Numa altura em que descentralização de competências e regionalização se voltam a debater, o Lugar ao Sul recebe novamente a Andreia Fidalgo, que com autoridade coloca todas estas questões, de reformas administrativas, numa perspectiva histórica com particular incidência sobre o caso do Algarve. Andaremos perpetuamente a tentar reinventar a roda, por incapacidade de aprender com os erros e os sucessos passados? Gonçalo Duarte Gomes Por Andreia Fidalgo No passado dia 15 de Janeiro, o Lugar ao Sul reuniu-se na Casa do Sal, em Castro Marim, para um debate sobre descentralização de competências e regionalização, ao qual tive todo o prazer de assistir, quer pelo interesse e actualidade da temática abordada, quer pela qualidade das intervenções. As diversas opiniões apresentadas foram maioritariamente favoráveis à descentralização de competências e à regionalização, mas questionaram de forma crítica, por exemplo, a (in)existência de um plano coerente de implementação, a presença e (in)eficácia de organismos intermédios de carácter regional, o aumento de assimetrias entre os concelhos mais pequenos e os maiores, ou, também, o real papel dos municípios em todo este processo, os quais podem ser observados quase como meros executores de tarefas, sem verdadeira autonomia ou poder decisório, que permanece na esfera da administração central. Enquanto seguia com atenção o debate, e ouvia acerca dos problemas inerentes às reais funções do município no processo de descentralização, lembrei-me de um anedótico episódio histórico que envolve o Rei D. Carlos, o mar, e “cidadãos portugueses”. Numa das suas campanhas oceanográficas – uma das áreas científicas de eleição deste monarca erudito – D. Carlos ter-se-ia deparado, em pleno alto mar, com uma embarcação de pescadores. Tendo dificuldade em perceber a origem da embarcação, o monarca acercou-se dela e, dirigindo-se aos pescadores, pergunta: “Vocês são pescadores de Portugal ou de Espanha?”. A resposta, bastante assertiva, não se teria feito esperar: “Nem uma coisa, nem outra. Somos da Póvoa do Varzim”. Não tenho a menor dúvida de que se ocorresse este episódio ao largo da costa do Reino do Algarve, a resposta só seria diferente por mudança óbvia da localidade referida, que seria provavelmente Vila Real de Santo António, Olhão ou Portimão – apenas para mencionar as de maior pujança piscatória naquela época. Serve este pequeno episódio de mote à análise histórica que surge a propósito da actual “descentralização de competências”, pois permite colocar em confronto o binómio centralismo-municipalismo, ou seja, os dois poderes fundamentais e absolutamente estruturantes, presentes desde a génese de Portugal: por um lado, o poder do Estado, aqui personificado e centralizado na figura do monarca D. Carlos que, como não poderia deixar de ser, olha com soberania para Portugal como o todo do território que governa; por outro lado, o poder municipal, representado pelos pescadores, que em termos identitários se associam primordialmente ao município de onde são oriundos e que corresponde efectivamente à estrutura administrativa que mais impacto directo tem no seu quotidiano. Serve também este episódio para recordar que os problemas levantados pelo centralismo vs. municipalismo (ou centralização vs. descentralização, para utilizar uma terminologia mais actual) não são apenas problemas das últimas décadas… São tão antigos quanto a própria existência de Portugal. Na realidade, durante séculos os municípios detiveram um importante e decisivo papel administrativo e foram fundamentais para a manutenção da ordem, coesão e estruturação do território português. Paralelamente, também durante séculos, as constantes tentativas de reforço do poder central sempre entraram em conflito com o municipalismo, do qual o Estado nunca pode prescindir – hipótese que se chegou mesmo a equacionar no século das Luzes – por ter sido sempre incapaz de criar estruturas administrativas eficazes que dispensassem o apoio dos municípios. Não caberia aqui fazer uma história do municipalismo e centralismo em Portugal, mas afigura-se particularmente interessante analisar, neste contexto, a segunda metade do século XVIII e tomar como caso de estudo o Algarve. Desde logo porque é durante esse período que se vai assistir, em Portugal, com o Marquês de Pombal, a um reforço do Absolutismo, doutrina política que implica necessariamente uma centralização do poder – que se quer concentrado nas mãos do soberano – e que neste contexto se encontra intimamente ligado ao reformismo ilustrado, ou seja, à implementação sistemática de reformas por parte do Estado ao território sob o seu domínio e em diversas áreas. Neste cenário de reforço do poder real, o Algarve foi particularmente visado, na medida em que foi a única região portuguesa alvo, no todo do seu território, de um plano estratégico de reforma que, não obstante ter sido sobretudo empreendida com objectivos de desenvolvimento económico, teve também repercussões a nível administrativo, e cuja finalidade foi precisamente o reforço do poder central e a redução do campo de actuação e autonomia municipais. Aliás, a reforma administrativa do Algarve pelo Marquês de Pombal, empreendida sobretudo no ano de 1773, foi uma reforma sem quaisquer precedentes no contexto nacional, que vai inclusivamente antecipar-se à Lei da Reforma das Comarcas, de 1790, direccionada a todo o território português, que teve por objectivo a criação de um novo sistema de jurisdição e de administração das províncias, precisamente na mesma lógica de reforço do poder central. De uma forma muito sucinta, a reforma administrativa do Algarve, estabelecida por alvará de 16 de Janeiro de 1773, decretou a extinção do concelho de Alvor, que doravante passaria a lugar do concelho de Vila Nova de Portimão, e dividiu o empobrecido e vasto concelho de Silves, criando dois novos concelhos: o de Monchique e o de Lagoa. Mais tarde, no Algarve oriental, fundar-se-ia Vila Real de Santo António, inaugurada a 13 de Maio de 1776, que incorporaria o entretanto extinto concelho de Cacela. Pode parecer esta criação de novos concelhos algo contraditória com a ideia de centralização e reforço do poder central, mas não o é, se atendermos ao funcionamento municipal durante época moderna. É que à vereação municipal presidia o juiz de fora, magistrado de nomeação régia que garantia a presença constante do poder estatal no município. A estratégia pombalina de centralização passava, portanto, pela presença de maior número de oficiais do Estado na região e, simultaneamente, procurava limitar o poder económico das elites municipais que também integravam os cargos da vereação. Por outro lado, a reorganização administrativa pombalina também garantia um melhor controlo do território pela divisão mais equilibrada das comarcas algarvias, as quais poderíamos designar por divisões administrativas intermédias, conglomeradas na provedoria das comarcas do Algarve, presididas, respectivamente, por corregedores e um provedor, que eram magistrados administrativos e judiciais também de nomeação e representação régia. O Algarve encontrava-se dividido em três comarcas, que após a reforma administrativa pombalina se configuravam da seguinte forma: Tavira, que incorporava os concelhos de Tavira, Castro Marim, Loulé e Vila Real de Santo António; Faro, constituída pelos concelhos de Faro, Silves e Lagoa; e Lagos, que contava os concelhos de Lagos, Albufeira, Portimão, Vila do Bispo e Aljezur. Os corregedores e/ou provedores eram os oficiais que faziam a ligação entre o centro e a periferia, ou seja, entre o Estado e os municípios, estando inclusivamente presentes nas eleições municipais dos vereadores e almotacés, ou incumbindo-se, a nível local, da cobrança dos impostos mais lucrativos (ex: sisas, décimas) e da fiscalização dos cofres. Tinham, portanto, um amplo campo de actuação, que passava pelo desempenho de funções administrativas, judiciais e fiscais. O Algarve enquanto caso de estudo permite perceber que a estratégia pombalina de centralização passou por uma reorganização administrativa que previa a presença mais efectiva de oficiais de nomeação régia no território, que serviriam de intermediários entre o poder central e o municipal. A actuação reformista na região coaduna-se perfeitamente com o avanço do modelo centralista a partir da segunda metade do século XVIII, e enquadrado no Absolutismo, sendo que em períodos pré-pombalinos observava-se maioritariamente um modelo no qual o poder se encontrava distribuído entre várias instituições e corpos sociais, sendo que cabia ao monarca como representante do poder central a coordenação e manutenção do equilíbrio entre os diversos poderes. Mas o avanço do modelo centralista não foi apenas apanágio do período pombalino; foi, na verdade, uma tendência que não só se manteve em períodos subsequentes, como foi cada vez mais reforçada a partir do Liberalismo em diante. Aliás, a centúria de Oitocentos foi profundamente marcada pelo debate em torno do(s) nacionalismo(s) e pela construção de uma identidade nacional, sendo que o Estado Nação se queria forte e coeso, logo, profundamente centralizado. Ainda assim, durante os vários períodos ergueram-se sempre vozes dissonantes em defesa do municipalismo – tal como Alexandre Herculano, no período liberal – e o debate entre centralização e descentralização tem sido sempre uma constante. Convém não esquecer, pois, que a “descentralização de competências” que marca a actualidade seguiu outrora um rumo perfeitamente inverso de “centralização de competências” que podemos sempre resumir à já sobejamente conhecida afirmação de Ega, n’Os Maias de Eça de Queirós: “Lisboa é Portugal. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!...”.
Ademais, a História tende a mostrar que, em termos gerais, o centralismo e o municipalismo são dois modelos que podem coexistir e que, aliás, têm coexistido, mas que podem não conviver da melhor forma quando não há equilíbrio entre ambos, sendo que quando o Estado se quer forte, os concelhos tendem a ser apenas pontos de apoio na execução de decisões e directrizes que emanam do centro. Retomando o fio à meada, um dos actuais problemas da descentralização de competências passa exactamente pela delegação dessas mesmas competências nos municípios, pelo que convém esclarecer exactamente em que moldes são as mesmas delegadas e convém esclarecer, também, até onde vai, realmente, o poder de decisão/actuação de um município. Porque, no fundo, tudo se resume ao exercício do poder. Um poder sucessivamente centralizado no Estado ao longo de mais de duas centúrias… um poder do qual o Estado, centralista, tem óbvia dificuldade em abdicar. Todos estes problemas se adensam se lhes adicionarmos um outro nível supra: o da regionalização, processo agora adiado para 2023. O relatório da Comissão Independente para a Descentralização, tornado público em Julho do ano passado, defendia a necessidade de se manterem as Comunidades Intermunicipais e de se fazer coincidir as futuras Juntas Regionais com as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), nas quais caberia reforçar a actuação no desenvolvimento da região, no ordenamento dos territórios e das cidades, no ambiente e na cooperação regional transfronteiriça, sendo que progressivamente também lhes seriam atribuídas competências nos domínios da cultura, da agricultura, da educação e da saúde. Ora, parece-me óbvio que esta visão em torno da regionalização requer uma estratégia de coesão e entendimento entre os municípios, algo que, no caso do Algarve, pelo menos, parece sempre tão difícil de alcançar… Voltando à história do Rei D. Carlos que se acerca dos pescadores e lhes questiona a proveniência, creio que a resposta destes homens do mar, fossem eles algarvios, provavelmente não seria “Somos do Algarve”. Serve este pequeno exercício contrafactual para questionar se existe realmente uma identidade regional capaz de ultrapassar a aparente falta de entendimento e até rivalidade entre os municípios algarvios, e que favoreça uma união em prol do bem comum… Mas este é um tópico que deixo em aberto para uma futura reflexão.
4 Comments
Miguel
24/1/2020 12:00:59
Uma análise deveras pertinente, relativamente à questão levantada: existirá uma identidade comum algarvia? Tudo aponta que sim, de Vila Real a Sagres visível nos costumes, nas tradições, que não sendo réplicas umas das outras possuem um grau de semelhança e entrosamento suficientes para que possam ser consideradas cultura comum; o processo de regionalização em Portugal assume proporções de pura esquizofrenia, sendo um processo completamente natural e essencial para o desenvolvimento das regiões numa zona geográfica - Europa - onde as regiões irão paulatinamente assumir funções de Estado Central.
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Andreia Fidalgo
24/1/2020 15:57:49
Miguel, agradeço o seu comentário igualmente pertinente. No que respeita à identidade algarvia, não a nego porque também a acho evidente, mas por vezes parece-me que é uma identidade mais palpável para os que nos olham a partir de fora da região do que propriamente para os que vivem nela. Creio que na própria região a identidade municipal prevalece acima da identidade regional e isso é patente nas pequenas rivalidades que perpassam toda a sociedade e se reflectem inclusivamente na falta de entendimento entre os municípios para iniciativas que à partida seriam simples e beneficiariam o todo e não apenas a parte. Por isso questiono se a regionalização tem "pernas para andar" numa região com estes contornos e com uma falta de coesão tão evidente em si mesma. Contudo, concordo absolutamente com a ideia de não podermos continuar a perpetuar este modelo de Centro-Lisboa e Periferia-Paisagem que só tem contribuído para aumentar as assimetrias e para criar cidadãos de primeira e cidadãos de segunda no país.
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Miguel
24/1/2020 18:48:56
Concordo num ponto consigo Andreia, para quem vem de fora as especificidades algarvias são rapidamente palpáveis, mas sendo eu um algarvio de gema com antepassados pelo menos até ao séc XIX oriundos de cá, e conhecendo a região de lés a lés, muito facilmente se encontram as semelhanças seja nas artes piscatórias, na gastronomia, no pomar de sequeiro etc etc.
Andreia Fidalgo
25/1/2020 14:50:02
Miguel, concordo consigo nas críticas que faz à Academia, de que eu própria faço parte (aliás, desde 2004 que nunca mais de lá saí). Vejo as universidades muito fechadas em si mesmas e pouco dedicadas à intervenção na sociedade e à formação de cidadãos activos e críticos. Não creio, porém, que isto seja problema exclusivo da Universidade do Algarve, pois vejo a apatia muito generalizada a praticamente todas as instituições de ensino superior que conheço. Creio, pois, que o problema é geral, ainda que eu seja mais optimista relativamente à realidade que conheço e acredite que existam algumas excepções notáveis neste panorama desolador. Por outro lado, também não sou favorável à ideia de uma universidade "regional", ainda que defenda que a universidade deve ter um papel interventivo na sociedade que a rodeia, como é óbvio. Mas olhar para a universidade sob o ponto de vista regional é limitador e contrário, a meu ver, à própria definição de universidade, que se quer "universal" e deve formar cidadãos, sim, mas cidadãos prontos a encarar o mundo que os rodeia seja em que parte globo decidam escolher viver. Claro que, pela proximidade, este modelo ideal teria impacto directo na sociedade regional mais próxima, mas não se deve limitar exclusivamente a ela. Por outro lado, também creio que a universidade não faz milagres... isto é, o fomento do espírito crítico deve fazer-se desde a mais tenra idade e não apenas quando se chega à universidade. Será que temos um ensino, desde o 1º ciclo ao secundário, que ensina realmente a pensar? É que, se não temos, também não podemos esperar que as universidades o consigam fazer por si só. Quanto à questão da regionalização e da identidade regional, conto escrever outro pequeno artigo (sempre do ponto de vista da análise histórica) sobre o tópico dentro em breve, pelo que nessa altura talvez possamos voltar a discutir estas questões... Mas temo realmente que as rivalidades municipais se sobreponham aos interesses do todo, e que não sejam apenas carolice, tal como refere. Leave a Reply. |
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