Por Bruno Inácio Joaquim,
Escrevo-te passados poucos dias da tua partida. Deixaste-nos de forma imprevisível pois por muito que a puta da doença que te atacou seja tão fatal, nós acreditamos sempre que haverá uma hipótese, que talvez contigo podia ser diferente e que podias vencer a luta desigual com a qual foste inesperadamente confrontado. Era um misto de esperança médica com uma grande dose de amizade que tantos e tantos queriam que fosse o suficiente para te salvar. Não foi e tu partiste. Quero escrever-te porque preciso dizer aos outros o que penso sobre ti e que felizmente tive a oportunidade de te dizer pessoalmente. Eventualmente irei repetir muitas das tantas linhas que li sobre ti nos últimos dias desde que a noticia sobre a tua morte inundou o mural das redes sociais de tantas pessoas. Mesmo assim, quero-te dizer, uma última vez, que gosto muito de ti e que o tempo, que tudo resolve, nunca me fará esquecer o quão importante foste e quanto ainda tinhas para ser para mim. Conheci-te tinha eu 18 anos. Era um puto que queria dar pontapés nas estrelas e fazer coisas. Tudo, fazer tudo o que podia fazer. Tu eras um jovem de 33 anos que muitos já respeitavam pela tua capacidade de trabalho, entrega e dedicação. Comecei a trabalhar contigo, já com 19 anos, na Câmara Municipal de Loulé quando dirigias o GCRP, o “teu” Gabinete de Comunicação, Relações Públicas e Eventos. Recordas-te quando foste mostrar a planta de cada piso do teu GCRP ao Hélder, à época vice-presidente da câmara. Eu estava lá e achei tão estranho alguém desenhar a planta de cada piso, com cada secretária, com cada pessoa que lá ia colocar. O teu caderno quadriculado – sempre caderno quadriculado – parecia naquele dia coisa de arquitecto. Tinhas um minúsculo gabinete entre escadas, num primeiro andar em frente a Alcaidaria do Castelo. E tinhas muitos sonhos e uma vontade imparável para os realizar. Estou certo que te recordas bem desses tempos, sempre tive a ideia que foste muito feliz ali. Ias desbravando caminho, rompendo ideias pré-concebidas, acabando com interesses instalados, implementado novos métodos, novas ideias, novos ritmos de trabalho. Nós, um grupo de miúdos e de graúdos, seguíamos, sem saber muito bem para onde íamos, mas seguíamos. Trabalhávamos bastante. Nunca foste facilitador. Também davas uns murros na mesa quando a coisa relaxava e nós lá entravamos na linha e voltávamos a dar tudo por tudo. Dia e noite, tantos dias e tantas noites sem parar. Não estávamos a trabalhar na função pública, estávamos a trabalhar para o público e tu sempre soubeste que eram coisas muito diferentes. Certamente que te recordas bem do dia em que resolveste fazer um concerto. Organizar um concerto no Monumento Duarte Pacheco com uma tal de Adriana Calcanhoto. Foi a tua primeira grande organização ao serviço da Câmara Municipal de Loulé. Já na altura, como sempre aconteceu ao longo do teu percurso, muitos duvidaram que a coisa ia resultar. Até nós, que andávamos ali a carregar baías, cadeiras, a inventar portas e sei lá mais o quê… até nós tínhamos essa duvida. Mas fazíamos com gosto e por gosto. Fazíamos porque tu definias aquele caminho e acreditavas nele contra tudo e contra todos. Estávamos em 2003. O concerto foi um sucesso e essa tal de Adriana Calcanhoto foi um aviso à navegação: tinhas chegado para ser disruptivo! À medida que o tempo foi passando foste crescendo junto das pessoas: em respeito, em consideração, mas também em numero de pessoas que não gostavam de ver os sucessos das tuas iniciativas. Falámos tantas vezes sobre isso. Foste frontalmente contra uma ideia que existia (será que ainda existe?) de que não se podia fazer diferente simplesmente “porque sempre foi assim”. Isso tirava-te do sério. Tantas foram as vezes que te ouvi dizer: se sempre foi assim, pois agora passa a ser de forma diferente. Em linha com esta ideia, foste igualmente um criador / recuperador / regenerador de pessoas. Ainda por estes dias a me comentavam como tu tinhas ido buscar algumas pessoas a determinada área da autarquia e as tinhas colocado em outra determinada área e simplesmente lhes disseste: vocês estavam desaproveitadas. E essas pessoas deram tudo pela autarquia e vestiram a tua camisola. Em 2004, na euforia do Euro em Portugal, inventaste o Festival do Mediterrânico. E a maioria das pessoas não saberá a historia desta origem. A organização do evento decidiu criar as chamadas Fan Zones que era basicamente um ecrã gigante a transmitir os jogos. Na altura a autarquia tinha que criar na cidade uma oferta para os turistas que se esperavam por força do evento. Tu e o Paulo, na altura vereador da autarquia, começaram a partir pedra. Também gostavas disso Joaquim, de reunir pessoas e atirar ideias para cima da mesa. Desse trabalho que fizeste com o Paulo decidiram que a gastronomia poderia ser um ponto de atracão. Chamaram restaurantes como O Grego, outros que faziam peallas. E a isso iriam associar a música. A vossa lógica era simples: vamos trazer a Loulé – cidade anfitriã – musicas dos países que vão estar a disputar o campeonato. Ao lado do dito ecrã gigante no Monumento Duarte Pacheco pediste para montar um grande palco. Esse festival teve para mim vários momentos marcantes. Durante o tempo que decorreu, talvez uns 20 dias, o tempo do campeonato, o espaço esteve cheio duas vezes. No jogo inaugural e na final. Houve um dia, antes de um jogo de Espanha, estava em palco uma banda chamada “Sueños de Romería de Lepe” (julgo que era este o nome). Eram uns 20 em palco. A ver estava um grupo de espanhóis. Eram uns 4. Aquilo não correu muito bem Joaquim. E um dia, lembras-te da nossa conversa, ali à porta do instituto de emprego? Disse-te, do alto da minha sabedoria dos 21 anos: Joaquim, vamos meter aqui o Quim Barreiros e esta merda fica cheia de um dia para o outro. Tu, certo que estávamos a fazer o correto, disseste-me que isso era uma estupidez e que tínhamos que ser coerentes. Naturalmente tinhas razão. Mas a verdade é que aquilo não tendo corrido muito bem, também não correu muito mal. Os restaurantes venderam bem mais do que o esperado e quiseram repetir. Tendo o apoio do executivo da autarquia, pegas-te no conceito e arriscas-te. Um ano depois, em 2005 mudas o Festival do Mediterrâneo, que (mais ou menos por acaso) começou a chamar-se Festival MED, para o centro histórico de Loulé. Foi uma dor de cabeça. Andávamos ali a inventar um festival, entre pessoas que ali viviam e nos insultavam e entre comerciantes que diziam que éramos loucos. Muitos nos avisavam que ninguém iria ao centro histórico de Loulé. Tu deste a cara e era isso que nos motivava para estar ali. Saber que tínhamos alguém que assumia a responsabilidade. Demos tudo por tudo, horas intermináveis a trabalhar, muita bolhas nos pés fruto daquela maldita calçada irregular em brasa do sol de Junho. Foi um sucesso e o resto da história é por demais conhecida das pessoas. Paralelamente foste fazendo o teu percurso politico. Sempre acompanhado por aqueles que nunca duvidaram de ti e te apoiaram. Quem bem te conhecia, sabia para onde caminhavas e que lá chegarias. Quando li o depoimento do Nuno em que se despede de ti pensei nisso instintivamente. Eu não fui uma dessas pessoas de sempre. Tive os meus momentos em que te falhei e em que não vi em ti esse futuro. Mesmos nesses momentos, os mais tensos entre nós, nunca quebrámos a nossa comunicação e nunca nos distratamos. Mas já volto à politica para te dizer, para que saibas, o vazio que a tua partida nos deixa. Em 2007 disseste-nos que devíamos fazer uma Noite Branca. Terei te perguntado se isso não era coisa das discotecas. Tu disseste que não. Que na Europa havia coisas dessas. Fui pesquisar e rapidamente voltei ao teu gabinete para te explicar que isso das Noites Brancas em Paris e outras cidades era uma noite EM branco no sentido de as pessoas passarem a noite em claro, sem dormir, com os museus e as galerias de arte abertas. Atiraste logo de seguida: então, misturamos os dois conceitos. Fazemos eventos a noite toda, abrimos as nossas exposições e pedimos às pessoas para virem de branco. Como sempre, lá embarcamos em mais uma “loucura” do Joaquim. Planeámos a coisa como sabíamos (ou melhor, como não sabíamos). Envolvemos os comerciantes para que decorassem as montras. Recordas-te Joaquim que te disse que tínhamos de ter uma “entrada” para a festa? Tu achas-te bem e eu chateei meio mundo para conseguirmos pendurar um pano branco entre a Caixa Geral de Depósitos e o Mercado Municipal. Vendo bem as coisas Joaquim, aquilo não ficou nada de interessante… mas era assim que as coisas aconteciam: não se castravam ideias mas tínhamos que nos “desenrascar” (como gostavas de dizer) para as fazer acontecer. Recordo que nesse dia à tarde, com a equipa muito desfalcada pois tinham ido a um casamento, tivemos uma conversa na estrada, ainda a Praça da República não estava requalificada, em que comentávamos um com o outro: se vierem umas mil ou duas mil pessoas sempre conseguimos dizer que isto não foi um fiasco e safámo-nos. Devem ter aparecido umas 10 mil. Durante dias, em Loulé só se falou sobre o fenómeno Noite Branca. O mito do Joaquim Guerreiro, o criador de eventos de sucesso, ganhou ainda mais densidade. Tinhas os teus defeitos Joaquim. Às vezes havia coisas que não eram possíveis de serem feitas e tu não querias aceitar e compreender isso. E por vezes, porque a pressão era tanta e tu querias fazer tanto e tão bem feito, não percebias que a forma como abordavas as pessoas as deixava desconfortáveis. Mas mesmo essas pessoas te respeitavam e hoje reconhecem as tuas virtudes. São grande parte deles tuas amigas. Tiveste sempre muito cuidado com o exemplo. Recordo um episódio. Um dia achaste que devíamos ver ao vivo a Noite Branca de Madrid. Reuniste um conjunto de pessoas que faziam parte da tua equipa para irmos ver o que os outros faziam. Ter mundo, para ti, sempre foi fundamental como forma de acrescentar valor aos projectos que colocavas em prática. Como entendias que a imagem pública era importante não aceitaste que fossemos de avião. E então lá fomos, 5 pessoas enfiadas num carro apertado de Loulé até Madrid e de Madrid até Loulé. Às tantas ir de avião teria sido mais barato, mas a imagem e o exemplo eram importantes. A viagem, em pleno verão, só não foi horrível porque a companhia o compensou em larga escala. Passámos pela crise financeira que assolou o país e tu percebeste que era necessário insistir no rigor da gestão. Tudo tinha que ter uma estratégia. Coisa rara na função pública, mas que para ti era fundamental. A estratégia podia depois mudar ou se ajustar, mas tu fazias questão de debater connosco a estratégia. São muitos os exemplos disto que aqui te relembro. Um desses exemplos foi certamente marcante para ti. Quando decidiste que deverias ter um estudo, metódico, com critérios definidos e formas de avaliação sobre a atribuição e validação dos contratos-programa desportivos. Sempre consideraste que estes contratos deveriam ser instrumentos de gestão de uma determinada orientação da política desportiva do concelho. O problema é que foste mexer com muitos dos tais que defendiam o tal “sempre foi assim”. A pouco e pouco, mandato após mandato, a tua solidez política foi ganhando substância e adeptos. Mas também momentos houve em que assumiste em demasia e sem necessidade as dores que não eram tuas e não tinham de ser tuas. O processo autárquico de 2013 foi o reflexo desse teu voluntarismo. Sobre isso nada mais te vou dizer, já te disse pessoalmente e selamos com um aperto de mão a dura, frontal e crua conversa que encerrou esse assunto. Após isso a tua vida seguiu o caminho normal daqueles que têm a humildade como base de todas as virtudes. Faro, uma nova dinâmica no Teatro das Figuras, o Festival F e o sonho de ter a cidade e a região como capital europeia da cultura. Entendias como poucos, ou melhor dizendo, foste um dos pioneiros em entender que os eventos eram muito mais do que isso. O Festival MED trouxe um novo olhar e por consequência uma nova dinâmica ao centro histórico de Loulé. São tantos os exemplos que fui ouvindo nestes dias de como a tua influência foi importante. O João que me contava como lhe sugeriste fazer tertúlias musicais ou o Ricardo que não se esquece que estiveste a assistir àquela audição dos seus alunos. Tantos e tantos exemplos. Mas para mim, Joaquim, a tua maior virtude era a tua capacidade de conheceres as tuas limitações. Não só para mim, mas para muitas pessoas a quem tu de forma desinteressada chamaste para junto de ti porque percebias que elas acrescentavam valor. O Miguel falava nisso quando, tristes, lamentávamos a tua partida. Essa capacidade tão rara de percebermos que existem sítios onde não conseguimos chegar se formos sozinhos. Talvez a essa virtude estivessem associados os teus valores sociais democratas. Nunca foste um liberal como agora gostam de dizer que somos. Não somos e nessa luta sempre estive ao teu lado. O primado da pessoa humana é um valor primeiro que qualquer outro. E tu incorporaste na sua formação a génese do PPD/PSD e o legado de Francisco Sá carneiro: acima de tudo está a ética na politica. Tu gostavas muito de política e pensavas política. Hoje vejo demasiadas pessoas que gostam de política, mas julgam-se no direito de não ter que a pensar. Como se fosse um mero instrumento de poder e não uma ciência ao serviço do colectivo. Como se a ambição de cada um não tivesse que estar indexada a um objectivo maior, o objectivo colectivo. E é por isso, que vais deixar órfã de liderança uma geração que conquistaste e a quem provaste que eras a melhor pessoa para seguirmos. Não existem pessoas insubstituíveis, mas não vejo como te vamos substituir. Irias ser Presidente da Câmara Municipal de Loulé. Não sei quando, mas irias. Era inevitável. Não porque te sentisses nesse direito como se de um ato divino se tratasse, mas porque simplesmente o desejavas bastante. E fazias essa caminhada com a alegria de quem está a fazer a maior e melhor coisa do mundo. Tenho muita pena, não só por ti, mas acima de tudo por um concelho que a determinada altura vai deixar de ter a oportunidade de te ter ao seu serviço. Vou terminar Joaquim, porque a prosa já vai longa e nunca foste homem de perder muito tempo em lirismos. Só te quero dizer, mais uma vez, que foi para mim uma Honra ter crescido ao teu lado. Rimos, choramos, festejamos. Vencemos e perdemos. Foste a pessoa mais importante da minha vida profissional. Nunca vou esquecer a tua memória e irei sempre lutar para que ela seja lembrada. Obrigado Joaquim, até sempre. Bruno
6 Comments
Ana Rita de Jesus
8/9/2017 11:56:29
Perfeito Bruno... simplesmente perfeitamente sentido.
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Bruno Inácio
10/9/2017 23:36:00
Obrigado Ana. Foi mesmo muito sentido.
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Tiago Aguas
9/9/2017 12:47:53
Caro Bruno,
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Bruno Inácio
10/9/2017 23:37:18
Obrigado Tiago. O sentido de serviço para o público sempre foi uma das grandes qualidades do Joaquim.
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luisa
9/9/2017 20:17:24
Lindas palavras Brumo , , Esse seu dom de expressao que desde muito jovem ja eu admirave
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Bruno Inácio
10/9/2017 23:33:55
Muito obrigado Luísa.
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