Por Gonçalo Duarte Gomes A 30 de Outubro de 1938, faz hoje precisamente 82 anos, uma versão radializada da novela alegórica "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells, foi emitida pelo Columbia Broadcasting System, narrada por Orson Welles, causando grande alarme e agitação social - e até episódios de pânico em alguns locais - nos Estados Unidos da América, por muita gente crer que era real a ficção radiofonicamente relatada. O argumento, hoje banal, foi na altura pioneiro: uma raça alienígena, fisgada no domínio do planeta Terra, não se ensaiou de invadir este nosso terceiro calhau a contar do Sol para o conseguir, atacando simultaneamente vários pontos nevrálgicos. Pelo meio, eliminar a Humanidade não pareceu ideia incómoda. Ou pelo menos não houve pruridos de fazer mossa, vá. Grande. No fim de várias peripécias, são micróbios as formas de vida que defendem a honra do convento terráqueo, desgraçando inapelavelmente os invasores extraterrestres, vergonhosamente eliminados pelo equivalente a pé de atleta ou intoxicação alimentar. Foi, de forma muito simplista, este enredo que, navegando pelas ondas do éter, levou medo a muitos lares americanos que, à data, tinham na rádio o principal entretenimento do serão familiar.
Medo. Medo derivado da desinformação, da falta de conhecimento, da surpresa e do choque induzido pelo formato e da confiança depositada no veículo. Medo que medrou em substrato fértil, fruto da época, do contexto social, da novidade da coisa, do cunho dramático da radialização - importa lembrar a veia cinematográfica de Welles - e de uma certa inocência geral da sociedade face a fenómenos de natureza mediática e ainda mais no campo da ficção científica. A 30 de Outubro de 2020, em Portugal, num dia em que se aplica um conjunto de condicionamentos sociais cujo enquadramento constitucional não é claro aos olhos de um leigo, e muito menos é claro o seu fundamento objectivo, é importante evitar qualquer tipo de aproximação a um momento "Guerra dos Mundos", de medo pela mediatização e desinformação, porque estamos com um problema real em mãos, e não uma ficção. Quase 8 meses após o decreto da pandemia por parte da Organização Mundial de Saúde, e numa altura em que diariamente os meios de comunicação social - com o alto patrocínio das entidades oficiais - nos bombardeiam à exaustão com sensacionais limiares ultrapassados, no que a infecções e números de mortes diz respeito, o verdadeiro recorde é o do banho mediático promotor de medo em que todos somos mergulhados, sem que, no entanto, de tal esfrega aparentemente resulte grande higiene, pelo menos do ponto de vista informativo. Não porque faltem dados, mas porque falta o tratamento desses dados, de forma a transformá-los em informação e, depois, em conhecimento. Conhecimento esse que é a ferramenta de excelência para construir consciência e... combater o medo. Sem esse conhecimento, oscilaremos numa espiral descontrolada e desinformada, entre o medo incapacitante e a incompreensão que atrevidamente (inclusivamente através de movimentos que muitas vezes alardeiam pseudociência, ou ciência não sindicável) se auto legitima no incumprimento e desrespeito pelas normas vigentes. E num cansaço anímico insustentável. Não bastam números, é necessária a sua interpretação e clarificação - a cada caso positivo corresponde efectivamente um doente, mesmo quando, por exemplo, não há sintomas? Não bastam testes, é necessária a clarificação inequívoca da sua fiabilidade - por exemplo para despistar a suspeita de uma relação entre o recente disparar de testes positivos e a aproximação da época da gripe sazonal. Não bastam mortos - morreram de quê, exactamente? De ou com Covid? E os que morreram por falta de assistência, sem Covid, nem apelo ou agravo? São um sacrifício necessário, ou ficam na berma da História, esquecidos como danos colaterais, mesmo que os seus números esmaguem os da patologia do momento? Na mesma linha, é preciso que nos expliquem adequadamente porque é que os mortos - e os vivos que lhes prestam homenagem - são problemáticos, mas a ida a um espectáculo, uma corrida de automóveis, uma festa partidária ou um transporte público colectivo a abarrotar, não são. Os critérios são de saúde pública? São sócio-económicos? Uma ponderação entre ambos, em proporções fluidas? Quais os impactos esperados com as medidas a aplicar? E qual o balanço de tudo o que já se fez até aqui? Ou, ao fim dos tais quase 8 meses de pandemia, continuamos tão às cegas e aos apalpões como estávamos no início? Em tempos como este, que se afiguram (e anunciam) críticos, a coerência é um bem maior nas linhas de orientação que são dadas para que todos cumpram. Por outro lado, contradições, excepções mal explicadas e ausência de critérios objectivos... são uma Caixa de Pandora escancarada. Não é necessário paternalismo. Não é necessário autoritarismo. É necessária transparência. É necessária informação. Para que todos possam ser responsáveis e responsabilizados. Porque as pandemias vêm e vão, mas era bom que a ideia do Estado de Direito e da confiança nas instituições sobrevivesse, e de boa saúde.
1 Comment
Miguel
1/11/2020 12:26:21
Subscrevo inteiramente, Gonçalo, cada paragrafo seu.
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