Por Gonçalo Duarte Gomes O poeta Ovídio legou-nos, entre outras obras, "A arte de amar", escrita mais ou menos pela altura em que Jesus Cristo nasceu. Aconselhava-nos aí a considerar os ofícios do coração na perspectiva dinâmica de um jogo, em perpétua mutação, com avanços e recuos, inebriantes e pírricas vitórias e amargas e gloriosas derrotas. Em Portugal, esse jogo revela-se tão duro, que deveria ser obrigatória a utilização de protecções, ao estilo do hóquei no gelo. Principalmente para as mulheres, pois são elas quem mais vezes acaba no frio de uma câmara frigorífica, numa qualquer morgue, de Norte a Sul do País, como cadáveres que bóiam num mar de lágrimas de crocodilo. Não faltam, na agenda regional, acontecimentos interessantes sobre os quais gostaria de hoje escrever. Destacaria, por maioria de razões, opções diametralmente opostas em termos de ordenamento território, oscilando entre a proposta de materialização de um plano que viabiliza o avanço da ocupação litoral, com a construção de mais três unidades hoteleiras em cima de arribas no Concelho de Portimão, e a decisão administrativa da Câmara Municipal de Loulé, de suspender parcialmente o seu Plano Director Municipal para inviabilizar a densificação da edificação num sector junto à sua linha costeira.
Sobre ambas, em particular e num contexto mais amplo, muito haveria a dizer. Mas nem sempre podemos escrever sobre o que mais gostamos, e nem sempre quando gostaríamos de o fazer. Porque há temas urgentes, que se impõem. Até porque este Lugar ao Sul não se esgota nas fronteiras do Algarve. É também o lugar do Algarve na abrangência do País. Do País onde, apenas em Janeiro de 2019, dez (10) mulheres foram assassinadas em contexto de violência doméstica. 10 mulheres. 10 mães. 10 filhas. 10 irmãs. 10 companheiras. 10 amigas. O amor é uma arte, como dizia o poeta. Mas violenta. Porque é visceral. Profunda. Animal. E a nossa animalidade é, ainda hoje e sob tantas roupagens que lhe emprestamos, mal resolvida. É por isso que, embora plenos de amor, nos agredimos e magoamos com frequência. Nas palavras, na exaltação, no silêncio, nos pequenos gestos que irritam, na ausência dos pequenos gestos que deliciam. Arrufos, discussões, desencontros, normalidades absurdas de um jogo, por vezes sujo, cujas regras não dominamos, nem dominaremos nunca, e que, no dia em que for esterilizado, higienizado e purgado destas texturas inconfessáveis, deixará de ser amor, tornando-se matemática. E deixaremos de ser humanos. E é precisamente da humanidade que alguns abdicam, quando as desafinações da paixão se transformam em algo mais. Na posse que oprime, no gesto que intimida, na presença que abafa, nos olhos que odeiam, nas mãos que empurram, socam, esbofeteiam, sufocam e empunham a lâmina (entre marido e mulher, meta-se tudo menos a colher), no dedo que prime um gatilho. Porque lá no fundo, bem fundo – ou nem tanto assim – de alguns, em sítios obscuros da nossa animalidade mal resolvida, habitam feras. Selvagens. Monstruosas. Atentas. À espreita. À espera. De oportunidade. Surgida essa oportunidade, e libertas as feras, os monstros vêm à tona, num ímpeto incontrolável e violento. Mortal. E a monstruosidade, percebemos então, é afinal contagiante. Quando lavra no silêncio cúmplice, de quem cala nos monstros alheios o assustador reflexo dos seus próprios. Ou quando alastra nos monstros que em nós desperta, sedentos de vingança alheia, de desejo de provocar igual dor, igual medo, igual impotência, infinito terror de um fim que se aproxima e do qual não há fuga possível. Enquanto à volta todos vêem, mas desviam o olhar. E todos calam. Porque este é um País de silêncio. Um silêncio pastoso, que nem os gritos de dor e de morte rompem. Gritos surdos, abandonados à sorte do ridículo, da vergonha de quem pede ajuda e lha negam, do desespero, do pavor. Gritos de quem foge, sem saber porquê ou para onde. Porque impera a lógica popular. A lógica do quem está mal, muda-se. E é por isso que é a vítima quem se desloca do seu meio, quem quebra as suas rotinas, quem abandona o "conforto" do seu lar rumo a um “abrigo”, quem é proscrita... como se fora o agressor. É só mais um dentro dos nossos inúmeros paradoxos. Mas este mata e, pelos vistos, já à razão de 2 mulheres por semana... Do sistema judicial, as respostas são assustadoras. Oscilando entre a omissão e a boçalidade, raras vezes as leis fazem cumprir justiça ou, o que seria preferível, evitam o derradeiro crime. Um sistema ferido pela ausência da elevação moral, da idoneidade e da probidade que ergue a Justiça como pilar de uma democracia e de um Estado de Direito, que afecta parte significativa dos seus agentes. Um vazio que é notório na forma como as queixas são tratadas, que é gritante nas sentenças que são proferidas, que é esmagador na indiferença dos decisores. Dão o que têm, dir-se-á. Mas, neste caso, a mais deviam ser obrigados. Por uma sociedade a eles superior. Que não é. Ontem foi Dia dos Namorados. 10 mulheres não o viveram. Porventura nunca. 10 mães. 10 filhas. 10 irmãs. 10 companheiras. 10 amigas. Minhas. Vossas. Nossas. O sangue delas mancha as nossas mãos.
1 Comment
Miguel
15/2/2019 01:44:21
Óptimo texto Gonçalo, como sempre, longe de me considerar (quem o poderá fazer?) um expert nas lides emocionais, até porque sou millennial e assim a minha experiência sobre o tema têm o limite da minha idade, mas acho que os vergonhosos números de violência conjugal e a forma como a mesma é abordada na sociedade vão muito para além de visceralidades latentes.
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