Por Gonçalo Duarte Gomes Um centro comercial localizado às portas do Barrocal algarvio, chamado Mar, promete aos seus fiéis a maior área de lazer ao ar livre num estabelecimento deste género, com uma "Disneylândia" em miniatura alojada em 8000 m2, correspondentes a cerca de 10% da área total desta bisarma mercantil. Admirável Algarve novo, em que o mar já lambe as faldas da Serra e os jardins passam do centro da cidade para o templo do consumo… Que a construção de espaço público e a sua qualidade não ocupa muito tempo às cabeças dos nossos gestores territoriais, salvo honrosas excepções, não é grande novidade. Basta ver a generalidade do tecido urbano dos nossos aglomerados populacionais, e constata-se que o espaço público é o que sobra da edificação – processo de amontoamento sem critério, organizacional ou arquitectónico, de volumes construídos, que não deve ser confundido com urbanização. Claro que sempre vão surgindo uns projectos e obras, principalmente à beira de eleições, de canteiros ou “espaços de cedência” de loteamentos, ou de aproveitamento de alguns espaços expectantes que ainda “são verdes” e coisas do género. Mas tudo em pequeno, sem uma estratégia coerente (as Estruturas Ecológicas Urbanas e/ou Municipais não arrancam do papel), e tudo espaços nos quais, depois de concretizados, manutenção nem vê-la, que o que interessa é inaugurar. O povo tem andado mais ou menos sereno com isso, nunca reivindicando muito, apesar de hoje em dia começar a haver uma maior consciência e exigência, embora ainda longe de uma plena cidadania – basta recordar os tumultos que se originaram em Istambul, em 2013, devido à intenção de destruir o muito usufruído Parque Gezi, no coração da cidade, colocando em seu lugar um símbolo otomano e… um centro comercial! Entretanto, e de mansinho, a vivência pública foi sendo transferida para os grandes centros comerciais, não apenas pelo fenómeno comercial por si só, mas também porque foi nessas áreas que começaram a concentrar-se espaços públicos qualificados (excluamos a questão do gosto, que em alguns casos é para lá de duvidoso). Houve portanto um processo de atracção por feromonas urbanísticas, numa estratégia em muito semelhante à das plantas carnívoras, mas neste caso apontada às nossas carteiras. E isto foi sendo consentido, licenciado, aplaudido por aclamação. No Algarve, a região foi reforçando o seu orgulho não apenas nos seus centros comerciais (os maiores! os melhores! os mais coiso e tal!), mas também nos seus greens e clubhouses, como se jardins de plástico ou campos de concentração para natureza espoliada fossem a quintessência do espaço público. Simultaneamente, esse mesmo Algarve foi perdendo a vergonha de ter baixas de cidades económica e socialmente deprimidas - Albufeira, enquanto houver cerveja e não chover, é clara excepção. Foi perdendo a vergonha do despovoamento, abandono, espoliação, degradação e terciarização dos seus centros históricos. Foi perdendo a vergonha da falta de espaços públicos de qualidade em meio urbano. Nesse desequilíbrio, foi perdendo o pudor relativamente ao que faz corar de embaraço qualquer região verdadeiramente desenvolvida. Poderá dizer-se que no Algarve estes problemas não são ainda graves. Em alguns casos concordo, mas mesmo assim, importa pensar que nenhum mal se trata só quando atinge o seu ponto crítico de não retorno. Previne-se, ataca-se nas suas fases embrionárias. Ainda recentemente, no início de Novembro deste ano, e na sequência da Declaração de Parma (2010), a Organização Mundial de Saúde publicou um relatório a inequivocamente afirmar o paralelismo, empiricamente há muito comprovado, da relação directa entre espaços naturalizados em meio urbano e a melhoria generalizada dos índices de saúde pública, apelando energicamente à acção nesse campo. Além disso, quando e como vamos controlar o que quer que seja, se nos abeiramos do ponto em que são as grandes organizações comerciais (para não utilizar o termo de cunho distópico, de corporações), e não as entidades públicas, geridas pelos eleitos, a oferecer espaços públicos de qualidade e a ditar os ritmos e padrões de ocupação e vivência do território? Só no que disso sobra, é que babujamos nós, como frangos de aviário. É só uma ideia, mas parece-me que isto deveria merecer uma reflexão alargada, a começar nesta região que se afirma de excelência. Podemos até concluir que sim, que é isto que se quer, é mesmo este o caminho. Mas, até lá, aventuro-me a dizer que este processo de progressiva transposição da artificialidade contemporânea para os nossos conceitos e processos organizativos e de gestão da vida comum corre o risco de nos mergulhar numa perversão de tal ordem que, qualquer dia, não saberemos distinguir o genuíno do falso. Os Radiohead explicam isso melhor do que eu.
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