Por Gonçalo Duarte Gomes Já escrevi uma vez (aqui) que os transportes públicos no Algarve são como o carro do Fernando: umas vezes a pé, outras vezes andando. Foi há 3 anos. O País saía de um Programa de Assistência Económica e Financeira, popularmente conhecido como o período da troika, e o partido recém-chegado ao poder (tinha pouco menos de um ano de mandato executado, inovadoramente obtido por via parlamentar e não eleitoral) atarefava-se a reverter as medidas tomadas em consequência da bancarrota em que deixou Portugal, em 2011. Em termos sociais e económicos – principalmente ali ao nível daquelas clientelas que garantem eleições – muito havia a fazer, pelo que temas como a mobilidade, ainda por cima em estâncias balneares periféricas como o Algarve, aguardavam melhores dias. Entretanto, viraram-se páginas, acabaram e começaram tempos, arranjou-se maneira das vacas levantarem voo e recuperou-se aquela prosperidade robusta, que só a tributação desalmada e uma dívida anafada permitem. Mas no Algarve, continuamos à espera de ver passar o comboio... Há cerca de 100 anos, o Algarve até se podia gabar de estar inserido numa certa vanguarda tecnológica, já que o actual traçado da sua ferrovia, mais coisa, menos coisa, ficou completo no primeiro quartel do Século XX. Nada mau, portanto. Seguramente em jeito de comemoração desse centenário, aos primeiros dias de Abril – não no primeiro, mas talvez tivesse sido melhor – a Infra-Estruturas de Portugal, braço ferroviário do Governo, anunciou que em 2019 arrancaria a tão esperada obra de electrificação dos troços da Linha do Algarve, entre Tunes e Lagos e Faro e Vila Real de Santo António (que assim se juntarão ao troço entre Tunes e Faro, electrificado há 15 anos), e que a coisa se concluiria em 2020. Um choque no valor de 57 milhões de euros, para que os algarvios se calem com a ladainha de que não há investimento no cenário das selfies de Verão, templo das bebidas instagramáveis, das glamourosas aparições nas revistas e sites “da noite”, simultaneamente cemitério de tantas e tantas virgindades, algumas inconfessáveis. De caminho, sempre foram sendo deixados os alertas de que poderia ser necessário realizar uma Avaliação de Impacte Ambiental, e que essa minudência ambiental – porra para a verdura, a entravar o progresso! Se fosse nas ilhas-barreira da Ria Formosa era tudo tão mais fácil, onde desde heliportos (ilegais mas pelos vistos legalizáveis...) a paredões, tudo se faz por vontade popular! – era coisa para atrasar o arranque da obra, mas sem stress, que estava tudo controlado. Abril de 2018, portanto. Em Setembro de 2019, novo namoro com a ferrovia, com o Governo, desta feita em plena campanha eleitor... bom, esqueçamos isso, porque já se sabe que nunca é para levar a sério. Saltemos para esta semana, que vê aproximar-se o final do mês de Novembro de… 2019, assistiu ao anúncio de que afinal, ah catano, então não é que a coisa toda vai ter que ser chutada lá para 2023, por causa da dita AIA? Uma chatice, cujo único aspecto positivo é o facto de 2023 ser outra vez ano de eleições legislativas. Aí podemos desde já lançar uma sondagem, para ver o que a vox pop acha que pode acontecer: Seja como for, e tal como na canção dos Xutos & Pontapés, o Algarve vê-se embarcado “Num comboio azarado / Nem máquina tinha ainda / E já estava atrasado”. A electrificação da linha é um desejo antigo, na medida em que é passo fundamental para que se possa concretizar a muito falada alteração do modelo da Linha do Algarve, concretamente através da conversão do material circulante numa espécie de comboio ligeiro que consiga, no mínimo, servir a franja mostruário de alguma da pior conurbação nacional, que é o conjunto das “áreas metropolitanas” do litoral algarvio. Não apenas para passear, conforme se pode pensar no centro nacional de decisão – muito por culpa dos agentes regionais, que se limitam a ser acólitos do turismo – mas também para permitir aos que aqui trabalham melhores hipóteses de mobilidade social, que passa, hoje em dia, inevitavelmente pela mobilidade física. Principalmente no Algarve, que funciona com base em complementaridades (interurbanas, Barlavento/Sotavento, interior/litoral), e em que o emprego escasseia, pelo que frequentemente é necessário procurá-lo fora da localidade ou até concelho de residência, algo inacessível a quem não tenha transporte próprio, o que por sua vez representa despesa difícil de cobrir face aos vencimentos médios praticados na região. Na contemporânea agilidade de processos e de localização (as distâncias medem-se hoje em tempo, e não em quilómetros), os transportes são factor-chave para esse acesso. E só sendo públicos se garante a criação de uma igualdade de condições de acesso às oportunidades de ingresso e progresso no mercado de trabalho, bem como uma optimização ambiental desse processo. Mas, como se diz no Algarve: who cares? Até porque, tratada a linha, vem o tempo de entrar no costumeiro ping-pong entre IEP e Comboios de Portugal (CP), pois a gestão das linhas e do material circulante não é concertada, como é, de resto, apanágio de qualquer país civilizado. Depois então, finalmente, talvez com sorte e aquela dose de paciência que um ministro que entretanto deu à sola para Bruxelas pediu, venha o tempo de se poderem pensar trajectos e horários de transportes colectivos adequados às reais carências de transporte de residentes e visitantes. Talvez, na loucura, chegue o tempo da oferta ir ao encontro da procura, rompendo com as análises de viabilidade sistematicamente viciadas pela diminuta procura de uma rede totalmente desadequada, geradora de ausência de escala capaz de sustentar economicamente o negócio. Ou, imagine-se, de haver articulação intermodal! Bom, com tanto pedido, e face à rápida aproximação do Natal, melhor será contarmos apenas com este comboio...
2 Comments
Miguel
25/11/2019 18:47:43
Não seja assim Gonçalo, promessas não cumpridas, negligência do poder central, centralismo e servilismo local ao mesmo, e templos - só escolher o mamarracho ou campo golfe - ao Deus turismo; até parece que o Algarve não vai embalado num comboio de prosperidade, é para os mesmos de sempre já sabemos, mas bolas não seja negativo, o povo é sereno, e mesmo indo-se a agua aos poucos, avançando a desertificação galopante, não faltarão oportunidades; imagine camelos (no pun intended) levando turistas por esse Algarve fora, centrais de dessalinização que iriam certamente dar cabo dos ecossistemas da Ria formosa, mas garantir aguinha fresca para o golfe, e para o Algarvio pagar a preço de ouro, imagine as obras e manutenção, os ajustes directos, vem você preocupar-se com comboios, e mobilidade, isso é o que se diz às criancinhas para comer os figos secos, perdão abacates.
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Gonçalo Duarte Gomes
27/11/2019 10:20:15
Delicioso comentário, Miguel! Obrigado!
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