Por Gonçalo Duarte Gomes Foi publicado na passada Quarta-feira o conjunto de legislação que havia sido anunciado em finais de Maio, em que se inclui o Programa de Transformação da Paisagem (disponível aqui) e o Programa de Reordenamento e Gestão da Paisagem das Serras de Monchique e Silves (disponível aqui), que constitui um desenvolvimento operacional do primeiro. Sobre o instrumento previsto para as Serras de Monchique e de Silves houve já oportunidade de tecer algumas considerações (disponíveis aqui), uma vez que sempre foram sendo anunciadas algumas das suas linhas de força. Sobrava a curiosidade relativamente ao Programa que enquadra o programa. Entre aspectos interessantes, e outros nem tanto, prevalece uma certa desilusão. Um nome tão ambicioso, que fazia crer estarmos perante a nova visão para a paisagem nacional no seu todo, que a Comissão Técnica Independente preconizava como fundamental na ressaca dos fogos de 2017... resultou “apenas” num conjunto de intenções para áreas ardidas ou em vias de arder.
Compreende-se que os recursos são limitados, e que tem que se começar por algum lado, naturalmente pelos pontos onde o risco é mais iminente, mas parece haver um entendimento algo afunilado da paisagem, reduzida ao critério da perigosidade, que se poderá revelar principalmente em termos de conectividade ecológica e de dinâmicas sócio-económicas. Este entendimento não se traduz conceptualmente, já que alguns dos valores nucleares da paisagem, como aptidão, sistemas biofísicos fundamentais, mosaico multifuncional, estruturas sociais e culturais numa perspectiva intergeracional, serviços de ecossistema, etc., estão lá plasmados – de resto, os preâmbulos dos diplomas legais portugueses, pelo menos na área do ambiente, ordenamento do território e afins, contêm alguma da melhor prosa que existe sobre os temas em apreço, sendo pior... o resto. Mas operacionalmente, perspectiva-se um foco demasiado estreito em aspectos sectoriais, em prejuízo de uma visão mais abrangente e integradora. Recairá grande exigência sobre o exercício de gestão e sobre a sensibilidade dos seus actores, para o evitar. Para esse exercício, não aparenta contribuir a pouco clara integração das novas figuras de intervenção propostas nas existentes no regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial (IGT), que são aqueles legalmente vinculativos para a tomada de decisões. No limite, poderão verificar-se conflitos incapacitantes entre diplomas – o que é coisa comum em Portugal, porque o frenesim legislativo da Assembleia muita vezes dispensa-se do necessário trabalho de articulação... Igualmente, o surgimento de novas entidades responsáveis pela administração e gestão das Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (uma das tais figuras) não deixa de ser problemático. Porque cada vez que o Governo – não este, qualquer um, genericamente – cria uma nova entidade de gestão do nada, está a passar um atestado de inutilidade às que anteriormente detinham essa competência, ou então um atestado à incapacidade própria de dotar as estruturas existentes com os recursos e meios que permitissem desempenhar mais eficazmente essa competência. No caso, salta logo à vista verificar-se que a dotação orçamental em Fundo Ambiental para financiamento à constituição e funcionamento dessas novas entidades seja de 4.000.000 € (2020-2022), enquanto que, por exemplo, a dotação nesse mesmo Fundo Ambiental, para o programa “Condomínio de Aldeia” seja de... 2.700.000 € (2020-2022). Já que dele falamos, o programa “Condomínio de Aldeia” é um caso curioso. Trata-se de um programa criado para fazer cumprir o que a lei já obriga que se cumpra: a limpeza de material combustível na periferia dos núcleos urbanos. Para o efeito, o Estado propõe-se intervir nas comunidades abrangidas pelas áreas de intervenção deste programa, tentando apoiar a sua organização, operando como mediador entre particulares, na tentativa de alcançar entendimentos de escala que viabilizem económica e operacionalmente as limpezas obrigatórias por lei, por exemplo – e muito bem – através da recuperação dos mosaicos agrícolas periféricos tradicionais na orla das urbes, que funcionam como linha de defesa, ainda para mais produtiva. Ora bem, o Estado servir como árbitro é coisa fundamental. Não pode é cair na tentação de se substituir à comunidade que pretende mediar, já que a História – a nossa, com a Reforma Agrária, e a Universal, com, por exemplo, o Grande Salto de Mao – mostra que desenhos colectivistas impostos às comunidades redundam em grande barraca, quando não em coisa pior. Novamente, que não tremam as mãos aos gestores destes processos. Estas questões não invalidam méritos globais à ideia deste programa. E é também certo que apenas quando se começar a labutar no terreno, como vai acontecer desde já em Silves e Monchique, se poderão perceber as reais virtudes e defeitos das ideias, e se poderá trabalhar para as melhorar. No entanto, face a experiências passadas, anunciam-se fragilidades que, invariavelmente, se traduzem em dificuldades na altura de operacionalizar. Porque as estruturas são confusas, porque as competências se sobrepõem – acabando quase sempre num limbo incapacitante –, porque os tempos da Adminsitração não são os tempos da economia, porque o dinheiro para as coisas mais importantes escasseia, e porque não resulta claro nem processo, nem, afinal, objectivo. Isto leva-nos a outro problema. A Administração Pública é a entidade (dividida em várias instituições e níveis de actuação) em que a sociedade deposita poderes para gerir o Estado, que por sua vez resulta de um contrato social comummente aceite por todos nós, como forma mais eficaz de regular as nossas relações, sem andar tudo à batatada – nesta altura Rousseau e Hobbes estão às voltas no túmulo por tão grotesca simplificação, mas é o que temos. Em Portugal, e embora até constitucionalmente se estipule que é a boa-fé o princípio que deve reger as acções da Administração e particulares, mantendo mutuamente comportamentos ou condutas que expressem lealdade, rectidão, honestidade e seriedade, a verdade é que a relação é complicada. A Administração não confia no particular – a malandrice é traço identitário da alma mediterrânica que nos preenche – nem em si ou nos seus agentes – enreda-se muitas vezes em mecanismos de controlo que são apenas armadilhas paralisantes. O particular não confia na Administração – porque a vê distante e refém dos interesses particulares dos partidos e da teia que gerem, servindo-se dos que devia servir. Vai daí, o Estado legisla e regulamenta cada vez mais furiosa e arbitrariamente (quanto mais detalhada e intrusivamente, pior, diga-se) na tentativa de cercar o particular, e o particular mais empenhada e afincadamente tenta fugir (cavando a sua parte do fosso que a todos prejudica) por não se rever na gestão, ou falta dela. Isto representa um falhanço democrático e do País no todo do seu projecto enquanto tal. Que se reflecte nas nossas paisagens e na esquizofrenia que tantas vezes as marca. São o reflexo do que somos enquanto sociedade, nada mais. Planos como o que agora arranca em Silves e Monchique serão decisivos para quebrar este ciclo vicioso, e para demonstrar que o Estado e os seus constituintes são capazes, em conjunto, sinergia e parceria, de realizar e de implementar dinâmicas positivas, recuperando e revitalizando paisagens caídas em profundo desequilíbrio. Num processo que, mais do que burocrático ou administrativo, deve ser encarado como vivo, social, humano. Porque as pessoas são ingredientes fundamentais das nossas paisagens. Em equilíbrio dinâmico com o seu meio, numa relação também ela de boa-fé. Se assim não for, começamos a ficar sem argumentos para ter esperança. Para já, mantenhamo-la, mas com consciência. E disponibilidade para ajudar.
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Por Gonçalo Duarte Gomes Foram esta semana publicados pelo Instituto Nacional de Estatística os dados referentes ao Uso e Ocupação do Solo de 2018 para o Algarve (aqui). Esta informação permite não apenas um instantâneo de 2018, mas também perceber a evolução das paisagens desde 2015, oferecendo uma visão sobre tendências, padrões e magnitude de alteração. Em termos de distribuição da ocupação do solo por classes, eis o retrato da região, em 2018: Em termos de evolução relativamente a 2015, a situação conta-se mais ou menos desta forma: À redução das áreas de matos, de pastagens e de superfícies agro-florestais corresponde um aumento dos territórios artificializados, da área agrícola e da área florestal. É interessante perceber entre que classes de uso do solo se deram as trocas de perdas e ganhos, o que é sistematizado neste gráfico algo confuso: O ordenamento da paisagem é o processo partilhado através do qual inscrevemos no território políticas, sejam elas ambientais, sociais ou económicas, espacializando ideias, materializando modelos de organização, distribuindo o acesso aos recursos e às oportunidades de desenvolvimento que representam e salvaguardando as estruturas que são fundamentais ao equilíbrio biofísico e à salubridade ambiental que serve de base a tudo. Dessa forma, espelhamo-nos enquanto sociedade, enquanto povo, enquanto cultura. E construímos a nossa preparação e resiliência para dar resposta às necessidades presentes e aos desafios do futuro. Pois bem, se quisermos relacionar este retrato agora apresentado da região do Algarve com o seu desenvolvimento, podemos tentar o exercício de comparar, para igual período, o Índice Sintético de Desenvolvimento Regional (ISDR) ao nível das NUTS III – o de 2018, foi anteriormente analisado aqui. Entre 2015 e 2018, o ISDR do Algarve evoluiu assim: Verifica-se então que, à evolução do padrão de uso do solo corresponde uma degradação do ISDR do Algarve que, adicionalmente, cava, ano após ano, a divergência em relação à média nacional. O ISDR é um índice compósito, que inclui índices parciais. Um desses índices parciais, o da qualidade ambiental, relaciona-se estreitamente com o uso do solo. Analisada a evolução desse indicador, temos que: O Algarve repete a tendência de degradação entre 2015 e 2018, sendo que se torna muito acentuada a divergência em relação à média nacional, quando em 2015, pouco separava a região desse valor. Em 2018, como sabemos, o Algarve alcançou mesmo a (des)honrosa condição de ser a pior região portuguesa em qualidade ambiental, à luz destes índices, babujando na Liga dos Últimos. Ou seja, estatisticamente, da evolução do mosaico paisagístico da região não estão a resultar ganhos evidentes para o colectivo. A estatística tem sempre um valor relativo. No caso do uso do solo, talvez até mais do que no do ISDR, porque sabemos áreas e percentagens, mas estes dados não estão desagregados o suficiente ou traduzidos espacialmente, para que possamos perceber matrizes, fragmentos (formas, tamanhos, organização, inter-relações) e fluxos, num diagnóstico mais coerente da estrutura e do seu funcionamento. Portanto, mais do que factores de orgulho ou penitência, estes dados devem servir como avisos à navegação e indicadores para aferição da evolução da gestão da região. Mais ainda quando, no retrato do INE, poderemos até questionar as classes de uso do solo definidas, assim como as metodologias e conceitos. Por exemplo, no contexto de paisagens alta e ancestralmente humanizadas como são as do nosso País, e do Algarve em particular, há pouco que não caiba nesta categoria. O INE considera-os como a “superfície de território destinada a atividades de intervenção humana que inclui áreas de tecido edificado, industriais, e comerciais, de serviços e turismo, jardins, equipamentos e infraestruturas, redes rodoviária e ferroviária”. Dentro disto, ficamos sem saber, por exemplo, o que corresponde a edificação e o que corresponde a infra-estruturas viárias/rodoviárias, o que seria importante. Mas sabemos que estamos a converter áreas matriciais da paisagem algarvia, como matos e superfícies agro-florestais (onde, pela definição da ficha técnica, se inclui o pomar de sequeiro), em áreas agrícolas e florestais. Se tais princípios se podem afigurar como conceptualmente positivos, pois necessitamos de maior diversificação económica na região, a coisa piora quando cruzamos com outras informações de que dispomos. No caso da agricultura, parte significativa da conversão de novas áreas se destina à instalação de culturas de regadio extensivas e/ou intensivas – por vezes com tremendo impacto, como no caso do Cerro de S. Miguel – sem aparente preocupação ou controlo de um balanço hídrico regional, quando o Algarve é marcado pela incerteza e escassez dos recursos hídricos são factores críticos de limitação. Nas áreas florestais que também aumentam na região, sabemos (graças ao 6.º Inventário Florestal Nacional, disponível aqui), que o Algarve tende para a redução significativa de sobreiro e alfarrobeira, o que suscita a questão relativamente ao que lhes sucede e ao que aportam em termos de modelo territorial, social e económico, ainda para mais em contexto de expansão. Não há qualquer problema inerente à mudança – muito pelo contrário, já que é condição inerente e indispensável à vida, ao contrário da morte, que tudo estagna – mas interessa pensar a forma como se processa e o que traz para o futuro.
Desde que isso realmente interesse. O que não parece acontecer, bastando ver a seriedade com que estas matérias do ordenamento e do planeamento – até da vida humana – se encaram em Portugal. No passado 17 de Junho, dia em que assinalaram três anos sobre a deflagração do incêndio de Pedrógão que redundaria na tragédia que ceifou a vida a dezenas de pessoas (e que se repetiria em Outubro desse mesmo fatídico 2017, elevando o número total de vítimas acima da centena), por falhanço absoluto de um modelo territorial e de gestão da paisagem, e que deve envergonhar todos enquanto subsistirem – como subsistem – as suas causas estruturais, qual foi a forma que os principais órgãos de soberania da nação encontraram para assinalar tão necessária reflexão? Juntando Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e Primeiro-Ministro (bem como outras figuras de menor relevo) no Palácio da Ajuda, para anunciar ao País, em mal contida excitação – como garotos que se juntam para ver pornografia em vez de fazerem os trabalhos de casa – que a fase final da Liga dos Campeões Europeus de futebol se disputará em Lisboa. Eloquente, não? Por Andreia Fidalgo Assumo desde já que este título vático não é da minha autoria, mas sim de Francisco Fernandes Lopes (1884-1969): é o título de um escrito originalmente datado de 1948, no qual este médico e intelectual olhanense dava a conhecer a vila e as suas singularidades. E já que hoje é dia de celebrar Olhão, parece-me justo recuperá-lo e a todo o simbolismo que encerra. A história de Olhão é relativamente recente. Até 1715, data em que se obteve autorização para a construção da primeira casa de alvenaria, Olhão não era mais do que um aglomerado de palhotas concentradas em torno da igreja matriz. Durante essa centúria, a povoação piscatória cresce de forma exponencial, de tal forma que no dealbar de Oitocentos já era a quinta maior povoação algarvia, contando 1202 fogos, apenas ultrapassada por Tavira (2209 fogos), Loulé (1809 fogos), Faro (1805 fogos) e Lagos (1693 fogos), todas elas localidades multisseculares. O contributo dos olhanenses para a expulsão das tropas francesas, numa revolta que eclodiu a 16 de Junho de 1808, e a que se seguiu a viagem ao Brasil no caíque Bom Sucesso, foi absolutamente determinante para a história da povoação: em reconhecimento pelos feitos, por alvará régio de 15 de Novembro de 1808, o lugar de Olhão é elevado a vila, e por alvará régio de 20 de Abril de 1826 é oficialmente criado o concelho de Olhão, que se autonomiza definitivamente de Faro. A vila de Olhão cresce e prospera, sustentada economicamente pelas opulentas pescarias e, na primeira metade do século XX, por uma próspera indústria de conservas de peixe. Uma das características mais interessantes do desenvolvimento dessa povoação foi o da configuração tão característica do seu urbanismo e as particularidades arquitectónicas que aí se notabilizaram e que conferem à cidade uma grande singularidade. Neste panorama, merece particular destaque todo o intrincado de vielas sinuosas e misteriosas, que encontram o seu expoente máximo no bairro da Barreta, assim como merece particular destaque a açoteia, elemento arquitectónico que, de resto, é tão característico da região algarvia (e de todo o Mediterrâneo!), mas que encontra em Olhão uma grande profusão e atributos únicos. Tal como escrevia Fernandes Lopes no escrito que dá mote a este meu artigo, “Olhão não é só um «mar de soteias» (como a próxima aldeia da Fuzeta)”; as casas e açoteias olhanenses diferem das restantes por apresentam algumas particularidades que tornam a sua arquitectura tão singular: a existência de pangaios, de mirantes e contra-mirantes. E Fernandes Lopes descreve com acuidade todos estes elementos, pintando uma vívida imagem da arquitectura típica olhanense. O intelectual olhanense refere-se aos pangaios como estruturas que rompem “forçosamente o terraço, quando se sobe à soteia por dentro da casa e não pelo quintal (…), pangaios onde a chaminé cúbica e simples ficou incorporada ou coalescente”. Porém, segundo ele, não foi suficiente ao olhanense as açoteias com pangaio, estrutura esta que rapidamente evoluiu para “uma nova soteia que se circundou de parapeito alto, e à qual se sobe sistematicamente por escada exterior, de alvenaria” – a esta nova estrutura deu-se o nome de mirante. Mas, por vezes, este mirante é de tão largas dimensões que deixa a açoteia primitiva reduzida a um pequeno quintal no primeiro andar, constituindo ele próprio uma nova açoteia; em alguns destes casos, segundo Fernandes Lopes testemunhava, surgia ainda uma terceira estrutura, o contra-mirante, que é “um segundo mirante, ocupando de lado a lado, quase metade do terraço do primeiro, ou metido a um canto desde e minúsculo, quase simples púlpito ou torre de vigia”. Segundo Fernandes Lopes, portanto, a singularidade da arquitectura olhanense residia nesta multiplicidade de terraços, “três terraços sobrepostos, em pirâmide!...”. É, em suma, como a caracteriza no final do seu artigo: uma “estranha e misteriosa arquitectura local, genuína, inerudita…”. Uma sobreposição cúbica, portanto, que valeu a Olhão o epíteto de “vila cubista”… Uma vila absolutamente singular, também de gentes muito características, que ao longo dos tempos inspirou descrições absolutamente deliciosas que mostram o quão única é a sua essência. Não resisto, aqui, em invocar dois grandes escritores portugueses que nos deixaram testemunhos divinais sobre Olhão: Raul Brandão e Aquilino Ribeiro. Em Os Pescadores (1923), Raul Brandão condensa uma série de crónicas sobre a vida dos pescadores portugueses, passando por várias localidades. De Olhão, em Agosto de 1922, o escritor deixaria a seguinte descrição: “De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto – por baixo, chapadas de cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os terraços, um zimbório redondo e túmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor”. E o que dizia Brandão dos homens do mar? “O marítimo de Olhão tem, como nenhum outro, um grande sentimento de igualdade: estende a mão a toda a gente. É que no mar os homens correm os mesmos perigos. São também profundamente religiosos, porque estão a toda a hora na presença de Deus. Duas tábuas, a fragilidade e a incerteza forçam-nos a contar consigo e com a companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim. Homens simples porque a profissão é simples e o meio, grande e eterno, não os corrompe”. Poucos anos volvidos, seria a vez de Aquilino Ribeiro deixar registado, no 2º volume do Guia de Portugal (1927), as suas impressões sobre Olhão: “Vila cubista chamaram a Olhão, e , de facto, a vol d'oiseau, parece a casaria projectar-se duma tela de Picasso para ludíbrio dos olhos afeitos à ordem objectiva das três dimensões. De um prédio para o outro as açoteias e fachadas imbricam-se, acavalam-se, sobrepõem-se, desarticulam-se, anuladas pela brancura e pela miragem as leis da perspectiva e do volume. São milhares de cubos em equilíbrio instável, paradoxal, absurdo, como cantarias duma Babel juncando um campo raso. E todavia, deste mar revolto de planos e desta fanfarra endiabrada de branco, filtra-se uma sensação de pureza, de banho auroral, como rescende o perfume dum canteiro de açucenas”. Sobre as gentes, o testemunho de Aquilino é absolutamente delicioso: “Galeões a vapor, caíques, chalupas, fragatas, a barcaça da lota, ruidosa como um arraial, e uma população acobreada, peluda, mexida, cruzando de quando em quando gritos rápidos, cantantes. (…) A pesca por essa charneca verde, sem fim, até a vista da Barberia… em cabotagem… ao contrabando, se Deus é servido. Levado pela vela rápida, triangular, o olhanense comete todos os misteres, porque para ele todos os misteres são legítimos, desde que regados com o honrado suor do seu corpo e praticados com valentia. O mar condicionou a sua audácia e a audácia a sua moral”. Destas descrições, a que poderia somar muitas outras, sobressai a singularidade olhanense, quer do seu urbanismo e arquitectura, quer das suas gentes. Sobressai uma identidade muito específica, que confere a Olhão particularidades que foram, durante décadas, destacadas e elevadas. Será caso para questionar se esta identidade ainda se mantém hoje viva, ou se já esteve de melhor saúde… É certo que parte do vasto panorama de açoteias foi progressivamente alterado e destruído durante décadas, mas que os mais recentes esforços têm sido para a sua preservação; é certo que muitas das habitações dos bairros tradicionais da Barreta e do Levante têm sido recuperadas, algumas com investimento de estrangeiros que escolheram aí residir, deslumbrados com o panorama típico da cidade, e outras com o intuito claro de servir e captar o turismo… Mas, por muito positivos que sejam esses esforços para a manutenção da feição arquitectónica característica de Olhão, isto leva-me necessariamente a questionar até quando existirão olhanenses nos bairros mais típicos de Olhão, e se não estaremos a caminhar para a total gentrificação do núcleo histórico da cidade, e, consequentemente, para a perda da sua identidade? A preservação da identidade e do património histórico-cultural de uma localidade não pode passar somente pela manutenção das suas características arquitectónicas; há que passar, também, pela preservação das suas tradições e manifestações culturais, do modus vivendi da sua população, pela manutenção da economia local… Até que ponto estamos dispostos a sacrificar tudo isto em prol da especulação imobiliária e do turismo de massas? É inegável e louvável o progresso e o melhoramento urbano de que a cidade tem sido alvo nos últimos anos, mas questiono também até que ponto um projecto como o que agora está a arrancar, de requalificação de toda a frente ribeirinha de Olhão, realmente espelha a identidade do local? O progresso é necessário e inevitável, mas queremos uma Olhão asséptica, uniformizada, estandardizada, igual a qualquer outra cidade, ou queremos que a cidade ainda continue a suscitar reflexões e testemunhos sobre a singularidade da sua arquitectura, do seu urbanismo e das suas gentes, como os que nos deixaram Raul Brandão e Aquilino Ribeiro? Não tenho respostas… Deixo apenas algumas reflexões. E porque hoje é Dia da Cidade de Olhão, termino relembrando a magnífica “Ó vila de Olhão” de Zeca Afonso. Por Gonçalo Duarte Gomes Um álbum de fotografias é muito mais que um álbum de fotografias. Ao revisitar registos do passado, encontramos de tudo um pouco. Memórias de quem nos era próximo e já partiu, imagens de felicidade que perduram no nosso coração, penteados e roupas de fazer corar de vergonha as pedras da calçada, objectos que marcam momentos da nossa vida, para o melhor e para o pior. Amor, saudade, dor, alegria, tristeza, nostalgia, esperança, uma miríade de experiências e sentimentos que são, na sua combinação, o que faz de nós o que somos, e as bases em que assentamos o nosso presente e lançamos o nosso futuro. Com algumas vivemos bem, com outras temos mais dificuldade em lidar. Desse equilíbrio dinâmico faz-se o nosso crescimento. Se pessoas que usaram chumaços hoje não estão dispostas a repetir a graça, tal deve-se, em boa parte, ao ocasional recontro que têm com esse passado negro, imortalizado em fotos geralmente granuladas e mal reveladas, que as fazem pensar sobre más escolhas de guarda-roupa. O património, nas suas variadas formas, não é outra coisa senão o álbum de fotografias de um povo.
Quando os gauleses, liderados por Breno, invadiram Roma no Séc. IV a.C., pouco restou da cidade para contar história. E pouco restou de Roma para contar História. Porque o património foi apagado, colocando desafios acrescidos à historiografia daquele período, conforme Tito Lívio bem relatou. Tal deveu-se ao facto do fascínio inicial que os invasores sentiram pela arquitectura e esplendor da capital da então República Romana, ter sido seguido por um desequilíbrio emocional (inveja, incompreensão, o que seja) que redundou na destruição de tudo aquilo com que se cruzaram. A delapidação do património cultural dos vencidos pelos vencedores é uma prática ancestral. É a via rápida para a fragilização e obliteração da sua identidade e da resiliência e resistência que lhe estão associadas. É a derrota do espírito, a juntar à do corpo, alcançando a subjugação completa. No Algarve acontece muito, com a destruição das paisagens tradicionais e do que significam em termos culturais, a representar a vitória de um determinado sistema e modelo sobre um outro, que se apaga para não mais lembrar. Utilizando o brutal assassinato de George Floyd como detonador, um movimento há muito orquestrado de saneamento histórico e de revisionismo e revanchismo ideológico, assente em discursos de ódio – racista mas não só – entrou em velocidade de cruzeiro. Não pretende o fim da discriminação racial, étnica, religiosa ou cultural. Não pretende estabelecer relações de humanismo fraterno entre pessoas que se tornam indistintas nessa condição. Pretende acentuar a clivagem e a segregação em e entre grupos – brancos, pretos, amarelos, vermelhos, dextros, canhotos, altos, baixos, gordos, magros, hetero, homo, assim, assado – para os organizar em novas relações de poder e subordinação (com uma suposta “culpa histórica” a servir de força motriz e aríete), assim tomando as rédeas de um novo processo de discriminação racial, étnica, religiosa ou cultural, mas à luz dos preconceitos “certos”. Pretende impor um entendimento único, higienizado de acordo com certos padrões, inócuo, acrítico. Pretende que ninguém pense sobre o que quer que seja, deixando isso nas mãos das pessoas “certas”, que atempada e oportunamente fornecerão orientações de pensamento, comportamento e discurso. Até lá, aguardamos sossegados, caladinhos, obedientes, preferencialmente com medo. Como escravos. Entretanto, multidões instrumentalizadas – que, como se sabe, são organismos sempre caracterizados por grande discernimento e assertividade – lançam-se com afã na tarefa primeira de qualquer acto de conquista: a destruição do património para erosão da memória. E, porque se alicerça e alimenta de ignorância e anacronismo, não tem sequer a preocupação de tentar fazer parecer ter qualquer critério. Nem cor ou lado, até porque estamos no ponto do paradoxal fenómeno em que extremos diametralmente opostos se tocam. Escrevendo sobre isso, Churchill (conhecido fascista, de acordo com o pensamento que lhe pichou a estátua), referindo-se então à oposição entre comunismo e fascismo, disse que lhe faziam lembrar o Pólo Norte e o Pólo Sul. Embora se localizem nos antípodas, uma pessoa que acordasse em qualquer um não conseguiria distingui-los. Talvez houvesse mais pinguins num, ou mais ursos polares no outro, mas no fundo, haveria gelo, neve e um furioso vento cortante. Vai daí, a vaga de vandalismo e censura avança, um pouco por todo o Mundo, sem grandes esquisitices de arte ou género. Estátuas, palavras, músicas, filmes, séries de televisão, tudo está a engrossar uma lista de itens proibidos que promete envergonhar o Index Librorum Prohibitorum da Inquisição. Porque incomodam, ofendem, contrariam o pensamento dominante, não correspondem aos valores contemporâneos. Reflectir e aprender através do património cultural é uma grande trabalheira. Perceber que embora hoje não se ergam estátuas a um esclavagista, é importante ver no espaço público que tempos houve em que eram personalidades respeitáveis da comunidade, para a partir daí pensar no assunto e inscrever ensinamentos que evitem a repetição de erros no futuro. A turba que neste momento percorre ruas reais e espaços virtuais, não o quer fazer. Perante o incómodo que os penteados de gosto duvidoso e os chumaços da História lhes provocam, não controlam as suas emoções, partindo então para a gratuitidade da tentativa de controlo dos comportamentos dos outros. Mas, se em tempos a ignorância, mesmo sendo atrevida, era obrigatoriamente envergonhada, libertou-se de tais grilhões graças ao efeito amplificador das redes sociais e de um jornalismo que deixou de o ser – dá voz a quem diz que chove e a quem diz que não chove, sem abrir a janela para ver se realmente está a chover – passando a ser descarada e glorificada. Vai daí deparamo-nos com casos que, não fosse o dramático da situação e a sombra que faz adivinhar no futuro, seriam risíveis. E nem falo da petição para demolição da Torre de Belém – que existiu mesmo, já agora, e com assinaturas, entretanto encerrada! Em Lisboa, a estátua do Padre António Vieira foi vandalizada, pelos vistos por ser símbolo da opressão colonialista. Pondo de parte o anacronismo na análise da questão de fundo, e naturalmente não se pedindo a um vândalo que estude antes de agir, no caso, ignorar o humanismo e o papel precursor no debate sobre a necessidade de abolição da escravatura que António Vieira teve – num tempo em que a escravatura era prática de tal forma radicada na sociedade e no pensamento que até nos quilombos brasileiros de escravos fugidos havia escravos e, pior, escravos alforriados tornavam-se grandes traficantes de escravos – e que inclusivamente lhe granjeou grandes dificuldades e inimigos, é demasiada imbecilidade. "A estatuária deixará de ser a bandalheira que é, pelo menos em Portugal", terá pensado o Ventura de pacotilha, pleno de auto-satisfação, enquanto descarregava o aerossol colorido. Não faltaram avisos. Desde Orwell a Bradbury, sempre fomos alertados para este dia. Porque isto já antes havia sido visto, de diferentes formas. Nas perseguições de Sula, no Terror de Robespierre, na bücherverbrennung (queima de livros) nacional socialista (nazi) alemã, na Grande Purga do comunismo estalinista, no derrube das estátuas de Lenine nos sucessivos momentos da queda da Cortina de Ferro, na destruição dos Budas de Bamiyan pelos Talibã ou da cidade de Palmira pelo Estado Islâmico. Em tantos momentos em que o critério para a destruição foi a discordância, o incómodo da memória e o medo da aprendizagem, que verdadeiramente capacita o ser humano como criatura pensante. Estupidamente, utilizamos as distopias não como manual de navegação, mas antes como manual de instruções para a construção de um mundo ainda pior. Assim de repente, parece-me que devem imediatamente partir para a censura de Aristóteles, que n’A Política aceitava a escravidão por conveniência e por natureza, além da inferioridade da mulher face ao homem. A própria Utopia, de Thomas More, aceita a escravatura como condição, ainda que não inapelável, e mutável. Os Lusíadas imortalizam os Descobrimentos, esse empreendimento abjecto, pelo que Camões será de arder numa gloriosa pira. E Pessoa, um seu groupie literário, igualmente! Mas, caramba, não nos fiquemos por aí. Porque a violência contra animais é também ignóbil, metam Moby Dick, de Herman Melville, na trituradora, já que glorifica a caça à baleia. A estupidez é o limite, malta! Tanto para queimar, tão pouco tempo para o fazer... ah, e por favor, não se esqueçam de incendiar todos os museus. Até não sobrar nenhum. Em Lagos, o acto de vandalismo perpetrado contra o Museu local já é um bom princípio... É sabido que os momentos de fúria das massas são decisivos para a transformação da Humanidade e para a construção da História. Mas quem quer o progresso da Humanidade para algo melhor – e que bem precisamos, disso ninguém discorda – tem que começar por ser algo melhor. Que não apenas um vândalo. Até porque quando toda a gente é empurrada para extremos, não sobra ninguém no meio para estabelecer pontes. E é de pontes que precisamos, não de trincheiras. Enquanto posso, permitam-me então ao censores e inquisidores agora acordados: bardamerda. Por Gonçalo Duarte Gomes Foi ontem publicado pelo Instituto Nacional de Estatística o Índice Sintético de Desenvolvimento Regional ao nível das NUTS III, referente ao ano de 2018 (disponível aqui), um referencial que leva em conta três índices parciais, nomeadamente competitividade, coesão e qualidade ambiental). Lembrando que hoje se assinala o Dia Mundial do Ambiente, o Algarve tem razões para se orgulhar: é a região portuguesa com pior desempenho no indicador de qualidade ambiental! Felizmente, tão honrosa distinção não surge à toa. É que o Algarve surge em 17º lugar (de 25 possíveis) no tal índice sintético de desenvolvimento regional, provando que vale a pena o sacrifício. Já na consideração do índice compósito de desenvolvimento regional e dos índices parciais em relação à média nacional, o Algarve inclui-se no grupo 6, que é como quem diz, a Liga dos Últimos, e com desempenhos abaixo da média nacional em todos os indicadores. O chamado show de bola, e que só prova que tudo está impecável, ou pelo menos estava em 2018. Considerando que, de lá para cá, não houve alterações estruturais significativas no Algarve, podemos, ainda que com reservas até que sejam publicados os índices de 2019, assumir que tudo se mantenha inalterado.
Já se sabe que estes índices são como a arbitragem dos jogos (ainda que aqui os critérios sejam mais objectivos): quando favorecem a nossa fé clubística, não lhes vemos mácula, quando sucede o contrário... bom, aí claramente foi o anti-cristo quem controlou o apito. Não será portanto este cenário que vai estragar o cândido optimismo da fantasia regional do milagre económico do Algarve, em que, comprando uns prémios de turismo e uns artigos numas revistas de referência, "tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis". Por outro lado, estes índices, ainda que envergonhem o Algarve, não são também um fim em si mesmo. Servem de aviso à navegação. Mas só se quem vai ao leme da região quiser prestar atenção. Bem a propósito, hoje discute-se a Economia Circular na região, tema que tem merecido o empenho da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, e o labor empenhado de muitas pessoas. O que será sempre um esforço inglório, enquanto não alterarmos o facto de, no Algarve, as bolas económicas serem quadradas, tema que já foi abordado (aqui). Continuamos sem saber – e sem querer saber – do ponto da Curva de Hubbert (que representa a extracção acumulada de um recurso não renovável ao longo do tempo) em que nos encontramos relativamente aos recursos do Algarve. O nosso modelo de turismo continua a perseguir uma rota autofágica, com a sua pornográfica promiscuidade com a construção civil e a especulação imobiliária, recusando-se a reconhecer ou respeitar quaisquer limites ou capacidade de carga – há sempre mais um hotel para construir, uma zona para artificializar para o postal, um troço de costa selvagem para “domesticar”, prostituindo. Os objectivos, mesmo nos alegados esforços de diversificação económica, continuam a ser o crescimento contínuo e desmesurado, deixando atrás de si pouco mais que terra queimada, através de desordenamento e assimetrias territoriais, maior vulnerabilidade e exposição aos fenómenos extremos potenciados pelo quadro de alterações climáticas – ou, como agora vemos, pandemias – bem como à exaustão dos recursos, por consumo directo ou desequilíbrio e descaracterização da sua matriz. Se lhe juntarmos questões como a pegada ecológica do transporte dos turistas (maioritariamente por via aérea) ou dos consumos de energia e recursos hídricos, entre muitos outros, corremos mesmo o risco de concluir que o Turismo é uma "indústria" linear por definição e impossível de arredondar, por defeito crónico de design. Por isso mesmo, a menos que quebre o seu paradigma de crescimento até ao infinito e mais além, o melhor a que a região pode aspirar em termos de arredondamento económico será a optimização cosmética de comportamentos individuais. O que não é Economia Circular. Assim, a aplicação do conceito de economia circular ao modelo territorial do Algarve continua a estar distante. Este índice espelha isso mesmo. Por Luís Coelho
São várias as companhias aéreas que têm anunciado o regresso das suas ligações regulares ao Algarve. Esta é uma notícia há muito aguardada por uma região que depende essencialmente do turismo para gerar riqueza e manter postos de trabalho. Mas… Será que devemos prosseguir esta etapa sem mais? |
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