Por Gonçalo Duarte Gomes O amor é coisa linda. Mas, dentro dessa lindeza generalizada, nada bate a fase do namoro. Ah, a descoberta, o mimo, o encantamento tamanho... Num modelo tradicional – tão em crise depois do marialva manifesto do Gonçalo da Câmara Pereira – compete ao menino cortejar a menina, levando-a a passear, oferecendo-lhe flores, apaparicando-a. Mariquices, vá. Mas depois há malta mais burgessa, que tenta abordagens um bocadinho mais kamikaze e paleolíticas, do estilo "adoro-te tal como és, mas mudava tudo em ti". E não é que, pasme-se, resulta? Vai um exemplo? Algarve. Região formosa, vive em permanente sobressalto amoroso, envolvida em arrebatadores romances de andaime com inúmeros resorts turísticos que lhe prometem a salvação do encalhado marasmo da sua simplicidade provinciana. Embevecidos com a sua beleza natural e os valores paisagísticos presentes neste Éden terreno, estes pretendentes abeiram-se docemente, para depois lhe sussurrarem melosamente ao ouvido: “vou transformar-te de cabo a rabo”. Ternurento. Ela, bimbalhona, tarda em dar a única resposta adequada a tão tóxicas paixonetas: “Não vai dar. Não sou eu, és mesmo tu”. Mas afinal, já dizia o faduncho do Carlos Ramos, “O amor é louco Não façam pouco Desta loucura”.
Nestas lides, a Lagoa dos Salgados é uma daquelas solteiras altamente cobiçadas. Inicialmente devido à sua beleza e atractividade, mas cada vez mais porque vai sobrando cada vez menos para escavacar. Volta ou não volta, lá vem uma ideia peregrina para desenvolver o atraso de vida que é aquela triste poça de água, cheia de pássaros e outra bicheza, rodeada de campo, com ainda mais bichos. Um nojo, no fundo. Desta feita, vem um grupo económico, ligado ao imobiliário e alicerçado numa instituição bancária – tudo gente do ramo da filantropia – propor algo que o Algarve nunca viu, para aquele pântano possidónio. Nada menos que 3 hotéis, perfazendo 736 camas, 352 villas, 18 buracos de golf, numa área de cerca de 120.000 m2, fora infra-estruturas. Incha, que é inovação… Obviamente que isto depois vai prometer 500.000 empregos, com remunerações nunca inferiores a 2.000 euros mensais, com contratos vitalícios, Ferraris de serviço, planos de saúde estilo o de Matusalém, enfim, o costume. Aqui há uns anos, era para ser um Parque Ambiental, uma coisa que não se percebia bem o que era ou como ia funcionar, o que me levou, na altura, a largar este bitaite, que em muitos aspectos e principalmente nas perguntas permanece actual. Só que agora diz que é um eco-resort. O que é giro porque eco, como quem diz “é ecológico”, pressupõe integração num sistema de interacções, ao mesmo tempo que resort é uma tipologia de estabelecimento hoteleiro, fechado, que pressupõe a satisfação da totalidade das necessidades (alimentação, alojamento, desporto, entretenimento, compras, etc.) dos seus ocupantes no interior das instalações, prometendo então isolamento dos peçonhentos algarvios que infestam as redondezas. Contraditório? Nada, é só impressão… Além disso é um eco alternativo, pois agarra em tudo o que lá está, os tais valores idílicos que cativam e fascinam, e tudo muda, desde a topografia à vegetação, passando pelo uso do solo, densidades populacionais e cargas sobre infra-estruturas, impermeabilização, drenagem, e tudo o mais que seja necessário a essa grande operação de plástica paisagística. No fundo, é trocar a moçoila algarvia por uma boneca insuflável, coisa pouca. Há no entanto que ser justo, e reconhecer que nisto dos ecossistemas de substituição há gente autorizada que diz que a coisa fica ela por ela, e que a malta e o sistema se habituam. A própria Lagoa dos Salgados, como a conhecemos, é fruto de transformações com dedo humano. Certo, mas daí a fazer crer que alhos são iguais a bugalhos, que tudo é relativo (até o discurso, pois se alguém lhes pagar mais para dizer o contrário, o contrário dirão), não há valores de referência que importe preservar (mesmo que construídos por acção humana, quem disse que não somos jeitosos, quando queremos?) e não há nada que não tenha um preço, entra no campo das verdades sofísticas irrebatíveis, próprias da abstracção amorfa extrema. No entanto, tente-se exercitar a doutrina pregada, pagando os respectivos ordenados com dinheiro do Monopólio, e a atitude já é outra... Ou talvez o eco seja de outra coisa, como por exemplo eco de um Algarve passado e desaparecido. Seja como for, nisto do eco-prefixo tenho sentimentos mistos, porque, e confessando um guilty pleasure, sou grande apreciador de balelas. Mas desde que tenham pinta. Em estrangeiro tudo ganha outro charme, e um banal vendedor de banha da cobra passa a empreendedor, a fazer um pitch que é trendsetter e gamechanger, mesmo que a coisa em si seja afinal muito, muito bullshitter. Esta nova encarnação da messiânica salvação da possidónia condição da Lagoa dos Salgados não descurou este aspecto, e vem acompanhada de designações altamente, estilo "beach" e "lagoon", que esta malta não é parva e gosta de nos brindar com o estado da arte da tanga marketeira. Como disse em tempos, gostam de nos ver a comer água morna com garfo e faca. E nós lá vamos, na cantiga, com os olhinhos a brilhar com umas jogadas imobiliárias – desta é que é – e a sonhar com uns bonequinhos muito bonitos, acreditando em viabilidades económicas e sustentabilidades tão consistentes como as nuvens sobre as quais se ergue todo o restante castelo. Outra nota de justiça passa pelo reconhecimento de que áreas como esta não deviam estar sujeitas aos humores de especuladores. Se são importantes para a valorização paisagística e estabilidade biofísica da região, devem ser património estatal e alvo de uma gestão activa e efectiva, orientada nesse sentido. Não é que tal perspectiva anime seja quem for, bastando olhar, por exemplo, para os meios, recursos e realidade das áreas protegidas nacionais, mas exigir aos particulares que cumpram obrigações do Estado através da propriedade privada é no mínimo incoerente. Não que desgostemos deste McDonald’s económico. Aliás, o problema não é esta doce tentação isoladamente. Uma extravagância paisagística ou outra, de vez em quando ou aqui e acolá, não traz grande mal ao mundo – a diversidade inclui-as. O problema é que todo o nosso regime de “desenvolvimento” (um dia teremos que discutir este conceito) assenta nesta economia de plástico, e em nome dela retalhamos, fragmentamos, descaracterizamos à exaustão, promovendo um colesterol territorial. E é por isso que, embora o Algarve seja anafado e luzidio na aparência, é apenas balofo, tem pouco músculo, não aguenta uma corrida de fundo, e perde rápida e inevitavelmente o fôlego para lá dos balões de oxigénio.
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