Por Gonçalo Duarte Gomes
Recentemente, e na ressaca de uns dias de precipitação valente (nos dias 26 e 30 de Novembro, dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera apontam para precipitações médias acumuladas entre os 40 e por vezes 80 mm em boa parte da região) no bom velho regime torrencial que tão bem caracteriza o clima de regiões de influência mediterrânica, escrevi um texto sobre o tema das cheias e suas causas (disponível aqui). Na troca de ideias que se seguiu, principalmente através das redes sociais virtuais, muitas pessoas comentavam, lamentando, o facto de tanta água se “perder”, correndo livremente para o mar, sem ser armazenada para futuro consumo humano. Sendo perfeitamente compreensível tal preocupação, e saudável a consciência da escassez, principalmente tendo em conta o monumental aperto que o Algarve viveu (e de que ainda assim não se livrou, embora, por exemplo, Odeleite, em Novembro, tenha passado de 32,1% para 45,7% da capacidade e Odelouca tenha subido de 47,7% para 48,9%) em termos de níveis das reservas hídricas para abastecimento público, esta ideia não deixa de traduzir um problema cultural na relação que temos com a água. Repetindo parte do tal texto: “Hoje entendemo-la [água] meramente como bem de consumo, transaccionável, que corre em canais e tubagens, e sai em torneiras. Perdeu-se o entendimento e, principalmente, o respeito, pelo seu poder enquanto agente modelador da paisagem”. A água é um factor limitante para a vida. Para a nossa e para toda a que nos envolve, e de que dependemos, mesmo quando não nos apercebemos disso. E é por isso que, para além do fundamental consumo humano, importa que flua pela paisagem, concretamente através do sistema vascular da mesma, que é a rede hidrográfica. Importa, por isso, que se compreenda esta dimensão ecológica da água na paisagem, e as suas funções de suporte vital, principalmente se pensarmos que temos o deserto mesmo à porta, ali do outro lado do estreito de Gibraltar. Se não for acautelada essa circulação e percolação, esses caudais ecológicos disseminados que alimentam a vida no solo e abastecem (também) aquíferos, e toda a água for tornada refém do nosso consumo – ainda para mais quando o sabemos perfeitamente desmesurado e desproporcional face às reais disponibilidades da região – estaremos a cometer um erro estratégico que, a médio/longo prazo nos custará bem caro. É também por isso que se questiona a visão utilitarista/economicista da água, que esgota a sua relevância na perspectiva da torneira e procura inventar reservas e disponibilidades para alimentar um modelo de consumo desadequado, em vez de optimizar o modelo para se acomodar às disponibilidades, marcadas por aguda incerteza. Há, portanto, um trabalho de fundo a fazer neste domínio, de forma a que nos reaproximemos da cultura mediterrânica da água, com maior e melhor noção da sua importância global enquanto fonte de vida, e não apenas de consumo. Se, felizmente, falamos cada vez mais sobre isso, o facto é que pouco se faz.
2 Comments
Miguel
4/12/2020 13:09:16
Texto de enorme importância Gonçalo, infelizmente creio que a visão utilitarista / economicista permeia todos os aspectos da acção politica em Portugal; um sinónimo adequado seria: Vistas Curtas.
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Gonçalo Duarte Gomes
11/1/2021 11:19:21
Miguel, o olhar sobre a paisagem está altamente condicionado pela lógica perversa desta se fazer a partir do que sobra da edificação. E, consequentemente, pela lógica de que o que não serve para edificar... não interessa.
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