Por Gonçalo Duarte Gomes Há precisamente uma semana, falava (aqui) da possibilidade de uma revolta dos esquecidos. Umas eleições presidenciais volvidas, verificou-se que em vez de insurreição, houve apenas um protesto dos esquecidos. Para evitar desde já o costumeiro discurso de ódio ou os axiomas de superioridade moral, apresento uma declaração de interesses: votei em branco nestas eleições, após ter votado em Marcelo Rebelo de Sousa há 5 anos. Optei pelo voto consciente – não me vendo representado em nenhum dos candidatos – em vez do útil – a proverbial escolha do mal menor – tema que, ainda assim confesso, me suscita sempre grande debate interno. Marcelo Rebelo de Sousa, conforme esperado, ganhou inequivocamente, à primeira volta, e com reforço de votação (venceu em todos os concelhos do País), as eleições presidenciais. A vitória da personificação da moderação – muitas vezes para lá do aceitável – e do bloco central representa, acima de qualquer dúvida, o prevalecer da normalidade democrática. Mais ainda quando, em segundo lugar, ficou uma candidata cujo lastro político é o de um envolvimento profundo nas dinâmicas e representações partidárias de uma estrutura responsável por cerca de 70% do tempo de governação em democracia. Ambos os candidatos agregaram praticamente ¾ dos votos depositados em urna, demonstrando a solidez do status quo político. Não fosse a brutal abstenção, poder-se-ia assim dizer que o nosso sistema político está de muito boa saúde. Mas nem é esse pequeno grande pormenor (que nesta eleição teve várias condicionantes extraordinárias) o que concentra as análises desta ressaca eleitoral. André Ventura, candidato populista, terceiro classificado na geral, ficou em segundo lugar em 11 (ou 12) dos 18 distritos nacionais, sendo Faro um deles. Veja-se este mapa ilustrativo da votação de André Ventura no território continental: Agora vejam-se estes dois mapas, constantes do Programa Nacional da Política do Ordenamento do Território (PNPOT, aprovado pela Lei n.º 99/2019, de 5 de Setembro): Para melhor clarificação, as vulnerabilidades ilustradas no mapa da esquerda prendem-se maioritariamente com desemprego, envelhecimento, precariedade social e dependência, enquanto que os serviços de interesse geral, à direita, são as actividades, comerciais ou não, sujeitas a obrigações específicas de serviço público e/ou de soberania (serviços de saúde, escolaridade obrigatória, serviços de emprego e formação, habitação social, infantários, cuidados de longa duração, serviços de assistência social, transportes públicos, segurança, justiça, energia, comunicações, etc.). Os serviços mínimos da dignidade, se quisermos. Naturalmente, a realidade do País não se esgota nestes dois mapas (que não reflectem ainda as dramáticas realidades introduzidas pela pandemia), e muitos outros se poderiam acrescentar. Mas todos revelarão mais ou menos as mesmas assimetrias e o défice de coesão territorial de Portugal, que se reflecte na sua população. Podemos acreditar muito em coincidências. Ou podemos, perante factos que nos suscitam preocupação, tentar encontrar as suas causas, em vez de nos entretermos a maldizer a espuma dos sintomas. O crescimento do populismo, que encontra nestas eleições uma expressão democrática significativa, aparenta ser uma forma de comunicação às oligarquias por parte das bases, dos esquecidos, dos que estão nos extremos errados das assimetrias, desesperados que estão perante o falhanço de todos os outros canais e o ensurdecedor silêncio em resposta aos seus problemas, a par da total degradação ética do regime. O status quo é livre de fazer o que faz melhor, desvalorizando tal facto, menorizando os votantes de que discorda, de os apelidar de estúpidos, fascistas, ignorantes, tudo e mais alguma coisa – incluindo sugerir, num espírito profundamente democrático, que nem todos deveriam poder votar, quase ao estilo das centúrias eleitorais romanas. Ou pode optar por experimentar algo diferente, e escutar.
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Por Gonçalo Duarte Gomes Por mera coincidência, ou talvez para assinalar o regressos dos Estados Unidos ao Acordo de Paris, que ontem comentava (aqui), e aproveitar o alívio do ambiente na sala de estar mundial que tal gerou, Faro anunciou uma campanha de plantação de árvores na capital. De acordo com informação disponível nos canais municipais, avançou para já um singelo coqueiral (uma dúzia de exemplares da espécie Syagrus romanzoffiana, originária da América do Sul), ao longo da Avenida Calouste Gulbenkian, integrado numa estratégia de sustentabilidade. Que diz que é verde. Não querendo desfazer, é caso para dizer, surripiando o recente bordão publicitário de uma cadeia de supermercados, que quando só se fala da cor, até o verde perde o sabor. Faro tem um significativo défice de jardins. Tem também um défice de presença de árvores na cidade, e as que existem, volta e meia, são alvo das tradicionais podas (alguns defendem que escritas com ph) camarárias, que de árvores apenas deixam raquíticas caricaturas. Mas, acima de tudo isso, tem um défice de estrutura verde, ou seja, mais do que peças soltas, tem falta de um puzzle coerente de espaços naturalizados e elementos isolados, em que o todo faça um sentido maior do que a mera soma das suas partes e, principalmente, cumpra as suas funções de amenidade, descompressão urbana e regulação ecológica, bem como de organização biofísica. Esta coerência estrutural não se obtém por apenas plantar árvores de forma indiscriminada. Muito menos sem ligar às espécies que se plantam. Mais árvores será, por regra geral, um bom princípio, mas é preciso mais. É necessário que estas se integrem num contexto mais profundo, de significância ecológica e também identitária da cidade. É inescapável que o Algarve das aparências é ainda dominado por um vincado tropicalismo de fachada, misturado com um palmar imaginário magrebino setentrional, que habita muitas mentes, e que aponta ao reptiliano de um tipo de turismo ao qual os estivais gelados podem ser servidos até na testa, desde que acompanhados pelo reconfortante e patusco selo do “very typical”. “Tropicalgarve” com um tarbush, por assim dizer. Mas, com tanto discurso sobre ambiente, ecologia, identidade, adequação dos elencos vegetais à flora autóctone e/ou altamente adaptada, seria um coqueiral a prioridade para o reforço das árvores em Faro? A pergunta é despojada de qualquer dramatismo – hoje em dia parece difícil, mas podemos falar e discordar, sem ser aos gritos ou com sete pedras na mão – pois em termos globais, este coqueiral por si só e a dúzia de novas árvores residentes que traz, é como o Melhoral, não faz bem nem mal. E não é que as espécies exóticas não tenham lugar nos nossos jardins – muito pelo contrário, tal insere-se numa longa tradição, decorrente até do nosso histórico deambular pelo Mundo que continuamente aportou um fluxo de novidades e extravagâncias, que fomos incorporando. No caso, e por se tratar de um eixo viário principal, remotamente até se pode compreender uma intenção de vincar alguma verticalidade (não se podendo dizer o mesmo na rotunda). Além de que – espera-se – outras plantações deverão seguir-se, com – espera-se – outras espécies, menos exóticas. Mas reforçar a identificação do espaço público de Faro com outras latitudes e longitudes, que não a sua, parece distanciar a cidade de si própria e da região, quando tem outras opções ao seu dispor. Ou, pelo contrário, talvez a aproxime mais da sua essência, com o que isso implica, na velha máxima de que “Faro é Faro”. De qualquer forma, já que os jerivás aí estão, ao menos venham também os tucanos, tapires e saguins. Sempre completam a animação. Por Gonçalo Duarte Gomes O recente empossamento do novo Presidente dos Estados Unidos da América representa um sinal de esperança para o Mundo, a vários níveis. Um sentimento que muito deve à fantástica declamação de Amanda Gorman, num grande momento poético e cénico. Como que para calar as vozes que questionam a sua genica, Biden lançou-se de imediato num enérgico afã presidencial, lançando mãos à obra de tentar rectificar algumas orientações adoptadas pelo seu antecessor e de conseguir trilhar novos rumos, que conduzam a respostas não apenas às questões mais óbvias, mas também às mais profundas, que lançam as sombras sob as quais engrossam as hostes dos esquecidos, longe das agendas ideológicas da moda. Uma das suas decisões mais significativas para os restantes condóminos planetários, foi a determinação do regresso, com efeito a partir de meados de Fevereiro deste ano, dos Estados Unidos ao Acordo de Paris, relativo às Alterações Climáticas, de onde este país se havia oficialmente retirado em Novembro de 2019. Não é tanto que a aplicação do Acordo esteja a correr muito bem ou que seja uma ferramenta milagrosa, mas uma das maiores economias mundiais voltar a assumir compromissos para com as metas estabelecidas e, mais importante ainda, para com a inescapável realidade de que é preciso adaptar a acção humana e mitigar os seus efeitos de ampliação sobre os padrões de variabilidade climática e intensidade dos seus fenómenos extremos, é uma boa notícia. Cá no reino não deixámos de assinalar a coisa. Imagino agora a festa que faremos, no dia em que decidirmos, nós próprios, fazer algo quanto a este tema. Porque embora nunca tenhamos abandonado o Acordo, a verdade é que Portugal está nestes pactos internacionais como os sobrinhos estão nas visitas à casa da tia-avó Cremilde: de corpo presente, porque têm que estar e, com sorte, ainda pinga uma notinha no fim, mesmo que para isso tenham que ceder a bochecha para aquele apertão bom. Assim, assinamos tudo, mas depois cumprir com o que dizem os papéis… está quieto.
Cumprir neste caso é, basicamente, adaptarmo-nos, já que este nosso canto, para lá da intrínseca responsabilidade individual e colectiva que a cada um compete, tem uma expressão reduzida ao nível das emissões que se encontram na base do fenómeno. Resta-nos assim abraçar, o melhor que pudermos, este nosso papel de “figuração” na contemporânea luta de classes climáticas. E, dentro deste jardim à beira-mar plantado, o Algarve é um caso ainda mais particular. Sendo a região portuguesa em que mais se faz sentir a influência mediterrânica, é também aquela em que, fruto desse mesmo contexto, existe uma maior exposição aos riscos decorrentes de fenómenos climáticos, ampliados por alterações de padrões já de si marcados por incerteza e violência. Junte-se a isso um modelo paisagístico de ocupação e de exploração dos recursos que optou por ignorar os limites decorrentes dessa condição genética, e o cenário é delicado. À cabeça desta vulnerabilidade encontra-se a temática dos recursos hídricos, tradicionalmente pelos períodos de seca – como aquele que até há pouquíssimo tempo atravessámos e do qual, embora ainda não completamente safos, já não nos lembramos porque entretanto caíram umas pingas – e pela sobrecarga de consumo que sobre eles fazemos incidir, mas também pelas cheias que ocorrem aquando das típicas precipitações torrenciais, referindo apenas os aspectos mais imediatos. Mas depois temos muitos outros factores de exposição, como a concentração da ocupação humana no litoral, incluindo em ilhas-barreira móveis, a artificialização de áreas sensíveis do ponto de vista biofísico (como a rede hidrográfica) ou o despovoamento das paisagens serranas e a progressão da acumulação descontrolada de combustíveis que propicia a progressão de grandes incêndios. Porque a região também visita a tia Cremilde, até já investiu uma pipa de massa num Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve. Que depois ignora paulatinamente, como bem demonstra a obsessão de boa parte dos decisores regionais com uma nova barragem quando se fala de água, embora o Plano demonstre como essa solução é a que representa a menor eficácia, com maiores investimentos (construção e manutenção) para resultados mais tardios e fortes externalidades negativas associadas. Na ressaca da actual pandemia, a devastação económica e social será tremenda no Algarve. Todo o actual discurso prospectivo de recuperação se desenvolve em torno da continuação e até intensificação dos erros estratégicos que conduziram a região à actual fragilidade e dependência, revelando que a tão falada mudança de paradigma e estruturação do Algarve para enfrentar os desafios futuros num contexto climático em mutação acelerada enfrenta sérios riscos de atropelamento pela “urgência” (nunca há tempo para pensar). Por outro lado, é certo que nada muda da noite para o dia. E que a natureza globalizada das dinâmicas económicas, a par da própria escala da região, não permite imaginar rumos que levem a novos modelos paisagísticos e de actividade, que permitam uma resolução de base ecológica para os desafios económicos, sem uma integração em contextos mais amplos. Aqui, o Pacto Verde Europeu representará uma oportunidade única, principalmente através do Mecanismo e Fundo de Transição Justa. Ou então apenas mais uma oportunidade perdida. Enquanto não temos vitórias efectivas para comemorar, celebremos então a vitória moral que é o regresso dos EUA à mesa global de Paris. .Por Andreia Fidalgo Quando em Março de 2020 fomos assolados pela pandemia, e pouco se sabia ainda sobre a Covid-19, o clima generalizado foi de medo. Medo da doença, medo dos seus efeitos ainda desconhecidos, medo pela nossa saúde, medo pela saúde do próximo. Isso levou-nos a confinar quase sem que nos fosse pedido, pois assaltava-nos o medo de ver acontecer em Portugal o mesmo que as imagens nos telejornais nos mostravam que estava a acontecer em Itália: hospitais a rebentar pelas costuras, profissionais de saúde em total situação de desgaste físico e psicológico, a verem-se na posição de ter de escolher que doentes tratar, pois não era possível tratar todos… e mortes, muitas mortes a lamentar. Assistimos atentamente ao crescimento do número de infectados e do número de mortos. Em Portugal, em Espanha, em França, em Inglaterra… em toda a Europa, em todo o mundo. Tínhamos medo que fossemos nós, que fosse alguém da nossa família, que fosse algum amigo. Tivemos medo, muito medo. Depois do medo, veio a indiferença. Muito sorrateiramente, foi-se instalando. Proliferaram as fake news, os negacionistas, o movimento dos “médicos pela verdade” – que depois, foi-se a ver, e de médicos tinham pouco ou nada.
Afinal a Covid-19 não mata assim tanta gente. Afinal, se estivermos saudáveis, não corremos grande perigo. Afinal, só os mais velhos é que morrem – fomos dizendo, em jeito de desculpa, como se a vida dos idosos, ou dos que possuem outras doenças fosse menos valiosa do que a vida de todos os outros… de todos nós… Como se fosse menos valiosa do que a dos ditos saudáveis. Fomos incentivados – inclusivamente pelo Governo, note-se – a ir à praia, a curtir o Verão. Era seguro, diziam. Há-de vir uma segunda vaga, mas não se preocupem agora com isso. É preciso é recuperar a economia, gastar dinheiro na restauração, na hotelaria, pôr as gentes a circular, mostrar aos estrangeiros que somos um destino Covid-free. A normalidade quase que parecia restaurada e a segunda vaga, que se sabia que viria, parecia uma realidade longínqua. Pouco ou nada se fez para a acautelar. O “milagre português” iria certamente repetir-se… Imagino que só possa ter sido esta a ideia subjacente a uma total inacção de quem nos governa para acautelar a segunda vaga que se sabia que viria. Sobretudo no que respeita ao SNS, já de si tão fragilizado. Só que não. O “milagre português”, que de milagre pouco teve, não se repete. E não se repete, porque no início era o medo, agora, a indiferença. Em plena segunda vaga, ficámos indiferentes aos números, indiferentes às imagens de hospitais portugueses em estado caótico. O estado de emergência banalizou-se por completo. Disseram-nos que podíamos circular no Natal, e então celebrámos o Natal à portuguesa, com as habituais reuniões familiares. Um sintomazinho aqui, outro acolá, foram ignorados, porque era Natal e ninguém leva a mal… Era Natal e Menino Jesus, com o aval do Estado Português, haveria de operar algum milagre que impedisse a Covid-19 de circular nessa época. Depois veio o Ano Novo, e era preciso celebrar, até porque já temos uma vacina. Era preciso que acreditássemos que 2021 nos irá trazer coisas boas, quando no fundo, bem sabemos, será um ano desastroso. Era preciso que nos enganássemos a nós próprios, nem que fosse por uns dias. Passada a euforia, veio a realidade dos números, que colocam actualmente Portugal numa posição de topo, a nível mundial, no maior número de infecções por milhão de habitantes. O “milagre português” virou o “desastre português”. Mas nós, quase indiferentes, vamos prosseguindo. "Renovação do estado de emergência": qual é a novidade? "Novo período de confinamento obrigatório, como o de Março e Abril": grande coisa… podemos sempre passear a trela sem cão e dizer não estamos com o juízo todo. Quem é que nos vai impedir? A indiferença generalizada, alimentada pelo cansaço, é agora a regra. Já não há arco-íris e unicórnios, nem movimentos #vaificartudobem. Há, apenas, indiferença. É a indiferença que nos leva a manter uma aparente normalidade num mundo que está caótico. No fundo, bem lá no fundo, todos sabemos o desastre que temos entre mãos, mas preferimos normalizá-lo, retirando-lhe a importância que realmente tem. E fingir que a vida segue igual, quando não está. Sei que os meus habituais leitores esperariam um apontamento sobre História, como é comum. Não esperariam um pequeno texto que mais parece um desabafo. Mas esta indiferença também tem tudo a ver com História. Quando aqui há pouco tempo fiz um estudo sobre o abandono dos recém-nascidos na Roda, entre finais do século XVIII e primeira metade do XIX, uma das coisas que mais me chocou foi a constatação de que havia um abandono anónimo muito massificado e que esse abandono era, na verdade, uma alternativa ao infanticídio. À luz dos dias de hoje, essa realidade é absolutamente hedionda… no entanto, à época também se explicava, pelo menos parcialmente, pela indiferença. Indiferença de quem vivia na miséria e não tinha o que comer, ou como alimentar os filhos… indiferença generalizada de uma sociedade perante a morte infantil, porque a morte infantil era quase a regra e não a excepção. As mães não se apegavam emocionalmente aos seus filhos recém-nascidos, porque a probabilidade de que estes morressem era muito elevada. E, por isso, muitas permaneciam-lhes indiferentes… E qual é a mãe que, actualmente, acharia isto possível? A indiferença, muitas vezes, é a única forma de lidar com os danos emocionais que nos causam as dificuldades do mundo que nos rodeia, particularmente quando somos colocados perante situações mais extremas. No entanto, a indiferença pode ser muito perigosa, sobretudo quando tem subjacentes questões de saúde pública. Não podemos deixar que esta indiferença nos leve ao desleixe, à irresponsabilidade, ao não cumprimento das regras. Por muito que questionemos – eu também o faço –, não há como negar que a situação é caótica. O nosso SNS está à beira do caos. Não podemos ficar indiferentes. Temos de nos proteger. Temos de proteger o próximo. Temos de respeitar os profissionais de saúde que estão esgotadíssimos. E, acima de tudo, temos de acreditar que vamos ultrapassar a situação e que haverá tempo para confraternizar. Quanto mais rápido agirmos, mais rápido esse dia chegará. Enquanto lia sobre o Japão deparei-me com o seguinte excerto “Desde o princípio da sua história, com perseverança e talento, lutou contra sismos e os maremotos, os incêndios e as tempestades. Só a ética da austeridade, aperfeiçoada durante séculos, e um sentido agudo do sacrifício do individuo pelo seu grupo lho podiam permitir”. Cit in Os Samurais, Editora Ulisseia 1972 Li isto e antagonisticamente pensei sobre a verborreia de comentários que tenho visto nas redes sociais sobre #votar, #votoantecipado, sobre o #batomvermelho, sobre o #confinamento e tantos outros tópicos que leio e penso na enorme ausência de sentido de colectivismo que está instalado. Além do acentuado individualismo presente nas narrativas umbilicais, denota-se uma tremenda falta de permeabilidade e tolerância a realidades alternativas à dos próprios. Na sua genesis um agudo sentido de intolerância à liberdade do outro e em simultâneo um atentado à mesma, naquilo que deveria ser o sentido de se viver em democracia. Imagem retirada do Jornal Expresso FAZEMOS TODOS MELHOR... quando não temos toda a informação ou contexto, fazemos todos melhor especialmente quando o outro testa algo e empiricamente já sabemos que não resulta e daí construímos ilíadas de como fazer melhor à partida. Fazemos todos melhor quando não estamos no centro do turbilhão e decidimos a partir do sofá. Fazemos todos melhor quando nos destituímos do dever de eleger quem nos governe. Parece-me que caminhamos a passos largos para uma carreira colectiva e pouco profissionalizante de treinadores de bancada! Tu que não cumpres o confinamento, falas do quê? Tu que nunca votas reclamas de quem? Num Portugal livre para pensar (porque nem sempre o foi) parece que deambulamos entre a dicotomia:
VÃO VOTAR CARAÇAS! E se possível FIQUEM EM CONFINAMENTO! Será que presentemente vivemos em alguma amnésia de grupo ou demência global? 74 ainda é só um adulto que vive dias difíceis e de incerteza como todos nós. Reportagem na integra no Jornal o Publico Estamos em Guerra mas não uns com os outros, a nossa guerra é contra o Covid e devemos rever valores como o Respeito, a Honestidade, a Coragem, a Compaixão, a Honra e o Dever. Porque a Liberdade não é uma garantia e devemos cuidar dela e não só dos nossos umbigos. Os verdadeiros ignorantes não são aqueles que não sabem, mas aqueles que sabem tudo ou os que dizem não saber e continuam amorfos na sua redoma.
FAZÍAMOS MELHOR MAS CONTINUAMOS SEM O FAZER! Por Gonçalo Duarte Gomes Os livros são uma consciência. E, arriscando no esoterismo, são conscientes. Só assim se explica que, tantas vezes, entrem nas nossas vidas com uma oportunidade plena. Aconteceu-me recentemente com o livro de Sinclair Lewis, cuja edição em português é intitulada “Isso não pode acontecer aqui” (Dom Quixote, 2017). É um livro escrito nos Estados Unidos da América durante os anos da Grande Depressão, e publicado pela primeira vez em 1935. Retrata a subida ao poder de um populista que, alicerçado numa bem engendrada campanha comunicativa, explorando as fraquezas e desigualdades inconfessadas da América de então, consegue ganhar as eleições de 1932 ao candidato Roosevelt e ao Presidente Hoover, instaurando uma progressiva ditadura violentamente repressiva, de inspiração e pendor fascista e nacional-socialista. É um livro perturbador, por ser tão actual. Não apenas nos processos ilustrados – é considerado profético relativamente à eleição de Trump, praticamente um século antes da mesma, e longe da era da comunicação – mas, principalmente, nas causas que levam um povo a aceitar ceder a sua liberdade em troco de promessas que, verdadeiramente, nunca são cumpridas. Ora, em Portugal, o ritmo da agenda política dos últimos tempos, que, muitas vezes, anda ao ritmo das redes sociais, tem sido marcada pelo populismo. Pelo populismo dos populistas e pelo populismo dos que, dizendo-se o seu contrário, o combatem com populismo – mas um “populismo certo” ou “de bem”, no seu entender.
Exemplo mais recente e abrangente foi a campanha dos lábios pintados, dinamizada, fundamentalmente – lá está, temos que o abraçar – nas redes sociais. Através de uma boca insinuante e desrespeitosa para com Marisa Matias, André Ventura, qual menino Tonecas de andaime, tentou fazer uma graçola ordinária acerca da maquilhagem da candidata (a mesma que, tempos antes, só não lhe chamou pai, em directo, em horário nobre, num debate para as eleições presidenciais), enquanto fazia o mesmo em relação a todos os outros candidatos, com variados níveis de baixaria. Talvez para evitar discutir ideias, que manifestamente têm andado arredadas destas lides, e dar ânimo a campanhas mortiças, muitos aproveitaram o caso para ver nisto um ataque à condição feminina, até mesmo uma agressão aos direitos humanos (diminuindo aqueles que verdadeiramente o são, numa crescente tendência de esvaziamento de significância das palavras) – tomara os avós bêbados, os esqueletos fantasmas ou os operários betos terem tantos defensores! Marisa Matias viu-se assim transformada numa Elizabeth Arden do espaço virtual, emulando o relato segundo o qual a pioneira empresária da cosmética teria distribuído batom vermelho às sufragistas que, em 1912, marchavam diante da sua recém-aberta loja na 5.ª Avenida, em Nova Iorque. Visualmente poderosa e comunicacionalmente estrondosa, a campanha alastrou a vários sectores, e até oponentes políticos aproveitaram, de forma solidária, a boleia promocional. Podendo dizer-se que nunca é demais defender os direitos da Mulher – o que é verdade – para mais num contexto em que ainda muito há a fazer até que se possa falar de equidade, o que é facto é que o jogo, se assim o quisermos entender, acabou a ser jogado nos termos do adversário. Porque, em demagógico contragolpe, mais do antecipado e calculado, Ventura veio dizer que, em vez de se pintarem lábios vermelhos por frivolidades – não era seguramente a ofensa como arma de campanha que estava em causa, porque os agora ofendidos haviam aplaudido as ofensas de Marisa em sentido contrário – deviam pintar-se lábios de preto pelos cancros que afligem o regime, tais como corrupção (excepto os casos em que o próprio tem algum tipo de envolvimento), favorecimento da banca (Luís Filipe Vieira excluído, como sabemos) ou a falta de preparação do Serviço Nacional de Saúde no quase ano que antecedeu o actual momento da pandemia, pese embora se tenham gasto, comme il faut, milhões e milhões. Como qualquer jargão regado com a dose certa de verdade para esconder as verdadeiras intenções, pegou como contrafogo no pasto seco que é o confronto político destes dias. O caudal ecológico é um conceito aplicado à gestão de cursos de água, regra geral perante a perspectiva do seu represamento num determinado ponto, que pretende estimar a percentagem do caudal médio dessa linha de água que deve continuar a fluir livremente, de forma a garantir o abastecimento que salvaguarde a subsistência e protecção de espécies e ecossistemas a jusante. Se quisermos, qual o fio de água que deve passar na torneira para que se possa matar minimamente a sede. Na política já vamos tarde para aplicar o mesmo conceito. Há muito – tal como na América de Sinclair Lewis ou de… Trump – que as elites estão tão entretidas a tratar dos seus interesses e agendas sectárias, que negligenciam os mínimos que garantem às pessoas dignidade nas suas vidas e, principalmente, esperança num futuro melhor. Nesse processo, abrem-se fendas na confiança que o grosso das pessoas deposita nos processos e instituições democráticas, ou em coisas como ciência ou factos. Passa a valer tudo. E assim, quando o elevador social está sistematicamente ocupado pelos mesmos, aqueles que inapelavelmente têm que ir pelas escadas – ou até resignar-se a não abandonar nunca o rés-do-chão – cedo ou tarde predispõem-se a aceitar a promessa de boleia com que um qualquer ascensorista de monta-cargas lhes acene, mesmo que vazia de intenção. Pior, os eternos habitantes do piso térreo podem mesmo aceitar um dia a proposta, infinitamente mais atrevida, e baratinha, de um qualquer trolha político com uma carrinha de caixa aberta e umas ferramentas reluzentes, de demolição de todo o edifício democrático, para posterior (re)construção, agora ao gosto dos esquecidos. Que, obviamente, nunca acontecerá, ficando depois todos a viver na rua, expostos às agruras do Inverno que, invariavelmente, uma ditadura, seja de direita ou de esquerda, representa. Tornou-se assim abismal, de resto, a quantidade de pessoas que, nesta campanha labial, assumiu não ter o hábito de votar, mas que neste sufrágio – ah, o heroísmo – até vão fazer o favor de exercer o dever que até agora negligenciaram. Todas as eleições são importantes, mas foram todas as que antecederam esta, e os seus resultados, o berçário da actual situação. Os populismos são difíceis de tratar (inevitavelmente, alguém trará à baila o paradoxo da tolerância, sempre importante nesta reflexão) pois, como boa parte das desculpas, evitam-se na origem, mais do que se resolvem. Porque têm que ser compreendidos e atacados nas suas causas, e não apenas nos sintomas. Não sei que lábios se podem pintar, ou de que cor, para combater, esse sim, flagelo. Só talvez recomendar a leitura de textos como este, de Sérgio Sousa Pinto (“A República à deriva”, Gradiva, 2020), e a receita que contêm. Por Andreia Fidalgo Já por várias vezes tenho referido que, no que à história do Algarve diz respeito, importa resgatar o dia 16 de Janeiro do esquecimento. Em 1773, quando o projecto de Restauração do Reino do Algarve empreendido pelo Marquês de Pombal estava no seu auge, o dia 16 de Janeiro foi absolutamente fundamental em termos legislativos e redefiniu por completo a configuração administrativa regional. Por alvará régio de 16 de Janeiro de 1773 foram criados os concelhos de Lagoa e de Monchique, que repartiram entre si parte do vasto território do então muito empobrecido concelho de Silves. Esse mesmo alvará extinguia o concelho de Alvor, que passou a lugar do termo de Vila Nova de Portimão. Estas alterações do mapa administrativo da região foram de tal forma importantes que, tal como sabemos, ainda hoje configuram parte do Algarve administrativo tal como o conhecemos. Por outro lado, nesse mesmo dia se estabeleceriam, por decreto real, as condições da Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve, criada no dia antecedente. Esta companhia foi a última das companhias monopolistas pombalinas a ser constituída. Substituía o anterior sistema das almadravas e garantia o controlo e intervenção do Estado sobre os peixes considerados privilegiados ou reais, a corvina e o atum, os mais lucrativos, reservando aos restantes o comércio livre. Também por alvará de 16 de Janeiro, Pombal procurou obviar uma situação algo preocupante na região: a exploração que, por intermédio de contratos ilícitos, os grandes senhores fundiários faziam dos lavradores, cobrando-lhes censos considerados usurários. Estabeleceu-se então uma junta que procurava averiguar a legitimidade dos ditos contratos e abolir todos os que não estivessem em conformidade com a lei. As intervenções pombalinas que no Algarve se fizeram por essa altura deixam antever uma situação de grande desigualdade social, em que predominava uma pequena elite que era simultaneamente a proprietária da terra e a que ocupava os cargos da governança local. Pombal preocupou-se particularmente em limitar este grupo de “senhores poderosos” – assim descritos nas fontes da época – e acudir às necessidades daqueles que por eles eram explorados. Ora, perante uma situação social de grande desigualdade na região, talvez não seja assim tão estranho que, no meio da legislação que então saiu sobre o Algarve no dia 16 de Janeiro de 1773, assim como nos dias imediatamente anteriores e imediatamente subsequentes, se encontre uma outra peça legislativa de altíssimo interesse para o contexto nacional, mas que também se refere muito particularmente ao contexto regional: um alvará desse mesmo dia, 16 de Janeiro, alusivo à escravatura. Leia-se o seu preâmbulo: “… depois de ter obviado pelo outro Alvará de dezanove de Setembro de mil setecentos sessenta e um aos grandes inconvenientes, que a estes Reinos se seguiam de se perpetuar neles a Escravidão dos Homens pretos, tive certas informações, de que em todo o Reino do Algarve, e em algumas Províncias de Portugal, existem Pessoas tão faltas de sentimentos de Humanidade, e de Religião, que guardando nas suas casas Escravas, umas mais brancas do que eles, com os nomes de Pretas, e de Negras, e outras Mestiças; e outras verdadeiramente Negras; para pela repreensível propagação delas perpetuarem os Cativeiros por um abominável comércio de pecados, de usurpações das liberdades dos miseráveis nascidos daqueles sucessivos e lucrosos concubinatos, debaixo do pretexto de que os ventres das Mães Escravas não podem produzir Filhos livres, conforme o Direito Civil. Este alvará havia sido, portanto, precedido de um outro, datado de 19 de Setembro de 1761, que abolia o comércio de escravos para o Reino de Portugal (mas não para o Império, note-se!). Agora, determinava-se a abolição gradual da escravatura, também no Reino: todos os que nascessem da publicação da lei em diante seriam inteiramente livres, mesmo que as mães e avós permanecessem sob o jugo da escravidão.
Não vou entrar aqui pelas controvérsias associadas ao pioneirismo – ou não! – desta legislação pombalina, nem do seu contributo para a abolição gradual da escravatura e do comércio de escravos em Portugal, que apenas se viria a efectivar bem mais tarde. Assumo, com toda a humildade científica, que nunca estudei aprofundadamente o assunto para conseguir sobre ele tecer algum considerando que realmente tenha algum valor, ou acrescente algo de novo ao que os especialistas já sobre ele disseram. No entanto, não me parece de somenos importância notar a alusão específica ao Reino do Algarve – a que se juntam, é certo, “algumas províncias” não discriminadas –, o que denuncia que, provavelmente, os abusos perpetrados contra os escravos seriam particularmente acentuados nesta região do país, assim como notar que o alvará aparece associado a uma data e a um período específico em que o Reino do Algarve estava a ser alvo de um pacote de medidas legislativas que visavam a sua recuperação económica e reorganização administrativa. Coincidência? Não creio… As questões que se me oferecem deixar em aberto, para futuro esclarecimento e investigação, são as seguintes: até que ponto as averiguações específicas sobre a situação social e económica na região algarvia teriam despertado novo interesse de Pombal para o problema da escravatura, tendo acabado por resultar numa nova peça legislativa a esse respeito? Considerando que, em larga medida, é possível caracterizar a sociedade algarvia da época como uma sociedade desigual, pautada por grandes desequilíbrios e pela exploração que os grandes proprietários faziam aos lavradores que amanhavam as terras, será assim tão pouco plausível considerar que aí se perpetrassem de forma mais acentuada os cativeiros e os abusos? Não tendo respostas para as questões, termino com a alusão de que ainda hoje nos rodeiam, bem próximos, exemplos de exploração, de abuso e de escravidão, que se escondem sob as mais diversas formas. Se o século XVIII, isto é, o século das Luzes em que Pombal se insere, inicia toda uma reflexão civilizacional que procurava caminhar para uma sociedade mais humanitária e mais justa, estamos hoje ainda muito longe desses ideais. Estaremos a afastar-nos cada vez mais deles? Por Gonçalo Duarte Gomes
Não, não é erro. É mesmo COFINAr, um verbo acabado de inventar. Mas já lá vamos. Iniciamos hoje um novo período de confinamento, por força do aumento brutal de casos de COVID-19 e, principalmente, da saturação que se começa a verificar no sistema de saúde, nas suas instalações e equipamentos (as que estão a funcionar) e, sobretudo, sobre os profissionais que continuam a constituir uma prodigiosa carne para canhão, já que, ainda que subdimensionados, estruturalmente deficitários e organicamente atraiçoados, continuam a operar milagres. A todos eles, um sentido obrigado e um pedido de desculpa, devido por todos nós, enquanto cidadãos, por termos desde há muito tolerado, com obediente – e, em alguns casos, consoante a cor no Governo, sectariamente interessado – silêncio o desinvestimento estrutural na saúde. Um silêncio que ressoa de forma ensurdecedora em tempos como o presente, de necessidade extrema. Mas este apontamento não é sobre saúde ou pandemia. Ou pelo menos essa saúde ou essa pandemia. É sobre COFINAmento, algo que tem a ver com saúde, e com uma pandemia… mas nas nossas cabeças. E que, novamente, não é erro, mas invenção derivada daquela que titula este escrito. COFINAr é ceder ao processo de simplificação e redução da realidade com que os órgãos de comunicação social pertencentes à COFINA, holding editorial, contaminaram todo o tecido da imprensa e, consequentemente, da opinião pública. Com o nosso consentimento, claro está. Um processo sobre o qual me detive mais demoradamente a propósito do épico homem-couve (ver aqui). Em momentos como o presente, brutalmente impactantes sobre o colectivo, com a vida de tantas pessoas a colapsar total ou parcialmente – dependendo do rombo que já haviam levado aquando do primeiro confinamento e das inevitáveis consequências – importa combater, a par da pandemia viral, a pandemia intelectual. Porque precisamos de espírito e massa crítica, e não distracções, para ver se aprendemos alguma coisa, na esperança de erguer um qualquer futuro válido, em que tantos vão precisar de tanto. Para isso, devemos confinar, mas sem COFINAr. Respeitar a gravidade das circunstâncias, mas sem perder o respeito pelo próximo e pelos variados contextos que atravessa. Ser solidários e socialmente responsáveis, mas exigindo mais e melhores explicações, para lá de diárias hi-scores de infectados e mortos. No fundo, não deixar que o medo nos retire a condição de seres pensantes e, mais que tudo, perceber que a vida continua, e que esta pandemia, na sua gravidade, não é desculpa para tudo, muito menos para atestados de menoridade. Porque enquanto andamos aos gritos uns com os outros nas redes sociais (por certo há por aí muito Caps Lock a precisar de reparação!), a realidade passa ao lado. Sem que seja realmente escrutinada, sindicada, justificada. E é nesse espaço que se instala a ficção. Distópica. Por Gonçalo Duarte Gomes
Os puzzles são um passatempo maravilhoso, que treina a capacidade de observação, ao mesmo tempo que promove a concentração e a abstracção dos problemas quotidianos. Mas pode também ser uma actividade exasperante, quando não se encontra aquela peça, ou as peças teimam em não encaixar da forma como pretendemos, num claro atentado da realidade à nossa vontade. Se a coisa sucede num puzzle do Mordillo, até passa bem, pois há sempre pormenores deliciosos para nos entreter, e cedo ou tarde, damos com a solução. Mas se acontece numa reprodução de 1000 peças de um perfeito céu azul sem nuvens... é de ir aos arames. Nesses momentos de desespero, há quem encare a perspectiva de uma busca inglória com bonomia e a encaixe pacientemente, enquanto que outras pessoas não se detêm em minudências e lançam mão à obra, moldando as peças a pedido. O ordenamento da paisagem é também um puzzle, onde se tenta – ou deveria tentar – encaixar harmoniosamente as actividades necessárias ao progresso da nossa existência nos sistemas fundamentais do nosso meio, em equilíbrio com os sistemas e fluxos fundamentais que garantem a salubridade, a qualidade de vida, a igualdade de oportunidades pela equidade no acesso ao aproveitamento dos recursos e a solidariedade intergeracional, pela salvaguarda da capacidade de regeneração desses mesmos recursos, para satisfação das necessidades dos vindouros. No Algarve, este puzzle tem sido alvo de algumas das mais incríveis deformações de peças, de forma a cumprir vontades que raras vezes serviram, ou servem, os interesses estratégicos (de longo curso) da região. Ou seja, depois de satisfeita a caprichosa vontade de encaixar determinada peça (um loteamento, um resort, uma infra-estrutura, uma exploração agrícola, o que seja), nem que a martelo (ignorando e/ou modificando desproporcional e profundamente as condições e dinâmicas originais e os limites impostos por esse contexto), o resultado é uma manta de retalhos disfuncional, e não aquela imagem bonitinha que a tampa da caixa do puzzle prometia... Num tempo em que as consciências – ou, pelo menos, as palavras – evoluem para outros entendimentos do que deve ser a gestão dos delicados equilíbrios que mantêm a paisagem e nós próprios, surgem tentativas para contrariar o passado e procurar novas coerências paisagísticas, até mesmo contra os instrumentos de gestão territorial, como comprova a renovação da suspensão do Plano Director Municipal (PDM) de Loulé na zona do Almargem e do Trafal (ver aqui). Medidas como esta surgem isoladas, aguardando as revisões dos PDM (no caso de Loulé e muitos outros municípios algarvios, em curso, noutros... em discurso) e a redefinição dos modelos paisagísticos que, esperançosamente, aportarão – se bem que, no Algarve, é preciso ter cuidado com o que se deseja... E mais isoladas ficam no plano do confronto judicial entre as expectativas particulares goradas e os interesses públicos salvaguardados, em sede de tribunais. Porque embora essa discussão deva ser tida, por força de certos princípios constitucionais que, consagrados, devem ser observados, a jurisprudência aponta para uma fragilização dos decisores políticos quando estes optam por tomadas de posição no sentido da apresentada. Curiosamente, um PDM suspenso para acomodar uma qualquer aberração territorial, aparenta ser decisão menos sujeita a condenação... Continua portanto por fazer um longo trabalho de fundo, cultural, estrutural, a vários níveis, com destaque para o municipal – central no modelo de municipalização neo-feudal do país, por “descentralização” – que deve lançar sobre a paisagem um olhar menos voraz e mais perspicaz. Como têm demonstrado (ou relembrado) acontecimentos recentes nos Estados Unidos da América, a política carece de doses mínimas de realidade e seriedade. Sob pena da loucura redundar em caos e desordem, com destruição de todas as referências que permitem alguma coerência nos processos de gestão da vida comum. O ordenamento do território, enquanto expressão espacial precisamente das políticas e das acções que sobre a paisagem as materializam, e nela as inscrevem, não é excepção, como também a realidade já se encarregou de demonstrar, com cheias, fogos, secas e outros episódios. Num momento de questionamento de paradigmas ambientais, sociais, económicos, organizacionais, esta é uma reflexão fundamental. Para que as crises não sirvam apenas para destruir, mas também para reinventar. Por Gonçalo Duarte Gomes
… e o resultado é “porreiro”. Por uma questão de sanidade e higiene mental, e ainda que os ache fundamentais, optei por ignorar os debates entre candidatos às eleições presidenciais, que terão lugar este mês – uns e as outras, bem entendido. Mas também porque o resultado, em democracia e despistada a existência de fraudes ou condicionamentos, será sempre o correcto, independentemente de debates que, numa sociedade tão mediatizada – ainda que por vezes mal informada – como a nossa, dificilmente modelarão votos. Mas há coisas demasiado atraentes – mesmo que de forma mórbida – para se perderem. Foi o caso do debate entre Vitorino Silva, mais conhecido como Tino de Rans, e André Ventura, mais conhecido como Adolf de Algueirão-Mem Martins. Porque era um duelo de titãs mediáticos (em diferentes estilos, é certo) e, pessoalmente, porque eram aqueles cujo discurso menos conheço na abordagem à temática presidencial, já que os outros são mais familiares, seja na sua individualidade ou nos blocos que representam. Este frente-a-frente, bem vistas as coisas, opôs um popular a um populista, soando mais a uma entrevista de café, uma auscultação das massas, do que a uma discussão de ideias programáticas para o exercício da mais importante magistratura do nosso edifício democrático. E, de caminho, mais do que outra coisa qualquer, acabou por ser uma representação do estado da política em Portugal. Porque Vitorino e André, sentados à mesa, discutindo afincada, ainda que educadamente, o título de candidato mais representativo do "povo", procuraram demarcar-se das "elites" e dos seus putativos candidatos, certos da premissa de que aquelas e aqueles lhes retribuem a atenção. Ora, gosto de acreditar que, se Platão fosse português, vivendo neste tempo que é o nosso, seguramente construiria uma alegoria, neste caso não da caverna mas antes do vão de escada, qual clássica porteira do imaginário urbano de antanho. E, neste bate-boca de escadaria social, seguramente veria que estes debatem aquilo de que os outros não querem saber, os outros discutem coisas que a estes nada dizem, e uns e outros falam de tudo menos do país e do papel que um Presidente da República pode desempenhar nele e no seu futuro. A uma parte significativa do eleitorado, não militante de nenhuma das facções em confronto, restará portanto não uma escolha, mas um ingrato papel de minimização de estragos, escolhendo um mal menor ou afirmando a ausência de escolhas que o representem – o voto em branco. Que isto suceda num momento de profunda e global crise social, cultural, económica, anímica e democrática, não pode deixar de ser significativo, mais que não seja para quebrar enganos e rasgar atávicos paninhos quentes sobre a crise que se abateu – por culpa própria e dos seus actores – sobre as instituições e os processos do nosso regime político. Correndo o risco de ser demasiado exigente face ao que um Presidente da República deve ser – quando a experiência acumulada aconselha precisamente o contrário – e, consequentemente, quanto aos temas que devem preencher o debate que alimenta e informa o respectivo sufrágio, parece-me que estamos no ponto zero de energia da política, que está transformada num somatório de agendas desgarradas, que se confrontam oligarquicamente, em que as pessoas são apenas meios para atingir fins, e não os fins que justificam os meios, não se vislumbrando todo para lá da soma das meras partes, esvaziando-se qualquer conjunto. Não obstante (e correndo o risco de ser injusto para outros, por ignorância dos mesmos), acho que deste debate resulta um momento marcante, do hipnotizante gesto de candura e sedutora simplicidade com que Vitorino retirou do seu bolso quatro pedrinhas, para ilustrar um argumento de profundo humanismo – tónica que marcou todo o seu discurso, com uma naturalidade tocante, pleno de metáforas eloquentes, que me parece tê-lo guindado à condição de inequívoco vencedor do debate, ainda que sem beliscar o oponente e sem convencer ser a pessoa indicada para este cargo em particular, sem prejuízo da competência para outros. Mas, olhando as quatro pedras, não pude deixar de registar a brutal epifania nelas materializada, como a luz que, precisamente na platónica caverna, mergulha o Homem nos dilemas resultantes da confrontação entre representação e realidade. Porque, no fundo, tudo se resume a calhaus, em variados sentidos. Os que se escolhem porque parecem contundentes, para atirar em protesto, numa lapidação. Os que se escolhem porque são iguais aos que sempre se escolheram para lastro. Os que tendo a exacta mesma forma de outros que rolaram para o abismo, se dizem diferentes. Os polidos, cuja ausência de arestas gera conforto. Mas também os calhaus com olhos. Que não vêm. Uns aos outros. À realidade. Poder escolher acaba mesmo por ser a única, e grande, nota positiva. Bem-vindo, 2021. |
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