Por Gonçalo Duarte Gomes Turismo no Algarve escreve-se com letras de néon – e o turismo em tempos até reescreveu o Allgarve, num alegre e pitoresco episódio de prostituição regional. Tudo, desde o formigueiro etílico de Albufeira ao desfile de gente apuradamente bonita pelos bares da gente famosa em que interessa ser visto nas noites de Vilamoura, passando pelas sunset-party um pouco por qualquer cantinho com areia que dê para assentar uma mesinha para o DJ ou um transístor mais potente e pelas boat-party que transformam qualquer tarde na praia num baile funk de favela à distância, tem que ter movida e aquilo que hoje passa por glamour. Mas há ainda quem acredite que o “ardente Algarve impressionista e mole, (…) lindo preguiçoso adormecido ao Sol” de João Lúcio tem o seu espaço. E leve canecos para casa à pala de tal crença! Falo, muito concretamente, da recente distinção da Casa Modesta, uma unidade de turismo rural no Concelho de Olhão, nos Architizer A+Awards. Ganhar prémios é sempre bom. No entanto, importa contrariar um sentimento que muitas vezes se instala, percebendo que este projecto não tem mérito a partir de agora, porque é reconhecido, mas antes é a partir de agora reconhecido porque sempre teve este mérito. Manter isto em mente é importante, para que percebamos que a modéstia, que neste caso dá mesmo nome ao empreendimento, esconde um imenso mas tranquilo e confiante valor, que dispensando alarde em seu redor, requer olhos bem abertos para o identificar. Já os pensadores clássicos o sabiam: A modéstia não pode ser considerada uma virtude, pois assemelha-se mais a um sofrimento do que a uma qualidade. Aristóteles Não quer isto ofuscar minimamente a particular importância deste reconhecimento internacional. Quer apenas dizer que talvez seja mais relevante para a região, enquanto ensinamento, do que propriamente para o hotel – que, de resto, já tem outros galardões, também de destaque. O júri da comunidade online Architizer.com ao atribuir um prémio, não identifica “apenas” os primus inter pares da poda arquitectónica, mas também projectos que representes contributos efectivos para modelos de sustentabilidade, que gerem impactos positivos na vida das comunidades. Para tal recorre a um vasto júri, composto por outras cabeças pensantes para além da esfera estrita da arquitectura. Resulta então deste prémio a valorização e chamada de atenção para diversas modestas virtudes, às quais o Algarve não tem prestado o devido cuidado. A primeira é a da aposta na identidade, na qualidade e na escala de proximidade, numa aproximação inovadora às raízes regionais. O colectivo de arquitectas PAr – plataforma de arquitectura, que lançou mãos à obra no exercício de reinterpretar a identidade algarvia de um imóvel – parte da história familiar de uma delas – trazendo-a para o tempo presente, passou bem ao largo de perigosos “very typicalzinhos” que por aí abundam, fugindo igualmente a um certo modernismo contemporâneo asséptico, redutor de todas as formas à sua mais pobre e elementar inexpressão. O resultado é uma arquitectura-chã, mas onde se lê a mudança na continuidade. Outra virtude é a da moderação. Grande, espampanante e massivo não equivale a qualidade, por muito boa que seja a filmagem do drone, ou a piroseira do slogan, ou os enésimos certificados ou “Maravilhas” que se compram. Neste Algarve das aparências, em que o simples, por muito bom que seja, nunca é bom que chegue, é portanto uma lufada de ar fresco. Talvez assim se perceba que, em vez de alimentar apenas artificialidades que nem deveriam precisar de colinho pelo seu mastodôntico tamanho, é também interessante acarinhar o que é pequeno, e provavelmente mais genuíno. Finalmente, dispara uma seta direitinha ao coração do complexado provincianismo saloio regional, e à sua relação mal resolvida com as suas bases. Este projecto assenta nas experiências locais para imergir quem o visita num outro mundo, assumindo e procurando mostrar o que por aqui há de autêntico e único. “Há quem lhe chame “férias”, nós chamamos-lhe “cultura””, lê-se no site. É sabido que na publicidade cada um diz o que quer, e não quer isso dizer que seja verdade, mas entre isto e “Visit Algarve”… enfim, são gostos. O Algarve é mediterrânico, português e essencialmente rural. E rural entenda-se não apenas no sentido estrito da actividade agrícola, mas sim de toda uma forma particular de relação e trabalho com o território, com os valores e recursos naturais e com o tempo, que se expressa num modelo de construção paisagística, legível na ocupação desde as serras e campos, até ao litoral. Pelo menos antes de entulharmos o cadáver dessa memória nos caboucos dos diferentes atentados paisagísticos. Esse carácter era, de resto, a sua virtude e o seu sortilégio. Ainda é, dirão alguns. Distraídos, chamar-lhes-ei, e alertarei para o desejável fim da nossa involuntária condição de “predador turístico”, decorrente da tragédia humana que assola as águas do Mediterrâneo e destinos nossos concorrentes, afugentando na nossa direcção magotes de visitantes. Esse momento assentar-nos-á os pés de volta a um chão algo acidentado… Não perceber o quão genérico o Algarve se está a tornar, no sentido que Rem Koolhaas cunhou para as cidades, é dramático, pois quer dizer que a descaracterização da região (que a torna facilmente substituível e descartável) já é mais profunda do que mamarrachos, relvados, palmeiras ou estufas: enraizou de vez nas mentes e percepções. Também elas modestas, mas de toda uma outra forma.
2 Comments
Joaquim Fernandes
20/9/2017 15:22:53
Obrigado pela palavras sábias, cultas e sinceras.
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Gonçalo Duarte Gomes
22/9/2017 10:46:24
Nada a agradecer. É genuína a admiração pela ideia e pela realização deste projecto.
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