Por Gonçalo Duarte Gomes O escritor francês Olivier Clerc formalizou em tempos uma fábula científica que nos conta a história de uma rã num recipiente com água que, feliz e contente, não se apercebeu que esse banho estava a ser aquecido aos poucos, uma vez que o seu organismo desencadeou um processo inconsciente de ajuste gradual, regulando a sua temperatura corporal. No momento em que a água atingiu o ponto de ebulição, o organismo da rã deixou de conseguir adaptar-se à temperatura, e alertou o seu consciente, lançando a ideia de que talvez não fosse má altura para saltar fora do jacuzzi. No entanto, não sobravam já à rã forças para saltar, uma vez que tinha despendido toda a sua energia no processo de adaptação térmica. Assim, o batráquio viu-se condenado a morrer. Cozido. Esta fábula é alegadamente baseada numa experiência da Física, que postula que se a velocidade de aquecimento da temperatura da água for inferior a 0,02ºC/minuto, a rã fica quieta e morre ao final da cocção. Em presença de velocidades de aquecimento superiores, a rã salta e escapa. A filosofia debruça-se sobre esta questão de uma outra forma, colocando uma pergunta chata: foi efectivamente a água a ferver que matou a rã, ou foi a sua incapacidade de alertar o consciente, em tempo útil para tomar a decisão de saltar e salvar-se? Assim estamos nós no processo de degradação patrimonial que o Algarve atravessa. O que nos está a corroer a identidade: quem destrói activamenteo seu substrato, ou a nossa incapacidade de tomada de consciência e de iniciativa para a oposição a tal atentado? No passado dia 2 de Setembro, o incêndio que reduziu a cinzas o Museu Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro, desencadeou um lamento colectivo, principalmente na comunidade lusófona, pela irreparável perda, não apenas para aquele País sul-americano, mas para todos os outros que, em África, na Europa e na Ásia são ligados pelos Descobrimentos. Aqui no feudo viu-se alguma soberba, nomeadamente a de quem olhou para este caso, pensando que por cá tal seria impossível. Mesmo quando o desinvestimento – ou, no mínimo, sub-investimento – na Cultura é cada vez mais um padrão cultural português. Não sei se ao ponto de deixar um museu desta envergadura chegar ao ponto de colapso, pese embora o aviso lançado, há pouco mais de 2 anos, por António Filipe Pimentel, director do Museu Nacional de Arte Antiga, para a possibilidade de ocorrer "uma calamidade no museu" por se andar a "brincar ao património". Mas seguramente ao nível conceptual e político, e independentemente dos partidos no poder, onde apenas se operam diferenças de pormenor. A Cultura acaba sempre por vogar numa certa deriva, que depende mais do brilhantismo (ou falta dele) das pessoas escolhidas para desempenho de funções decisórias do que de uma estratégia global. Os nossos decisores, seja pelas acções que tomam ou, inversamente, pela omissão a que se remetem, padecem de um problema que já Aristóteles questionava: quem poderá pensar sobre as cores, se é cego de nascença? Dessa forma, o grande problema que nos afecta é a falta de sensibilidade e consciência de muitos responsáveis para o valor histórico, patrimonial e identitário a seu cargo. Naturalmente falam dessa importância, mas apenas de forma a não falhar nenhum item do prontuário politicamente correcto. Para lá das palavras, não existe uma interiorização ou inscrição desses valores nas suas atitudes, comportamentos ou decisões. Quem duvide, veja a razia no edificado com significado patrimonial (erudito ou vernacular, simbólico, histórico ou sentimental, classificado ou não – mera casualidade burocrática, secundária para quem reconhece o valor per se) dos nossos núcleos urbanos. Bem recente, temos presente a demolição da antiga sede do Clube Desportivo “Os Olhanenses”, na Av. da República em Olhão, para dar lugar a um inexpressivo edifício de 5 pisos. Mas já antes, no ano passado, também em Olhão, havia sido a vez do Grémio Olhanense ser obliterado, entre outros exemplos. Em Faro, segue imparável a destruição de imóveis identitários ou urbanisticamente relevantes – muitas vezes precisamente pela sua reduzida dimensão e expressão, proporcionando memória, desafogo e escala humana – para dar lugar a volumes duvidosos. Em São Brás de Alportel, é a própria Câmara que ordena demolições parciais de imóveis do Séc. XIX, para instalar estaleiros de obras públicas, e promove ou pactua com o abastardamento da memória inscrita no tecido urbano e edificado, tudo em nome da “imagem”. E a lista poderia continuar por outras geografias. Modernidade oblige, dizem-nos sempre, como se uma modernidade digna desse nome pudesse sê-lo sem respeitar a antiguidade. Junte-se a isso a vertigem para que nos empurram os neo-flautistas de Hamelin, de que há que criar espaços para empilhar corpos e enclausurar almas, mesmo que a demografia o negue, excepto nos censos dos institutos de estatística do Booking.com ou do Airbnb. Note-se ainda que, e isto é sabido, as camarárias almas se condoem mais facilmente com as dores de bolso de um qualquer pato-bravo do que com a lancinante amputação e castração da memória colectiva. Mantenho aqui, como noutros contextos, que não compete aos particulares pagar do seu bolso o cumprimento e salvaguarda do interesse público, para lá da sua condição de cidadãos e contribuintes, ou salvo alguma medida de compensação a que estejam expressamente obrigados. Mas também não lhes pode ser permitido o calculista exercício de abandono para legitimação a priori do que a posteriori se consuma como irrecuperável ainda que lamentável [pausa para queda da lágrima de crocodilo] degradação. É à Administração Pública que compete administrar. Encaminhando a expansão e a modernidade para os espaços adequados para o efeito, salvaguardando o que deve ser salvaguardado e preservando, noutros espaços que são de outros tempos, a memória de nós próprios. Porque são geografias imateriais – ainda que alicerçadas em terra, pedra e madeira – que importa recordar, vivendo-as hoje, é certo, mas com as marcas de ontem, a textura e a graça, o seu legado, a história que nos contam, sobre eles, os que já partiram, mas também sobre nós, os que lhes sucedemos. A nós compete exigir. Ou cozer. Concluída uma larga volta, eis-nos então de volta ao ponto de partida, qual rã em morninha tina de água: até onde vamos deixar aquecer o caldo em que ferve a nossa identidade, e se acordamos a tempo de saltar fora.
2 Comments
Maria Sousa Belchior
28/9/2018 11:49:26
Não podemos., não devemos deixar ao abandono o legado dos nossos antepassados!
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Gonçalo Duarte Gomes
1/10/2018 21:22:00
Maria Sousa Belchior, muito obrigado.
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