Por Gonçalo Duarte Gomes Sempre que se comemora o Dia do Trabalhador em Portugal, é inevitável evocar a Reforma Agrária. Este conjunto de modificações, ensaiado a olho – sem leis gerais e apenas com alguns princípios de orientação redondos – maioritariamente no Alentejo e no Ribatejo, a partir do 25 de Abril de 1974, teve por objectivo uma reorganização da estrutura fundiária rural associada à produção agrícola, promovendo, de caminho, uma redistribuição administrativa da respectiva propriedade. Dentro do ideário da própria Revolução, a ideia geral foi portanto democratizar a titularidade da terra, então concentrada em latifúndios, procurando uma melhor divisão da riqueza gerada, particularmente tendo em atenção os homens e mulheres que laboravam nos campos de sol a sol, sem que com isso alcançassem, regra geral, muito mais para além da mera sobrevivência. A realidade, sabemo-lo, foi substancialmente diferente da ficção, quer na forma como na substância. Aliás, basta ler o olhar de António Barreto, um dos “mentores” da Reforma Agrária, para o perceber de forma cabal. Mas ninguém pode censurar as pessoas por terem sonhado. As revoluções estão para os povos como o Natal está para as criancinhas: a malta pede o que bem entende; depois, consoante o comportamento, assim as expectativas são alcançadas em maior ou menor grau. O Processo Revolucionário em Curso, período que mediou entre a Revolução e a aprovação da Constituição da República Portuguesa em 1976, demonstrou-o exemplarmente, principalmente que devemos ter cuidado com o que desejamos. Ora, se nos dizem que a actual pandemia vai ser uma autêntica revolução na forma como vivemos, porque não sonhar e pedir à bruta? Um dos slogans incontornáveis da Reforma Agrária era o orelhudo “a terra a quem a trabalha”, aludindo ao facto de que deviam ser as costas, braços e mãos que realizavam efectivamente a lavoura as mesmas que colhiam depois a fatia de leão dos proveitos desse labor. Pois bem, e se nesta ressaca da COVID-19, pedíssemos a paisagem para quem a vive? Longe de movimentos de ocupação à força das paisagens, semelhantes aos que serviram de – infeliz – base inicial à Reforma Agrária, a ideia aqui seria um bocadinho diferente, mais organizada (sem ímpetos voluntaristas e de “o que é meu é meu, o que é teu é nosso”) e, esperançosamente, mais pragmática. A Lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, aprovada pela Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio (LBGPPSOTU), pretende estabelecer um quadro normativo que permita, no exercício do planeamento das nossas actividades – todas as ideias, a dado momento, têm que aterrar e inscrever-se sobre o espaço físico – valorizar as potencialidades do solo, reconhecendo que este tem funções ambientais, económicas, sociais e culturais. Quando ouvimos falar de planos ou programas de ordenamento do território, estamos na verdade a falar de, literalmente, projectar e desenhar sobre as nossas paisagens aquilo que são as nossas intenções e opções para o futuro. Políticas territoriais são um palavrão para dizer algo tão simples como: afinal o que queremos fazer com a nossa vida? Esta lei pretende fundamentalmente assegurar que a coesão nacional sai reforçada desses exercícios de futurologia apoiada, equilibrando o fenómeno da edificação, corrigindo assimetrias regionais e assegurando a igualdade de oportunidades dos cidadãos no acesso a infra-estruturas, equipamentos, serviços e funções urbanas. Tudo isto, claro, sob as bandeiras da sustentabilidade, da competitividade económica territorial, da criação de emprego e da organização eficiente do mercado fundiário, tendo em vista evitar a especulação imobiliária e as práticas lesivas do interesse geral. Contido o riso, sabemos que nada disto tem acontecido em Portugal, e muito menos no Algarve. Em particular cá no feudo regional, quase tudo é especulativo, e muito pouco é realista ou corresponde a um projecto de construção de futuro. É uma espécie de laissez-faire ao sabor de interesses pouco claros – porque descolados de uma lógica de coesão e de futuro para além do imediato –, quase sempre imobiliários, e, afinal de contas, nada sustentáveis, como se pode comprovar pela “solidez” da economia regional perante um fenómeno como a COVID-19 – que se pode revestir de muitas outras formas, não tão dramáticas, mas igualmente impactantes. Não é que a iniciativa privada seja negativa, muito pelo contrário. Mal do Mundo se não fosse a iniciativa privada. Mas está mais do que comprovado que esta precisa de enquadramento e arbitragem. Neste dia também ele revolucionário, peçamos então: a paisagem a quem a vive! O estado a que chegámos não vai mudar de repente, não tenhamos ilusões. Mas a mudança tem que começar por algum lado. Em boa verdade, nós, o Estado, só podemos cobrar directamente à Administração Pública, nos seus diferentes níveis organizacionais. Peçamos então que a Administração Pública, em definitivo, se empenhe nos processos de planeamento e ordenamento, levando-os a sério, desde logo abdicando das suas frequentemente especulativas iniciativas territoriais – infra-estruturas, equipamentos e espaços públicos (até porque aquela mesma LBGPPSOTU prevê, no seu Art.º 18.º [Reserva de solo], que se um Município não as concretizar num prazo determinado – comprando a propriedade ou de outra forma – a reserva de solo para esse fim caduca)*. Não diga que vai fazer o que não sabe como, e saiba como fazer o que diz que fará. Porque há diferenças entre a paisagem que virá e aquela que há-de vir. * um processo que tem muito que se lhe diga na sua aplicação, quer para o privado, quer para o público...
2 Comments
Miguel
2/5/2020 18:09:43
Subscrevo (repetindo-me) a sua análise Gonçalo, e muito me agrada a variante mais politica que descreveu.
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Gonçalo Duarte Gomes
9/5/2020 19:49:29
Miguel, a paisagem é a afirmação política por excelência. Nela se inscreve a estratégia, ou falta dela, de um povo e de um tempo.
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