Por Gonçalo Duarte Gomes A Água do Luso – passe a publicidade – cunhou um slogan emblemático na publicidade nacional: “tão natural como a sua sede”. Este bordão, orelhudo como convém, era, na década de 80 do século passado, premonitório quanto ao futuro que nos parece esperar, em que ter sede se tornará um estado normal, face à escassez do líquido vital. No Algarve, marcado por um abono hídrico incerto, que muitas vezes obriga a longas travessias no deserto, mais nitidamente se desenha um cenário desses. A menos que se arrepie caminho, e se comece a usar a água com a parcimónia a que a realidade climática regional e as disponibilidades aconselham. Muito se tem falado, mas tarda a acontecer algo relevante nesse sentido. Verifica-se mesmo o contrário. Tem-se dito que, se não vai a bem, qualquer dia vai a mal. E por vai a mal, entenda-se... vai ao bolso. Tradicionalmente, imagina-se uma sensibilização musculada através da tarifa da água. Mas talvez haja um nível mais profundo. Foi noticiado no início desta semana que a água vai começar a ser negociada na bolsa de Nova Iorque, à semelhança de qualquer outro bem económico. Na circunstância, com água da Califórnia, lá longe (embora tenhamos uma em Salir), através dos chamados contratos futuros – ou simplesmente futuros – baseados num índice que estabelece a evolução do preço do direito à água naquele estado norte-americano.
Resumidamente*, futuros consistem numa negociação antecipada do preço a que determinado bem – aqui água – será transaccionado numa data futura, também ela previamente definida. Desta forma, comprador e vendedor comprarão e venderão o bem pelo preço acordado, independentemente do valor de mercado que esse bem tenha na data estabelecida. Se o valor de mercado for superior ao preço acordado, o vendedor perde e o comprador ganha. Se o valor de mercado for inferior, invertem-se os papéis. Nestas negociações, ao contrário de outras deste género, não existe qualquer transacção física de água, correndo tudo no plano das efabulações financeiras e do mercado de futuros, quase num sistema de apostas em torno da sede. A agência financeira Bloomberg entende que esta negociação traduz preocupações com a água. Pretende então o sector financeiro, apostando especulativamente quanto à escassez da água... resolver tal problema? Não negando o impacto positivo que as economias de mercado historicamente têm na qualidade de vida de tanta gente, o que é facto é que “o mercado”, quando entregue a exercícios de auto-regulação, não tem corrido nada bem. Envolvendo recursos naturais, é mesmo dramático. Bem entendido: a água tem custos associados à sua captação, armazenamento, tratamento, e distribuição, não surgindo por obra e graça nas torneiras. Custos esses que, a menos que adoptemos modelos económicos mais desprendidos, têm que ser cobertos. Mas pagar tarifas governamentalmente tuteladas – que ponderem interesses comerciais com o direito fundamental à água, enquanto encargo basilar e responsabilidade social partilhada por todos – é diferente de estar sujeito a um exercício comercial especulativo – especialmente num quadro de tendencial equiparação de corporações a Estados para efeitos arbitrais, por exemplo no contexto de acordos comerciais internacionais, como o CETA. Imagine-se (porque nunca, em tempo algum, o tecido empresarial o fez...) que, para negociação destes contratos futuros, os agentes envolvidos têm interesse em condicionar artificialmente as tendências, particularmente no sentido do aumento da escassez, para melhorar as suas margens. O que impedirá tal manejo, que afectará, em caso de inflacção do preço da água, principalmente os mais vulneráveis? A ética? “Preço do direito à água”, é o que estabelece o índice de Água Nasdaq Veles Califórnia, a que se reportam os contratos futuros referidos. Em Janeiro de 1992, foi redigida a Declaração de Dublin, direccionada já aos líderes mundiais que, em Junho desse ano, participariam na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro. Dessa declaração constavam quatro princípios relativos à finitude, escassez e importância da água, sendo o 4.º o de que a água tem um valor económico em todos os seus usos concorrentes e deveria ser reconhecida como um bem económico, ainda que reconhecendo primeiramente como um direito básico de todos os seres humanos o acesso a água potável e saneamento, a um preço comportável. Em 2002, o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas reconheceu a água como um direito humano universal, não subordinado a quaisquer condicionamentos económicos. Estaremos a assistir a um pender deste “braço de ferro” conceptual para uma perversão do 4.º princípio da Declaração de Dublin que, bem intencionada, pode tornar-se um Cavalo de Tróia, colocando um preço num direito fundamental? Tal receio aumenta se pensarmos que, a coberto da pandemia, temos assistido a variados ensaios que, em tempos de normalidade – principalmente democrática – seriam impensáveis. Desde assomos autoritários a condicionamentos sociais, culturais e até afectivos, muito se tem servido da cultura do medo, sempre em nome da resolução do problema de saúde pública, que efectiva e inegavelmente enfrentamos. Cada vez que o presente se torna mais estranho, é interessante olhar para as distopias ficcionadas, para ver se os futuros que nos adivinhavam no passado estão ou não a ser ultrapassados pela realidade. Uma das minhas preferidas surge no filme Blade Runner. Aí, o slogan da Tyrell Corporation, fabricante dos humanóides Réplicas, anunciava “mais humano do que humano”. Uma hipérbole para disfarçar profunda desumanidade, mais até dos criadores do que propriamente das criações. Se começarmos a negar copos de água, onde ficamos nesse campeonato de humanidade? E como ficam regiões hidricamente sensíveis, e social e economicamente vulneráveis como o Algarve, num xadrez desses? *um agradecimento ao António Guerreiro pelas preciosas dicas que me deu, em ajuda ao entendimento dos contratos futuros.
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