Por Gonçalo Duarte Gomes O fogo que, após lavrar durante uma semana e se extinguir a 10 de Agosto, deixou um rasto de destruição de cerca de 27.000 hectares, divididos entre os concelhos de Monchique e de Silves não teve nada de particularmente original, até porque estava anunciado (ver aqui). Nasceu de uma ignição – cuja causa é, para o caso e por estranho que possa parecer, perfeitamente irrelevante – e, a partir daí, alimentou-se de material combustível acumulado e de paisagens abandonadas (ver aqui). Progrediu de acordo com os paradoxais padrões de incerteza que estão associados aos grandes incêndios, foi combatido, dentro do que é possível, com o aparato costumeiro e a mórbida atenção mediática que faz já parte do folclore estival, colocou em perigo pessoas e bens, destruiu vidas ainda que, felizmente, nenhuma tenha ceifado. Por isso mesmo – e apenas por isso – o seu combate foi considerado um “sucesso”. Na ressaca, surgiu então algo de completamente diferente: ainda o fumo pairava sobre as paisagens calcinadas, e o Primeiro-Ministro António Costa anunciava a intenção de promover uma reorganização económica para as zonas afectadas, num processo alargado, liderado pela própria Câmara Municipal de Monchique. Pois bem, no passado dia 21 de Maio, uma nota emitida pelo Gabinete do Ministro do Ambiente e da Acção Climática deu conta da aprovação em Conselho de Ministros de um conjunto de diplomas que versam sobre a temática florestal e da paisagem. De entre esse embrulho, soam particularmente interessantes o regime jurídico da reconversão da paisagem (embora pareça fragilizado por se centrar apenas no critério da perigosidade de incêndio) e o programa de emparcelamento. Para que se possam comentar, terá que se aguardar a sua publicação. Neste anúncio surgia também a nova da aprovação do prometido Programa de Reordenamento e Gestão da Paisagem das Serras de Monchique e Silves. Tal como a restante legislação deste conjunto, também o programa propriamente dito não está ainda acessível. Mas a nota ministerial detalha um pouco do seu conteúdo. Assim, sabe-se que definirá as directrizes de planeamento e de gestão, as áreas e as acções prioritárias de intervenção e o sistema de monitorização. Mais, terá por objectivo promover uma nova economia, que “valoriza o capital natural e a aptidão dos solos, que promove a resiliência ao fogo e que assegura maiores rendimentos, apoiando a reconversão de culturas e remunerando os serviços dos ecossistemas insuficientemente valorizados pelos mercados”. São identificadas duas áreas prioritárias de intervenção (“Corredor Verde”, em Monchique e “Serra Nova” em Silves) e três acções prioritárias temáticas, centradas em valorização de linhas de água e gestão de combustível, reabilitação do sistema de socalcos e valorização de sobrantes de biomassa florestal. A suportar tudo isto, é ainda previsto um envelope financeiro num valor total de 20,5 milhões de euros, para investir até 2039. Dito assim, o valor parece chorudo – desde que não pensemos em bancos, e assim. Diluído por 19 anos, impressiona menos – 1,08 milhões € / ano. Se, numa conta simplista, dividirmos o valor total pelos anos e pela área ardida, dá-nos… 39,9 € / ano / hectare. Naturalmente a divisão não obedecerá a regras tão básicas quanto estas, e o investimento muito menos. No entanto, serve para demonstrar que desde já todas as boas intenções ficam feridas de um subfinanciamento crónico – embora o investimento público não possa aqui ser tudo. Uma forma simples de o comprovar é olhar para as matrizes de referência dos custos para as principais operações florestais, elaboradas pela Comissão de Acompanhamento para as Operações Florestais (2015/16, que são as mais actuais), e tentar perceber, ainda que numas contas de merceeiro, e apenas a título indicativo, o que se paga com 40 €. É, não é? Mas olhemos para lá do vil metal, para aspectos bem mais positivos. Desde logo, o assumir da paisagem enquanto conceito operativo de planeamento e gestão. Esta evolução – lógica – em relação ao território permite melhor compreender e relacionar os diferentes aspectos biofísicos e humanos em interacção no espaço (e nem sempre imediatamente perceptíveis), cujo resultado final é, justamente, a paisagem. Seguidamente, e mesmo não se sabendo grande coisa do conteúdo material deste programa, conhecem-se alguns aspectos parciais das suas fases preparatórias/instrutórias. Concretamente, a Direcção Geral do Território disponibilizou alguns elementos de caracterização que integram este instrumento, que permitem verificar a riqueza da informação disponibilizada em apoio à decisão, que – finalmente! – contempla conceitos como aptidão paisagística (incluindo para agricultura e silvicultura, de natureza variada) ou susceptibilidade à desertificação, considerando fisiografia, demografia, cadastro (impressionante o diagnóstico de 74% dos prédios rústicos serem inferiores a 2,5 hectares, a que se somam 16% compreendidos entre 2,5 e 8 hectares), entre outros factores determinantes. Doravante, a ignorância não poderá nunca servir de desculpa. Desta análise, resulta também o sublinhar de algo óbvio: o maciço de Monchique e os territórios serranos de Silves, pelas suas características biofísicas e processos associados, enquadram e protegem tudo o que, em todas as direcções cardiais, se situa a jusante. E esse serviço fundamental tem que ser valorizado – obrigatoriamente pela via financeira. Esperemos que este programa seja a forma de introduzir nestas paisagens a remuneração dos serviços de ecossistemas em espaços rurais (já que o Algarve ficou de fora da Resolução do Conselho de Ministros nº 121/2019, de 30 de Julho, relativa à 1ª fase desse programa, e da sua posterior expansão). De qualquer forma, planos e programas são ferramentas. Quanto melhores forem, maior a facilidade da sua operação e melhores as probabilidades de sucesso na resolução dos problemas a que se destinam. Mas a perícia e a firmeza das mãos que as operam serão sempre os factores decisivos. Ora o problema em apreço, de perda de dinamismo das paisagens, não é local, nem regional, nem sequer nacional. Toda a Europa – para não alargar mais o âmbito – se debate com a revitalização das paisagens rurais. Ninguém tem soluções perfeitas, milagrosas ou imediatas – fujam de quem o afirmar. E não pode passar apenas pela autarquia ou pelo Estado, até porque, para a transformação da paisagem, são mais determinantes as razões do que as convicções ou intenções. Não se pretendendo a criação de um gulag paisagístico de iniciativa estatal, terá que ser alcançada, como em qualquer paisagem viva e equilibrada, a simbiose entre a iniciativa privada e os interesses públicos vertidos nas estratégias governativas, através de um projecto de futuro que alicie a primeira, que gerará os recursos que permitem sonhar com a materialização dos segundos. Dito assim, parece muito limpinho, direitinho, escorreito. Na verdade, será um exigente, doloroso, por vezes penoso, e decisivo processo de gestão política, social e económica, de base ambiental. Neste processo, a Comunidade Intermunicipal do Algarve (AMAL) terá que funcionar como bloco coeso e activo, de pressão e exigência junto do poder central, de forma a espaldar estes dois municípios, garantindo que ao projecto são dadas as necessárias condições para que possa, no mínimo, ter hipóteses de sucesso. A acontecer, esse sucesso agora ensaiado poderá potenciar caminhos para o desenho de soluções similares que, adaptadas a cada contexto, permitam a outras zonas do Algarve – Serra do Caldeirão, desde logo – enfrentar desafios idênticos. Por isso é importante que a região cerre fileiras em torno deste projecto intermunicipal, entendendo-o como importante pioneiro para outros que se sigam. Se esta ideia já era fundamental antes, neste tempo pós-COVID e de prometidas mudanças de paradigmas e procura de novas soluções para problemas antigos, mais ainda se torna. Partidos e pessoas vão e vêm, e a paisagem perdura, indiferente pequenas tricas, porque localizada num plano mais amplo, e operando em horizontes temporais mais alongados. Mas, se no poder local, felizmente, são as pessoas quem mais conta, fatalmente os partidos interferem larga e profundamente em vários processos. Busílis da questão: Monchique e Silves são municípios geridos por executivos que não são da cor do partido que forma Governo – embora Silves se enquadre no quadrante político de uma das suas muletas parlamentares – nem da cor que domina a AMAL. Quando estamos a pouco mais de um ano de eleições autárquicas, o que pesará mais: a região, a sua coesão e, mais importante que tudo, o futuro das pessoas e das suas paisagens, ou, pelo contrário, as agendas partidárias e as estratégias de conquista, recuperação ou consolidação de posições no nível municipal? Aceitam-se apostas.
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Viagens singulares no Reino do Algarve: condições de mobilidade (no séc. XIX e no séc. XXI)27/5/2020 Por Andreia Fidalgo Agora que já se definiram as regras de acesso às praias, e depois de um longo período de confinamento, não há quem não sonhe com uma bela quinzena de férias espraiado num belo areal, aquecido pelo sol estival e refrescado por revitalizantes banhos de mar. Claro que neste cenário apetecível, o Algarve volta a estar na mira das atenções. É do interesse de todos os algarvios e, também, de todos os portugueses, que a região mais afectada pelo impacto económico da Covid-19 recupere um pouco do fosso de precariedade para o qual resvalou em poucas semanas. É natural que, neste momento, as preocupações estejam centradas no turismo, e em garantir aos futuros visitantes da região, sejam eles nacionais ou estrangeiros, que estão perante um destino Covid Free, do qual podem usufruir sem medo de contaminações, desde que todas as regras de segurança e higiene sejam respeitadas. O turismo é uma prioridade. Mas existem outras, que não só lhe estão associadas, como dizem também respeito à qualidade de vida dos cidadãos que residem neste cantinho sul de Portugal. Uma delas é, evidentemente, a saúde. Ainda tenho alguma esperança – ténue, mas tenho! – de que este surto pandémico retire das calendas gregas o almejado Hospital Central do Algarve, que tanta falta faz à região. Uma outra prioridade é, sem dúvida, a melhoria da rede de transportes públicos e das condições de mobilidade sustentável dentro da região, problema crónico que, volta e meia, vem ao de cima para nos recordar do desprezo com que o poder central trata as necessidades regionais. Uma vez mais, a História relembra-nos que os problemas de mobilidade não são novos. Porém, em séculos passados, além das dificuldades de circular dentro da região, ainda se acrescia o problema de circular para fora dela. Aliás, se o Algarve padeceu, durante séculos, de um isolamento crónico que lhe conferiu a singularidade histórica de ter sido um Reino à parte, sem rei, e sem nunca o ser efectivamente, isso em muito se deveu às dificuldades de acesso à região e à precariedade das ligações terrestres ao Reino de Portugal. Antes da ferrovia – que a este lugar ao sul chegou tarde e se desenvolveu muito lentamente – a viagem de Lisboa até Faro era uma verdadeira aventura, quase diria que reservada aos mais audazes. Não resisto em relembrar, a este propósito, o magistral conto de Manuel Teixeira Gomes, intitulado Gente Singular, que apesar de ser datado de 1909, alude a uma realidade anterior à chegada da linha do caminho-de-ferro a Faro, que só se concretizaria em 1889: Duríssima travessia! Ainda mais penosa seria uma viagem que se fizesse exclusivamente por terra. A serra, não muito elevada, mas muito ampla e densa, apresentava dificuldades diversas que tornavam a viagem morosa. A este propósito, deixa-nos Silva Lopes na sua Corografia do Reino do Algarve, de 1841, uma indicação mais precisa do que seria sair do Algarve para rumar a Lisboa (ou de Lisboa para entrar no Algarve, se lermos inversamente), no meado do século XIX. Dos vários trajectos sugeridos pelo autor, fiquemo-nos apenas pelo primeiro, como ilustrativo: de Faro havia que seguir para Loulé, passando por S. João da Venda; a partir de Loulé, haveria que seguir pelo barrocal, num “péssimo caminho pedregoso até à Ponte da Tôr” e daí em direcção à Corte Neto; já em plena serra, haveria que passar várias vezes a vau o Rio Seco até à ladeira do Barranco do Demo, onde “há uma excelente fonte de água férrea debaixo de frondosos freixos”; um pouco a seguir, havia que tomar o caminho até Águas da Rainha e, deixando para trás o Rio Seco, encontraria a Ribeira do Vascão, que também teria de se passar a vau, transpondo o limite entre o Algarve e o Alentejo. Todo este percurso feito por caminhos estreitos, pedregosos e/ou de terra batida, acidentados, sinuosos, com subidas e descidas, passando por dentro das ribeiras… A expressão “passar as passinhas do Algarve” encontra nesta realidade duríssima de mobilidade um excelente exemplo. Imagine-se o leitor um figo ou uma uva, a secar ao sol, no pico do Verão, num qualquer trajecto, quer fosse para sair do Algarve, quer fosse para chegar a uma qualquer terra, especialmente do interior algarvio… Evidentemente, o estado precário das vias de comunicação algarvias era resultado de séculos de falta de investimento e de interesse pela região, esquecida pela Coroa desde os tempos áureos dos Descobrimentos. Nessa época, o Algarve ganhara protagonismo porque a via de circulação privilegiada era o mar; porém, isso em pouco contribuiu para o desenvolvimento das condições de mobilidade na região, quer na comunicação das localidades entre si e com o interior algarvio, quer na ligação ao Reino de Portugal. E a via marítima permaneceu, durante séculos, como a forma mais rápida e cómoda de sair do Algarve, ou de vir até à região. O Marquês de Pombal reconheceria a frágil condição dos acessos à serra quando na década de 70 do século XVIII empreendeu o projecto de Restauração do Reino do Algarve. Por isso, iria mandar que se arranjassem os caminhos entre as quatro léguas que separavam Monchique e Vila Nova de Portimão, para facilitar a circulação de pessoas, mas sobretudo com proveitos económicos, pois interessava que as madeiras de castanho e os frutos de Monchique pudessem mais facilmente alcançar o porto de mar de Portimão, para fins comerciais. Algumas décadas depois, nos inícios do século XIX, o Bispo D. Francisco Gomes de Avelar também se preocuparia particularmente com a falta de estradas e caminhos e com os maus passos das ribeiras. Por isso mesmo, este prelado publicaria, em 1809, as Instruções que deverão observar os inspectores na reparação das estradas, e foi realmente graças à sua acção que muitas das estradas algarvias foram melhoradas e muitas pontes das ribeiras foram construídas. Um bom exemplo pode ainda ser observado actualmente na Calçadinha de São Brás de Alportel, cuja origem remonta à época romana e que era a mais importante via de ligação de Faro ao Vale do Joio, nas faldas da serra algarvia; aí, ainda é visível parte do troço recuperado após as ordens de Avelar e cujo desenho corresponde exactamente às ilustrações que integram as referidas Instruções. Apesar destas intervenções pontuais, a que se somam outras mais, as dificuldades de circulação persistiram até à segunda metade do século XIX, altura em que o programa de obras públicas da monarquia constitucional chegou à região. A Estrada Real nº 78, antepassada da EN 125, que deveria ligar Lagos a Vila Real de Santo António, começou a construir-se me 1856, e em 1874 estaria praticamente concluída. Nos finais do século XIX inicia-se a construção daquela que viria a ser a ligação privilegiada ao Alentejo, a mítica e histórica Nacional 2, apenas concluída na centúria seguinte, e remodelada e assim designada durante o Estado Novo.
O século XX trouxe evoluções tremendas, que acompanharam o desenvolvimento dos meios de transporte. Nas primeiras décadas consolidou-se a ferrovia, que chegou a Olhão em 1904, a Tavira em 1905 e a Vila Real de Santo António em 1906 – a Lagos só chegaria em 1922. Ir ou vir do Reino de Portugal para o Reino do Algarve passou a ser mais fácil. Circular dentro da região, também. O boom do turismo ditaria as restantes evoluções, a partir da década de 60, com a inauguração do aeroporto de Faro em 1965 e o subsequente desenvolvimento da rede viária. Não nos podemos queixar, hoje, da falta de acessibilidade, e o Algarve não só já não se encontra isolado neste seu lugar ao sul, como é o destino turístico privilegiado de muitos portugueses e estrangeiros. Não significa, porém, que não existam problemas. A rede de transportes públicos de que é dotada a região é absolutamente precária. A começar, desde logo, pela ferrovia, de oferta muito limitada, cujo traçado pouco se modificou ou cresceu desde os primórdios da sua existência, e cuja renovação e electrificação têm vindo a ser sucessivamente adiadas desde há muito. A rede rodoviária de transportes, embora mais diversificada, não se apresenta como uma alternativa viável às necessidades de deslocação, nomeadamente entre localidades algarvias mais isoladas e/ou interiores. Viajar para fora da região em transportes públicos só é realmente cómodo se quisermos ir para Lisboa; na verdade – e em circunstâncias normais –, é muito mais rápido e fácil irmos de Faro a Sevilha do que tentarmos ir de Faro para Évora. As falhas flagrantes na rede de transportes regional têm reflexos negativos nas condições internas de mobilidade da população, que se vê limitada e sem alternativas. Numa altura em que tanto se fala de mobilidade sustentável, da necessidade de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, e dos efeitos nefastos da poluição para o meio ambiente, a falta de alternativas não deixa grande opção: quem se quer deslocar, tem de o fazer no seu automóvel – se tiver capacidade para ter/sustentar um –, o que, além de prejudicial ao ambiente, não raras vezes resulta numa afluência excessiva à principal estrada da região, a EN 125, conhecida como uma das de maior sinistralidade no país – situação ainda mais agravada pela cobrança de portagens na Via do Infante. Curiosamente, um diploma recentemente publicado no suplemento do DR (15/05/2020) passou praticamente despercebido na região. Aí estabelecem-se as regras de aplicação e distribuição pelas 21 CIM de 15 milhões de euros, já previstos no Orçamento de Estado para 2020, no âmbito do Programa de Apoio à Densificação e Reforço da Oferta de Transporte Público. Este programa visa "promover o reforço dos atuais serviços e a implementação de novos serviços de transporte público, regular e flexível, que resultem em ganhos em termos da acessibilidade dos territórios e das suas populações aos principais serviços e polos de emprego". À AMAL ficou atribuída a segunda maior verba, acima de um milhão de euros (1,272 ME), o que não é de espantar, visto que o critério para a distribuição dos 15 ME foi o volume de utilização automóvel nas deslocações pendulares – neste critério, só a região de Coimbra ultrapassa a do Algarve. Será este o incentivo necessário para dotar a região de melhores condições de mobilidade e de uma rede de transportes que realmente corresponda às necessidades da população residente e visitante? A História relembra-nos que, por vezes, o caminho para a evolução pode ser lento… mas é inevitável. Por Luís Coelho
A Transportadora Aérea Nacional (TAP) anunciou hoje um plano que visa aumentar de forma progressiva a sua actividade nos próximos meses. Segundo as informações que vieram a lume, a empresa considera que “(…) Em Julho, a TAP pretende retomar um total de 19 por cento do que era a sua operação normal antes da eclosão epidémica da Covid-19, atingindo um total de 247 voos por semana (…).” Até aqui tudo bem. Há apenas um pequeno pormenor que, no contexto actual, é um problema importante: a TAP exclui completamente o Algarve do seu planeamento. Por Gonçalo Duarte Gomes
A História tem tendência a repetir-se. A 6 de Junho de 1944 arrancava a Operação Overlord. Nesse dia, uma força Aliada de aproximadamente 160.000 homens, 6.000 navios e 11.600 atravessou o Canal da Mancha, numa missão potencialmente suicida: desembarcar na Normandia, ocupada pelo exército alemão. A 6 de Junho de 2020 iniciar-se-á outra operação massiva de desembarque, mas nas praias algarvias, e com uma mobilização ainda mais impressionante: a Operação Garrafão. Por Gonçalo Duarte Gomes Nestes tempos de pandemia, estamos marrecos de ouvir dizer como nada poderá voltar a ser como dantes. No entanto, no Algarve, o desconfinamento ofereceu-nos um déjà vu territorial e paisagístico dos grandes. Isto porque, desconfinadas e cheias de pica, voltam à carga, entrando novamente em fase de consulta pública, duas delicatessen turístico-imobiliárias da região: a cidade lacustre de Vilamoura (após suspensão do procedimento de avaliação de impacte ambiental (AIA) em Setembro passado) e a UP3 de hotelaria tradicional de Portimão, em João d’Arens (chumbada em sede de Declaração de Impacte Ambiental (DIA), há coisa de um ano). Estes projectos conheceram tramitações distintas. No caso da cidade lacustre, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, identificando impactos negativos sobre o ambiente... fugiu à questão, suspendendo o processo em vez de o chumbar. No caso dos hotéis em João d’Arens, houve um efectivo chumbo, por parte da mesma autoridade de AIA. Já se sabe que estes projectos, pela sua natureza meramente especulativa, são pacientes. Muitas vezes são ficheiros, referências em carteiras de investimento, não ocupando no imaginário dos seus promotores sequer uma geografia, mas antes um numerário imaginado. Ao genius loci sobrepõe-se o genius pecunia. Este seu ressurgimento funciona como um bálsamo para aliviar os medos daqueles que temiam (não muito, acredito) que, no Algarve, esta crise nos fizesse repensar o modelo económico que, quando mais precisávamos, nos deixou – de forma totalmente previsível, diga-se – de mão estendida. Calma, gente! O mal do mundo (e da região, por arrasto) não é o sistema que, pela combinação das suas variadas características (umas boas, outras más, como em tudo), nos deixa totalmente expostos em alhadas desta natureza: insustentável e voraz rapinagem dos recursos e valores naturais gerando desequilíbrios ambientais (partilhada por marxismo e capitalismo, pelo que certos moralistas sectários bem podem enfiar a viola no saco), interdependências económicas intrincadas e quase sempre mal sustentadas, dependência total de factores externos, etc.. Não, o mal do mundo era convivermos, socializarmos, beijarmo-nos, abraçarmo-nos, tocarmo-nos (uns aos outros, bem entendido), caminharmos. No fundo, o que andava a lixar o mundo era sermos humanos, sermos gente senciente. Agora que conseguimos purgar um pouco dessa peçonha nojenta que é a empatia, filtrando a vida com ecrãs, transmitindo-a em banda larga, mascarando e higienizando tudo o resto, melhorámos um pouco. E portanto podemos continuar o “business as usual”, mas em modo “clean & safe”, porque há um “seal of quality” na porta, mesmo ao lado do “english spoken”, que diz que sim. Acresce que a imersão no baptismo redentor que é a condição turística, seja ela conferida pelo paramento litúrgico da pulseira “all-included” ou pelo sacramento do “check-in” (não separe o homem o que o Visa uniu), expia todos os pecados – pessoas na praia nem pensar, turistas pode ser. Não vou aqui entrar em pormenores formais destes dois projectos, até porque já foram amplamente debatidos e, neste momento, não se alteraram em substância, sem prejuízo das questões de pormenor entretanto alteradas. Interessam, fundamentalmente, ao nível da política territorial. Para lá dos projectos considerados na sua individualidade, as decisões em sede de processos de AIA têm sempre, e cada vez mais, uma dimensão política, de gestão dos recursos e do património regional – no caso – e de construção de um projecto de futuro. Nesse quadro, e perante a dramática lição dos últimos meses, são projectos como estes que servem os interesses do Algarve? Pelas localizações em zonas sensíveis do ponto de vista biofísico que fazem adivinhar socialização de encargos apesar da privatização dos lucros, pelo seu enquadramento no contexto de alterações climáticas (não desfazendo da fé que a AMAL tem no seu festival climático – pode ser entendido como actividade política, o que é bom, como sabemos – talvez seja melhor ter um plano B), pelas tipologias desadequadas das aptidões paisagísticas, pelo modelo económico que ajudam a perpetuar, e que tão frágil e socialmente irresponsável se revelou? O Algarve tem um péssimo histórico de décadas de omissão política das entidades com responsabilidades territoriais, perfeitamente passivas perante a alienação do capital natural da região. Provavelmente não por vontade própria, mas por determinação sistémica. Quando, no ano passado, estes projectos – de formas diferentes, como se viu – foram travados (juntando-se a outras decisões similares), pareceu estar a interromper-se a condição de orfandade paisagística. Pareceu dar-se uma viragem política, afirmando (mais de uma década depois da ratificação nacional da Convenção Europeia da Paisagem!) a paisagem como conceito ecológico e operativo de gestão e como mais do que mero cenário. Num Algarve “aconselhado” por uma angústia social e económica que em muito é ampliada pela quase exclusiva aposta em iniciativas como estas, vamos agora poder testar essa teoria. Entretanto, participe nas consultas públicas disponíveis no portal partipa.pt, através dos respectivos links:
Loteamento da UP3 de Portimão Loteamento da Cidade Lacustre, Vilamoura Por Gonçalo Duarte Gomes Há dias, e a reboque de uma tragédia que teve tanto de abominável quanto de anunciada, surgiu, qual profeta, um novo herói para povoar o imaginário nacional das bizarrias: o homem-couve. No âmbito de uma coisa a que a CMTV insiste chamar reportagem, um imberbe ardina plantado à porta do local de um brutal infanticídio, estende, por entre badaladas de sino semelhantes ao que os elefantes tocavam no Jardim Zoológico de Lisboa a troco de alcagoitas, e com excitação a raiar o orgasmo precoce, o inconfundível microfone vermelho para fora do enquadramento, prometendo o testemunho de um morador que conhece o senhorio da família. Eis senão quando surge um indivíduo, de óculos escuros e, em estrito cumprimento das (des)orientações da Direcção-Geral de Saúde, máscara no rosto. Mas não uma máscara qualquer. Uma imponente, viçosa – quase gulosa – folha de couve, messiânica, capaz de figurar, imortalizada, em qualquer baixela da colecção Bordallo-Pinheiro. Verifica-se então que não é afinal um morador, mas que efectivamente é um tipo que às vezes vem visitar um fulano seu amigo que alugou (os amigos alugam sempre, nunca arrendam) a casa ao pai e madrasta da criança, confessos homicidas. E o que sabia ele daquela família? Nada. Comme il faut, obviamente. E, afinal, o que interessa isso? Rémi Gaillard, famoso e infame humorista francês, explica: c'est en faisant n'importe quoi qu'on devient n'importe qui. Numa tradução pessoal, direi que será qualquer coisa como “é fazendo não interessa o quê, que nos tornamos não interessa quem”. Interessa é ser alguém, nem que por breves minutos. De caminho, o serviço público de dar a conhecer ao mundo o homem-couve... estava feito. Pouco mais de minuto e meio de brilhante nulidade jornalística bastou para, com uma cheia mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, inscrevermos um novo Encoberto (seria este o prometido por Gonçalo Annes Bandarra?) nas nossas mentes e, arrisco dizer, corações.
Mas o que torna o homem-couve tão especial? Pelo anonimato, é qualquer um. É, pelo nada que sabe do tema, um qualquer. Será o seu carácter genérico a feromona intelectual que o transforma neste “guilty pleasure” icónico? Por poder ser todos nós? O gajo da tasca, o taxista que diz que as leis são como as meninas virgens – para ser violadas –, o tipo que sabe que a culpa é sempre "deles", o vivaço que acha que são todos iguais mas não diz o nome de nenhum, porque como somos todos iguais mas às vezes uns são mais iguais do que outros, convém deixar aberta a porta para passar de uns a outros. Sente-se nele, novamente, o pulsar de Raphael Bordallo-Pinheiro, já não pela faiança, mas pelo latente potencial de manguito (toma!) do Zé Povinho. Será porque o homem-couve é eco? A sua máscara é, realmente, verde. A sua máscara é biodegradável. A sua máscara é caldo-verde, é bacalhau com todos, é cozido à portuguesa. É protecção e sustento. E é também, por afinidade familiar crucífera, nabo. Residirá na sustentabilidade do homem-couve o seu segredo? Ou será porque o homem-couve é, simultaneamente, Batatinha e companhia? Será porque é o palhaço que faz um teatrinho para animar mas é também o arrumador que a todos mete dentro da tenda do circo mediático? Talvez, até porque dentro da tenda da CMTV cabe o circo de um Portugal inteiro. Mirar aquela epifania vegetal, pespegada no oculto frontispício do afinal transeunte, foi como encarar um abismo existencial. E tal como Nietzsche alertou, quando olhamos prolongadamente para o abismo... o abismo olha-nos de volta. No caso, com uma folha de couve na cara. A CMTV não é uma latrina noticiosa ou um bordel jornalístico, ao contrário do que muita gente diz. É só um espelho. Do nível para o qual a nossa sociedade foi conduzida e se deixou alegremente conduzir. Darwin explica. Ao observar os tentilhões (parece que não são bem, mas não quero aqui entrar em preciosismos taxonómicos) das Galápagos, o mais famoso naturalista da História – pobre Humboldt – observou como os bicos destas aves apresentavam uma grande variabilidade, consoante diferentes grupos se adaptaram, ao longo do tempo, a especializações nutricionais. Cada alimento, seu bico, no fundo. Na selva jornalística, a coisa dá-se ao contrário. O jornalismo é “bicado” por essa grande passarada que somos nós, o público. Vai daí, neste tão contranatura caso, é o alimento que se adapta ao bico. O Correio da Manhã – precursor da CMTV e sua contraparte em papel ensopado em sangue – foi na verdade pioneiro, visionário mesmo. Topando à distância a crescente e inexorável perda de dentes da opinião pública e da massa crítica nacional, rapidamente evoluiu para uma papinha mole, fácil de mastigar, com pouca estrutura ou substância, que pouco informa mas muito entretém, que enche o olho e bate em cheio no reptiliano do nosso cérebro, saciando macabros, sádicos e inconfessáveis apetites básicos. Passou de mediático a puramente mediatizado. E inegavelmente vingou. Ao ponto de fazer escola e, lenta mas seguramente, arrastar para junto de si todos os outros – pelo menos os que queiram sobreviver sem dificuldades. Novamente ao contrário de certas teorias, este jornalismo dito de sarjeta não é predatório, nem se alimenta de nada nem de ninguém. É alimentado à boca. Assim, transformado em mero negócio e prostituição, expurgado de quaisquer valores que não os pecuniários e com o aval de uma suposta Entidade Reguladora para a Comunicação Social (a mesma que permite que órgãos de comunicação social como o Postal do Algarve façam, aqui na região, exactamente a mesma coisa ou às vezes ainda pior), o jornalismo definha enquanto o entretenimento vinga. E nós aceitamos, com tudo o resto que isso implica em termos de cultura e democracia, e com reflexos claros em períodos de crise como esta, em que, mais do nunca, precisamos de ser inquietados em vez de amedrontados e informados em vez de entretidos (períodos em que, a propósito, injectámos 850.000.000 de euros no Novo Banco, sem folhas de alface a cobrir quaisquer vergonhas, como tão bem explica Pacheco Pereira aqui)… Questionar-se-á, com propriedade: foi esta a mais grave falta jornalística a que se assitiu em Portugal? Não, nem de perto nem de longe! Mas, caramba, esta tinha um homem-couve... Por Andreia FidalgoNão deixa de ser algo irónico que o dia 13 de Maio, que trouxe ao mundo o Marquês de Pombal, em 1699, adquirisse um simbolismo tão particular a partir de 1917: foi precisamente o dia em que a Nossa Senhora apareceu pela primeira vez aos pastorinhos Lúcia, Francisco e Jacinta, na Cova da Iria, em Fátima. Não que ao Marquês, falecido há mais de um século, tivesse feito grande diferença… mas, decerto que foi um golpe bem duro para aqueles republicanos que bem poucos anos antes aproveitaram a sua imagem política para fazer propaganda anticlerical e anticatólica, e que assistiram, em 1917, ao restauro do fervor religioso no país. Certamente que existe espaço, no dia 13 de Maio, para celebrar Fátima - ainda que, este ano, só mesmo espiritualmente - e para relembrar o Marquês de Pombal. Sobre o primeiro assunto não me atrevo a escrever, mas posso recomendar a leitura do magnífico ensaio histórico de Rui Ramos publicado no Observador por ocasião do centenário de Fátima, em 2017, sob o título “Fátima, cem anos de uma história mal contada”. Pela minha pena, será o Marquês de Pombal a merecer hoje o destaque. Já em várias ocasiões abordei aqui, no Lugar ao Sul, uma das mais importantes linhas temáticas da minha tese de doutoramento em curso: o projecto de Restauração do Reino do Algarve desenhado pelo Marquês de Pombal para a região, nas décadas de 60 e 70 do século XVIII. Na sequência das políticas económicas pombalinas, que visaram retirar o país da crise económica em que mergulhara, o Reino do Algarve foi alvo de um plano de reformas económicas que teve em vista a recuperação das suas potencialidades agrícolas, o aproveitamento das suas abundantes pescarias e o incremento das actividades comerciais. Simultaneamente, o território algarvio sofreu uma reorganização administrativa que deixou marcas até aos dias de hoje, com a criação de novos concelhos como o de Lagoa e o de Monchique, em 1773. Porém, não há dúvida de que a herança mais visível da acção do Marquês de Pombal no Algarve se encontra espelhada na edificação ex-nihilo de Vila Real de Santo António, em resultado de uma estratégia política e económica que visava aproveitar as abundantes e ricas pescarias do sotavento algarvio. Desde os inícios do século XVIII que se havia instalado na praia de Monte Gordo uma numerosa comunidade de pescadores oriundos da Catalunha, atraídos pela abundância de sardinha. Esta comunidade desenvolveu, no decurso dessa centúria, uma lucrativa actividade que beneficiou do aumento significativo do número de xávegas – artes piscatórias de arrasto destinadas à captura da sardinha – aliadas à introdução de técnicas eficazes de conservação do pescado, que permitiam aumentar e rentabilizar o negócio através da exportação. Na década de 60 de Setecentos, Monte Gordo não seria mais do que uma pequena povoação com uma igreja, umas poucas casas de pedra e cal e, sobretudo, muitas cabanas e telheiros debaixo dos quais se fazia a beneficiação da sardinha. Mas, muito para lá da aparência modesta, ali se encontrava um verdadeiro “tesouro oculto”, de acordo com os relatórios que chegaram ao Marquês de Pombal: um “tesouro”, porque constituía uma actividade altamente lucrativa… “oculto”, porque os lucros escapavam por completo ao controlo fiscal das autoridades locais e, consequentemente, aos cofres da Coroa. Para obviar esta situação, Pombal tomaria várias medidas legislativas que resultaram numa autêntica “guerrilha das pescarias” com o vizinho Reino de Espanha. O corolário das intervenções pombalinas ocorreria a 17 de Dezembro de 1773, data em que foi decretada a edificação de uma nova vila que teria em vista substituir as instalações de Monte Gordo. O local não poderia ser essa praia, dada a instabilidade do areal e a força destruidora e imprevisível do mar. Foi então escolhido o sítio do Barranco, na margem direita do Guadiana, no termo da antiga vila de Santo António de Arenilha, onde já se assegurava uma forte presença militar. Aprovada a localização, uma carta régia de 30 de Dezembro de 1773 incumbiu o Governador do Algarve da construção de uma vila regular, com arruamentos dispostos em linha recta, onde se acomodassem todas os edifícios com funções civis e industriais: “nele fareis delinear a dita Vila reedificada com uma competente Praça; na qual a Igreja; a Casa de Câmara; e o Terreiro do Pão tenham o Primeiro lugar sem lhe faltar comodidade para se fazer um amplo Mercado (…). Tomando a mesma Praça por centro, mandareis reproduzir dela em linhas rectas as Ruas necessárias para se formarem as Casas, Telheiros, Lagares e Armazéns das Pescarias”. Desta carta régia, aliada ao local escolhido para edificação da vila, sobressaem três aspectos absolutamente essenciais: a estratégia política do local escolhido para a edificação; a configuração singular do urbanismo da nova vila; e a sua vocação industrial. ![]() Quanto ao local, a vila foi edificada na linha fronteira, na margem direita do Guadiana, voltada para a vizinha Espanha, numa mensagem clara de afirmação do poder político da Coroa Portuguesa. É, acima de tudo, a afirmação do poder perante o Reino vizinho, pois o objectivo último era o de retirar aos espanhóis o controlo e os lucros obtidos pela exploração do pescado em Monte Gordo, redireccionando-os para o erário público nacional. Foi, portanto, uma estratégia de afirmação do controlo do Estado português: doravante, ficaria inviabilizado o contrabando de peixe fresco e todo o pescado passaria por um apertado controlo alfandegário. No que toca à configuração singular do urbanismo, em Janeiro de 1774 chega ao Algarve a primeira planta da futura vila, enviada pelo Marquês de Pombal e concebida pela Casa do Risco das Obras Públicas – a mesma Casa do Risco criada em 1755 para fazer face à urgente construção da capital após o terramoto, e através da qual se desenvolveu o estilo pombalino da baixa lisboeta, o mesmo que iria marcar Vila Real de Santo António. Tratando-se de uma vila edificada de raiz, constituiu a oportunidade perfeita para unir urbanismo e ideologia política. A planta enviada pela Corte representava uma vila rectangular orientada em função do Guadiana: na frente ribeirinha, voltada para Espanha, a Alfândega ladeada pelas Sociedades de Pescarias; no centro, uma praça em quadrado perfeito, formada pelos edifícios das Casas de Câmara e Cadeia, do Corpo da Guarda e da Igreja, e a partir da qual derivavam arruamentos regulares em ângulos rectos onde se localizariam as habitações térreas dos pescadores. Uma vila desenhada segundo os princípios de ordem e racionalidade característicos do Iluminismo. Por fim, trata-se de uma autêntica vila-fábrica: as Sociedades de Pescarias e os armazéns localizados na rua traseira espelhavam a vocação industrial da vila, de transformação e armazenamento do pescado para exportação. As técnicas de salga e conservação da sardinha, desenvolvidas nos telheiros da praia de Monte Gordo e que haviam subsistido como herança dos armadores catalães, foram transferidas para estes novos edifícios com condições materiais mais condignas. Doravante, todo o pescado, especialmente a sardinha, era transportado até ao porto comercial da nova vila, verificado pelos funcionários alfandegários e redireccionado para as sociedades pesqueiras. Aí, a sardinha entrava pelo portão principal, passava por um controlo interno e era transportada para a traseira dos edifícios, composta por um telheiro em forma de U, onde era amanhada, salgada e acondicionada em barricas; estas eram posteriormente depositadas nos armazéns das Sociedades, no lado oposto da rua traseira, onde ficariam a aguardar comercialização. A primeira pedra da nova vila foi lançada a 17 de Março de 1774, dando desde logo início à construção dos edifícios mais emblemáticos: a Alfândega, que desempenha o papel fundamental de registo e controlo do pescado; o Quartel e a Casa de Câmara e Cadeia, destinados às autoridades civis e militares; e as Sociedades de Pescarias, fundamentais para a função industrial da vila. Até a toponímia escolhida para os arruamentos foi pensada ao pormenor, estabelecendo a hierarquização das principais figuras da Família Real Portuguesa, que por essa via apadrinhava, simbolicamente, a fundação. Além disso, formando uma espécie de barreira espiritual em torno da vila, as ruas situadas nos extremos oeste, norte e sul designavam-se por Rua Real de São José, Rua de São Sebastião e Rua de Santo António, respectivamente, invocando os patronímicos de D. José I, de Sebastião José de Carvalho e Melo e o topónimo da antiga vila de Arenilha, Santo António. Não deixa de ser curioso, porém, que numa versão inicial da toponímia que não se chegou a implementar, o próprio Marquês de Pombal se tivesse feito representar de forma mais evidente, em alternativa a alguns membros da Família Real, através de arruamentos designados do Marquês e da Marquesa. Ainda que não se tivessem implementado, a presença simbólica do Marquês ganhou destaque por outra via, no dia de inauguração da vila, em 1776: ocorreu precisamente a 13 de Maio, dia de aniversário do Marquês de Pombal. Os tempos que se seguiram não seriam favoráveis a Pombal: a 24 de Fevereiro de 1777, quando morre D. José, é imediatamente afastado do poder político. O reinado de D. Maria I daria início à Viradeira, que se traduziu na inversão das anteriores políticas pombalinas. O Marquês, sempre controverso na sua acção política, virou persona non grata e foi assim que terminou os seus dias, falecendo a 8 de Maio de 1782. O decurso do tempo viria, porém, a restituir-lhe a devida importância histórica, e a sua figura política viria mesmo a ser sucessivamente enaltecida e aproveitada por liberais e por republicanos.
Em Vila Real de Santo António, que hoje, 13 de Maio, comemora o seu feriado municipal, o legado do Marquês de Pombal encontra-se bastante vivo. Mas, ainda que seja aí que se espelha a face mais visível da acção pombalina no Algarve, seria redutor cingir a herança de Pombal a essa cidade. Através do projecto de Restauração do Reino do Algarve, Pombal marcou de forma indelével a história de toda a região algarvia, percebendo o seu imenso potencial e colocando-a entre as prioridades da agenda política. Algo que, nos dias de hoje, tarda sempre em acontecer… Por Nuno Beja (convidado) No Dia da Europa o Lugar ao Sul recebe um convidado especial com um texto inspirador sobre os tempos em que vivemos e sobre o futuro. Convidei o Nuno Beja a publicar este texto que é também sobre a condição humana. Boas leituras. (Bruno Inácio) Sobre o Nuno Beja, na primeira pessoa "Sou um moço que veio de Coimbra para os confins do reino (sim, para a malta lá de cima, "os Algarves", na altura dos noventas, eram muito, muito longe!) e estive a trabalhar como arqueólogo na Ualg e no Museu Municipal de Faro durante uns bons anos, até que a paixão pelas coisas das artes, mais concretamente do cinema (que me levou a integrar durante uns anos o Mítico! Cineclube de Faro) da música, do teatro, e o pilar disto tudo, a cultura na educação, falaram muito alto e levaram-me a deixar os "cacos" e a integrar a equipa da Divisão de Cultura da CM Faro onde adoro estar e trabalhar." O texto de Nuno Beja O que é o tempo? Um mistério: é imaterial e omnipotente. É uma condição do mundo exterior; é um movimento ligado e mesclado à existência dos corpos no espaço e à sua marcha. Mas deixaria de haver tempo se não houvesse movimento? Não haveria movimento sem o tempo? É inútil perguntar. Olhou o relógio de ouro, com tampa de mola e monograma, que, nessa solidão desolada, continuava a tiquetaquear, viva e lentamente, semelhante ao seu coração, o comovente coração humano a pulsar no calor orgânico do tórax... Thomas Mann, “A Montanha Mágica” Sonhar o sonho impossível, Sofrer a angústia implacável, Pisar onde os bravos não ousam, Reparar o mal irreparável, Amar um amor casto à distância, Enfrentar o inimigo invencível, Tentar quando as forças se esvaem, Alcançar a estrela inatingível: Essa é a minha busca. Miguel de Cervantes, “D. Quixote de La Mancha” Coragem, Esperança, Beleza e Liberdade! Voltámos a abraçar-nos! Timidamente, mas já nos conseguimos abraçar. Lembram-se? lembram-se daquele tempo, daquele ano de 2020 em que o outro era sinal de perigo? Em que todos os nossos alarmes de medo nos invadiam? O medo…Sim, pela primeira vez na vida tivemos medo. Medo por nós, pelos nossos filhos, pelos nossos pais, pelos nossos amigos, pelos nossos colegas de trabalho, pelos nossos vizinhos, pelas pessoas que víamos todos os dias no café, na mercearia, no quiosque, na rua… Nunca na vida tínhamos pensado estar em casa três meses seguidos! Sair para ir ao supermercado era de uma angústia quase sufocante, como se nos faltasse o ar ao entrar numa casa sem janelas nem portas! E as outras pessoas…fugir delas como se fossem a própria encarnação do mal. Sim…nunca mais fomos os mesmos, nunca mais a vida foi a mesma. A Europa, melhor, a União Europeia não é a mesma. Ficámos, naquele ano, novamente divididos entre os que estavam no olho do furacão e os outros que se fechavam, erguendo muralhas de palha contra um inimigo invisível. Não foi o nosso melhor momento. Mas que raios! Ainda assim a nossa União foi o melhor que conseguimos fazer em tantos séculos de desunião de nações, impérios hegemónicos e guerras inúteis. Ainda é! a nossa União continua, com algumas fissuras, mas cá continuamos juntos, com muitos a pensar e a agir como se fôssemos todos um só; e somos! Com as nossas identidades, histórias pesadas e outras não tão pesadas, com linguagens diferentes mas únicas na sua riqueza, com os nossos medos, singulares e agora comuns. É verdade! Foi muito difícil. As economias foram depauperadas, o desemprego abundava e subiram aos pódios aqueles que muito vociferavam contra a democracia e a solidariedade e que gostavam de acabar com a nossa União. Não conseguiram! Estamos em nossa casa, juntos, mais unidos que nunca, a cuidar de todos os que ficaram destruídos na luta. Nesta nossa casa, gostávamos que a nossa relação com a Natureza não fosse a mesma que até então tinha sido; já estava a mudar, mas, apesar de ainda termos um longo caminho pela frente, a nossa interação Humano/Natureza não mais será igual; assim como o olhar e a relação com o outro, que é diferente, que não conhecemos; queremos mesmo saber, pensar, quem é, quem são? É o nosso dever, é a nossa condição de seres humanos a viver na mesma casa. Fomos corajosos! Fomos tão corajosos a lutar diariamente contra o mal; fomos tantos a bater à porta de quem estava sozinho, desamparado, a perguntar, a saber a confortar. Foram tantos os que deram a sua vida para que outros vivessem. O que nos resta quando o medo do mal nos invade? O que fica quando um medo até então desconhecido, inconcebível e palpável se torna parte permanente das nossas vidas? O que temos quando a ignorância e a estupidez nos tentam dominar? A esperança e a beleza. Tantos dos nossos artistas, mulheres e homens da cultura estiveram, desde o início, na primeira linha de combate contra a desunião, o desânimo, a depressão, a desesperança. Uma luta sem quartel, levando no estandarte os símbolos da imaginação e da poesia. O mundo mudou. Não mais foi o mesmo. E o que é agora foi fruto das escolhas que então fizemos. Tínhamos, então, ao nosso alcance, dois caminhos que podíamos escolher para o futuro das nossas sociedades: um caminho de desunião onde a vigilância permanente de todos os cidadãos e o seu controlo por meios virtuais se tornaria permanente mesmo após a emergência, levando a totalitarismos; e outro onde a democracia, a formação e informação de todos os cidadãos, tornando-os ativos na defesa de uma sociedade de partilha, de valores, ética e solidariedade, fossem condições essenciais para o futuro. Graças à cultura é às artes, escolhemos o segundo. O mundo mudou. Nós mudámos. Mas trouxemos connosco a coragem, a esperança, e a beleza. Lembram-se? “Hoje o nosso tempo requer leveza, humor, encantamento e poesia. Não é mais a luta do bem contra o mal, representada por Guerra nas Estrelas, mas a utopia da vida bela. Descobrir o instante de beleza que a poesia nos dá, a inspiração que nos lembra que estamos na vida não só para trabalhar, lutar, brigar, mas também para amar, sorrir, dançar, abraçar, sonhar. Vivemos um tempo em que o mais revolucionário é ser poeta.” Marta Porto, “Imaginação. Reinventando a Cultura”. Nuno Beja
Por Gonçalo Duarte Gomes
No passado dia 5 de Maio comemorou-se o primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa. Como sempre acontece nestas alturas, em que alguém lá fora diz que alguma coisa cá dentro é muito importante, solta-se a franga da euforia lusa. No caso, foi a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) que oficializou a data, reconhecendo a sua relevância global, por força do papel que desempenha no estabelecimento de laços multiculturais entre vários pontos da geografia planetária, enquanto herança da nossa diáspora. Sendo nós mais de aparências do que de substância, e porque o que interessa é a festa, nada melhor que uma efeméride para celebrar a mesmíssima Língua que depois se abastarda, se prostitui, se trunca e simplifica sem outro objectivo que não o de baixar a exigência, que se tenta ideologicamente amalgamar numa açorda ortográfica (quanto a isso, e a título de curiosidade, vale a pena ler aqui) e que se permite que seja tratada ao pontapé, ao ponto de permitir que tanta e tanta gente continue por aí a achar que lambemos é o mesmo que lambe-mos... Mas nem só da Língua se faz a expressão de Portugal. A identidade nacional cumpre-se também nas nossas paisagens. Que, sem nada dizer, falam connosco, e por vezes de forma tão directa e profunda, que as palavras deixam de ter lugar. O que dirão as paisagens em tempos de pandemia? Eu não quero regressar, quero é avançar!Por Anabela AfonsoFecho hoje o ciclo de notas diárias neste período de quarentena. A partir de hoje voltarei ao habitual ritmo de escrita do Lugar ao Sul. Quarenta dias depois de me ter colocado o desafio de escrever diariamente durante estes dias de confinamento. |
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