Por Gonçalo Duarte Gomes É verdade, mais um… No entanto, e para lhe dar um twist interessante, aviso já que este traz a visão de uma espécie de Nuno Rogeiro do Mal, em que a abstenção não é crime, mas antes uma opção consciente, e com Game of Thrones à mistura… Os resultados das eleições são, em boa verdade, irrelevantes. Ou pelo menos são um tema de discussão tão útil quanto uma jornada futebolística. Porque os resultados estão fechados e porque, não havendo falcatruas no processo eleitoral, os eleitores escolhem sempre bem, tendo depois 4 anos para pensar sobre o assunto. Prefiro deter-me no resultado que não o é, mas que acaba por ser o mais importante: a abstenção. Sendo este um texto sobre política, e sobre política em Portugal, não podia deixar de ser desonesto. Vai daí, não disse bem a verdade – ou pelo menos toda a verdade – na introdução. Porque esta não é uma apologia da abstenção. Desde que alcancei o direito ao voto, e orgulhosamente o exerci pela primeira vez em 28 de Junho de 1998, no referendo sobre a despenalização do aborto – averbando uma “derrota” logo na estreia –, nunca falhei nenhuma chamada às urnas. Mas cada vez mais compreendo certos abstencionistas. E digo certos, porque, como em tudo na vida, as generalizações são injustas. Vai daí, os abstencionistas a que me refiro são aqueles que classifico como objectores de consciência. "A abstenção eleitoral é uma atitude lícita que pode ser politicamente recomendável", disse Sá Carneiro em 1973, entendendo que a participação nos exercícios de encenação democrática que o regime totalitário vigente promovia acabava por funcionar como uma forma de conivência e de validação, tornando as pessoas cúmplices. Ora, na massa disforme de abstencionistas existem, para lá dos meramente irresponsáveis que negligenciam um dever e um direito (desprezáveis nesta reflexão porque nada os arrancará de tal condição), aqueles que recusam participar em exercícios eleitorais hoje esvaziados de significado por uma outra forma de totalitarismo: o sequestro da política pelos partidos e pelas figuras que melhor servem os interesses desses partidos, que raramente coincidem com os interesses das comunidades, e muito menos do País. A profunda degradação da confiança que daí advém causa estragos permanentes, nomeadamente o descrédito no próprio sistema. E aí, das duas... três. Ou as pessoas se abstêm, ou se organizam em movimentos de reforço do poder cívico – como é o caso do Occupy, nas suas diferentes manifestações dos tantos que, com tão pouco, olham os poucos que tanto têm – ou, paradoxalmente, reforçam ou fazem surgir partidos que prometam abanar ou até mesmo implodir o sistema, como é o caso de alguns dos que se estreiam na Assembleia da República na legislatura que agora inicia. Todas estas respostas traduzem portanto contextos sociais, económicos e anímicos de um eleitorado que está órfão de representação e se sente negligenciado, quando não mesmo empurrado para o ponto em que, nada tendo a perder, nada teme, como é o caso do Algarve, o que em parte explica a taxa de abstenção verificada (absurdos 54,17%, mais de metade dos eleitores), superior à nacional (45,50%), bem como a pulverização do voto por partidos fora do chamado “arco governativo”, ainda que para praticamente nada, graças ao sistema de representação proporcional e ao método de Hondt. Por isso mesmo, todas estas respostas se extremam e radicalizam face ao status quo vigente, com agendas que vão desde a xenofobia (seja por clivagem sectária da sociedade por quotas ou por odiosos discursos de intolerância face a minorias e imigrantes) até ao desmembramento arbitrário do Estado social, juntando-se a outras tendências, de ecologias parcialmente distópicas, desprezo pelas forças da autoridade ou de instauração de ditaduras de hábitos, condicionamentos de linguagem, pensamento e criação artística. À vontade do freguês, portanto. Como se tal não bastasse, outro veneno corre no sistema vascular da nossa política. Um que, à boa moda orwelliana, faz com que todos os extremistas sejam iguais, mas uns extremistas sejam mais iguais do que outros, consoante a barricada em que se encontram na divisão clássica da política, entre as trincheiras laterais de esquerda e direita (que largamente sobrevivem ao Mundo que com elas se explicava, há muito esfumado num passado longínquo). A sua sintomatologia parece-me claramente descrita num pequeno livro intitulado “Esquerda e Direita: guia histórico para o Século XXI”, da autoria de Rui Tavares. No final das suas 104 páginas, que contêm alguma da mais gritante falta de honestidade intelectual que provavelmente o prelo português já conheceu, resulta a conclusão de que esquerda e direita se mantêm conceitos relevantes, porventura nunca tanto como hoje, principalmente porque o primeiro é um axiomático atestado de santidade laica, garantia da superioridade moral e bondade política daqueles que o ostentam, enquanto o segundo é, por oposição, uma espécie de marca de Satã, estampado na testa das vis criaturas que assim, dissolutamente, conduzem a sua vida. Os que no meio ficam, vogam perdidos, num Purgatório sem esperança de redenção. Esta doutrina de facção e corporativismo ideológico, que frequentemente passa mesmo a discurso de seita, de moral maleável – quando não contorcionista – e indiferente a factos, realidade ou História, faz escola (integra mesmo o Plano Nacional de Leitura para o Ensino Secundário, que não inclui como contraponto a intemporal e magistral “Nota sobre a supressão geral dos partidos políticos” de Simone Weil ou o “Triunfo dos Porcos” de George Orwell). Nesse espírito, a intelligentzia dominante cultiva militantemente a ideia de que há resultados certos e errados para o exercício democrático, menorizando e diabolizando aqueles que optam por outras respostas, mesmo quando aquelas são apenas o exacto reflexo das suas. Cavam-se assim mais fundas as trincheiras que acentuam antagonismos e fracturam o edifício democrático, polarizando extremos e acirrando ressentimentos e extremismos, quando o melhor antídoto para abstenções, demagogias, radicalismos e ias e ismos que tais é uma acção agregadora e não segregadora (comportamento gera comportamento), que afaste medos, que eduque a ignorância, que lembre as pontes entre todos nós e não os hiatos sob as mesmas. E tempos houve de tal política em Portugal – e na Europa, que hoje se debate com igual problema abstencionista. Conduzida por estadistas, verdadeiras lideranças orientadas em primeiro lugar para as pessoas e para a satisfação das suas necessidades, anseios e expectativas, num quadro em que o todo era mais e sobrepunha-se sempre à mera soma das suas partes. Presidida pelo pensamento de um futuro comum, partilhado por ideais divergentes que, ainda assim, convergiam nesse primado da Humanidade. Tempos fundamentalmente dependentes de valores humanistas e não partidários (eram meios, não fins em si mesmo), sem limitações ideológicas, em que a política se desenvolvia numa linha aristotélica, de busca de uma certa “virtude” – ainda que subjectiva, cândida, idealista e até talvez pueril, fortemente mobilizadora e geradora de crença. Hoje em dia, prevalece a escola maquiavélica, sendo a cartilha provavelmente o “Breviário dos Políticos”, do Cardeal Mazarin, autêntico manual de patifaria facilmente reconhecível na praxis político-partidária contemporânea. Não é portanto à toa que o fosso entre pessoas e instituições democráticas se tem cavado, e a abstenção tem vindo a crescer, como exemplifica o gráfico que se segue, para dar um ar científico: A isto reagem os responsáveis partidários tradicionais com uma atitude de "Não sou eu, és tu", distribuindo atestados de menoridade ao eleitorado que neles não vota, sacudindo as culpas que têm, por falhanço absoluto, na criação dos extremos, e nada fazendo para mudar ou procurar soluções. Até porque a abstenção não é, para os profissionais da política, um problema efectivo. Nem o será, até que afecte o business as usual. Nada disto desculpa o abstencionismo, principalmente porque, sem que seja acompanhada de intervenção política directa através do exercício da cidadania activa em sede própria, a abstenção é, precisamente, uma outra forma da conivência passiva para que Sá Carneiro alertava. O verdadeiro voto de ausência de representação é o branco. Mas a abstenção deve procurar-se entender para lá de simplificações redutoras. No Game of Thrones: enquanto todos lutavam pela roda, ninguém reparou que o dragão era o único realmente disposto a destrui-la, derretendo o trono, mesmo por entre dor e perda. Os avisos são muitas vezes facilmente identificáveis, assim lhes queiramos prestar atenção…
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