo, deve ser preservado.

Creio que verdadeiramente se deve entender aqui o conceito de património lato sensu: acima de tudo, o património como algo que herdamos e damos a herdar, o que pressupõe que tenhamos consciência histórica do que nos precedeu, mas também de que o futuro pertence às gerações vindouras; o património como um elemento identitário fundamental, através do qual se gera e mantém o sentimento de pertença de uma determinada comunidade a um determinado local, pelo que a sua preservação se deve assumir como prioritária; e o património na suas múltiplas vertentes, que vão desde o património ambiental, ao património cultural material e imaterial.

A Ria Formosa, pela sua herança e pelas suas características únicas, dialoga com esta concepção mais abrangente de património.

Em termos históricos, por exemplo, seria impossível compreender a lógica de ocupação do território do sotavento algarvio desde os tempos mais remotos sem considerar a presença da Ria Formosa, que, se por um lado possui uma riqueza natural que lhe permitiu a alimentação e a economia das populações ao longo do tempo, por outro lado, é um sistema lagunar com uma morfologia muito própria que constituía uma barreira de protecção estrategicamente aproveitada contra os perigos que do mar ameaçavam quem estava em terra.

No entanto, quanto desse património que resulta da ocupação e exploração multissecular da Ria Formosa não estará já hoje esquecido e até negligenciado?

Hoje decidi trazer aqui ao Lugar ao Sul um breve apontamento sobre a Fortaleza de São Lourenço, que actualmente, além de uns escassos vestígios in situ, quase apenas subsiste na memória da comunidade local. A história desta fortaleza remonta ao período da Guerra da Restauração. Durante a União Ibérica (1580-1640), a costa algarvia tinha ficado algo vulnerável e desprotegida no que respeita à sua defesa militar, pelo que após 1640, com a Restauração da Independência, se procura reforçar militarmente alguns pontos estratégicos de maior fragilidade. É neste contexto que em 1653 se inicia a construção desta fortificação, com o objectivo de vigiar e defender do corso e da pirataria a barra marítima que então dava acesso à cidade de Faro (Barra da Armona ou Barra Grande).
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Configuração da costa entre a barra da Fuzeta e o Ancão, com a localização da Fortaleza de São Lourenço, in "Fortificações do Algarve", por Baltazar de Azevedo Coutinho, 1798. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Colecção Cartográfica, n.º 211.

É o Eng.º militar Pedro de Santa Colomba que sugere ao então Governador e Capitão Geral do Reino do Algarve que a fortaleza se construísse na ponta de uma elevação de areia, em plena Ria, perto da barra (a sul da ilha do Coco). Como tal, a sua estrutura e alicerces deveriam assentar numa grade de traves de madeira grossa e bem pregada, que seria preenchida com alvenaria miúda, sobre a qual se colocariam lajes a partir de onde arrancariam as paredes. Ademais, a fortaleza deveria compor-se de quatro baluartes.

As obras avançaram, e em Abril de 1654 há notícia de que a edificação estaria prestes a receber artilharia num dos quatro baluartes já concluído. No entanto, em 1657 ainda não estaria totalmente edificada e não demoraria muito tempo a que se começassem a revelar os problemas estruturais de uma construção em areal tão instável e sujeita às intempéries e aos avanços das marés, num sistema dinâmico como o que caracteriza a Ria Formosa. Logo em 1661, o forte teria começado a ruir, o que conduziu a uma posterior reconstrução.
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Na realidade, toda a história do forte iria assentar nessa dinâmica constante e sucessiva de ruína e reconstrução, ao longo dos séculos XVII e XVIII. Em 1755, o terramoto de 1 de Novembro arrasou por completo a fortificação, mas novamente foi concedida autorização para a sua reconstrução. Nos finais dessa centúria, é interessante observar os desenhos que Baltazar de Azevedo Coutinho, Capitão do Real Corpo de Engenheiros, nos deixou da Fortaleza e sua localização, no Livro “Fortificações do Algarve”, de 1798. Por essa data, a fortaleza tinha planta quadrangular e compunha-se de aquartelamentos, de um paiol de pólvora, de uma capela e de uma bateria artilhada com três peças de ferro de calibre 18, e duas peças de bronze de calibre 6. O desenho da planta regista, ainda, as ruínas de anteriores edificações da fortificação.
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Planta da Fortaleza de São Lourenço, in "Fortificações do Algarve", por Baltazar de Azevedo Coutinho, 1798. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Colecção Cartográfica, n.º 211.

Em 1821, as fontes documentais dão conta do total estado de ruína desta fortificação, sendo então completamente abandonada e progressivamente engolida pelo mar. Actualmente, ainda dela restam alguns vestígios visíveis na baixa-mar, nomeadamente três bocas de fogo de ferro, sendo que muitas das pedras da anterior edificação foram reaproveitadas pelos habitantes locais para delimitação de viveiros ou construção de habitações; mas acima de tudo, é interessante notar que a memória da Fortaleza de São Lourenço teima em persistir entre a comunidade local, nomeadamente entre os pescadores olhanenses e culatrenses que frequentemente se deslocam ao local para a apanha de polvos e que a ele se referem como “o Forte”.

A persistência da designação de “Forte” e também do topónimo “São Lourenço” na memória da comunidade local evidenciam a presença de uma herança patrimonial que ainda não está totalmente esquecida… Mas há que questionar o quanto dela verdadeiramente se conhece, e se efectivamente não estará deixada à sua sorte e abandono até que dela nada reste…

Este é apenas um exemplo, entre muitos outros, da riqueza e diversidade patrimonial da Ria Formosa. Uma Ria que tem actualmente muito mais a oferecer, além das actividades recreativas prazerosas… Uma Ria que conta uma história multissecular, com alguns testemunhos bem visíveis, mas com muitos outros submersos nas suas águas cristalinas.
 
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NOTA: Os mais interessados poderão encontrar um estudo mais aprofundado sobre este tema na tese de mestrado em Arqueologia de autoria de Maria de Fátima Claudino, intitulada Forte de São Lourenço (Olhão): Arqueologia e História de uma Fortificação Moderna.
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