Por Gonçalo Duarte Gomes Nos últimos dias todos estivemos em Pedrógão Grande. A calamidade ali ocorrida tomou-nos de assalto, emocional e intelectualmente. Pelo esmagador número de vidas perdidas, em condições de puro e inimaginável terror, pela desolação deixada pela dimensão e devastação do fogo, pela angústia do caos operacional que se instalou, pelos limites de decência que se quebraram e os horizontes de desfaçatez que se abriram, desde entrevistadoras de cadáveres a salteadores de evacuados, comandantes balofos que perdem aviões, um Presidente a pedir legislação sobre o joelho (sim, porque a pressa e a legislação têm feito maravilhas), desvio de donativos para fundos estatais, petições para instauração de trabalhos forçados, dislates de toda a espécie, em todo um mergulho num mundo surreal. Mas tocou-nos, subliminarmente, a sensação presente de que, em vez das dezenas que perderam a vida, poderíamos ser nós. E seremos. Amanhã, depois, para a semana, daqui a um, cinco, dez anos, em Góis, no Soajo, em Odemira, Silves, Cabeça do Velho, Cachopo ou no Funchal. Porque, tal como estamos, tudo se reduz a uma perigosa partida de roleta-russa. A catarse do que ocorreu em Pedrógão é um processo que deveria – a descrença não permite afirmar que deverá – ocupar-nos a todos, enquanto colectivo e não apenas somatório de individualidades, durante muito, muito tempo. Mais precisamente, o tempo necessário até se conseguirem rectificar os erros estruturais que estão na base, que são complexos, intrincados, variados e nem sempre imediatamente perceptíveis e muito menos cabem neste espaço.
Porque não é este fogo, nas suas dramáticas especificidades, o centro da questão, mas antes toda uma organização territorial e social, cujo falhanço nos deve levar a colocar muita coisa em causa. A melhor homenagem que se poderia prestar a todos os que morreram em consequência de fogos florestais seria a reforma do sistema que os vitimou. Já não pelos que nos deixaram, e que nada nem ninguém trará de volta, mas justamente pelos que, caso nada seja feito, irão seguramente engrossar o rol de vítimas. Para já não se vislumbra como, pois prevalece aquela ideia, muito portuguesa, e com patrocínio governamental, de que tudo foi fruto do acaso e que, como tal, são coisas que acontecem. Nada a fazer, nada para ver, sigamos com as nossas vidas. Não. Não. Não. Morreu gente demais, perdeu-se demasiado. Não que o Governo seja o culpado. É apenas mais um culpado, a juntar a tantos outros. Onde estamos também nós, todos nós, que não “eles” (aquela entidade de costas largas), eleitores e fiscais do trabalho dos decisores que somos. Sobre isto, tive oportunidade de reflectir, genericamente, aqui. No entanto, é este Governo, porque é o Governo (e não uma mera comissão de festas), que vai ter que demonstrar se é capaz de algo mais para além do deplorável espectáculo circense de sacudidelas de água do capote, qual bando de gaiatos aflitos, com que nos brindou até aqui, usando a teoria da casualidade como versão secular da ira divina. Até agora apenas mostrou ausência de dimensão de Estado. Resta saber se a consegue alcançar. E depois deste Governo, muitos outros. Porque o problema não é redutível à incompetência do governo A ou B, nem a um só tempo, está diluído num tóxico cocktail de inaptidão, ignorância, displicência e falta de idoneidade, que a classe partidária parece partilhar desde há décadas, ao qual nós juntamos a indiferença e a tolerância para com a mediocridade e a impunidade. Por isso mesmo, outros terão também que superar-se e erguer-se à altura das responsabilidades, apesar de agora provavelmente se disporem a iniciar uma encarniçada batalha partidária, fazendo de conta que nunca participaram do problema, porque a hipocrisia e o desplante são, para já, os fluidos vitais que alimentam este sistema. Também os que interesseira, interessada e obedientemente se têm remetido ao silêncio terão que emergir da lama em que se arrastam, ou calarem-se para sempre, esmagados pelo peso da vergonha e da falta de dignidade. E nós teremos que elevar-nos com todos eles. Porque é o nosso País que está desestruturado, desequilibrado, largamente despovoado, abandonado e inerte. E é por falta de gente, de actividades, de vida e de vivência, que o acaso ou o deliberado, quando surgem, não encontram qualquer preparação, nada nem ninguém, nenhuma estrutura, nenhum sistema de paisagem, nenhuns olhos ou mãos capazes de encaixar as suas consequências. Em paisagens mortas, a morte joga em casa. Este novelo possui múltiplas linhas que se entrecruzam: humanas, ecológicas, administrativas, institucionais, legais, económicas, etc.. Quando bem entrelaçadas, formam um tecido coerente e reconhecível. Enroladas sem critério, são apenas um conjunto de infindáveis nós. E é por isso que, tal como os equinócios e os solstícios se sucedem, assim andamos nós, ora a discutir incêndios porque no Verão faz calor, ora a discutir cheias porque no Inverno chove. Como um cão que persegue a sua cauda, assim perseguimos nós sempre os sintomas, nunca as causas. É estrutural. Temos conhecimento (que embora disponível todo o ano, apenas ganha espaço e interessa enquanto combustível para alimentar a fogueira mediática da “época dos fogos”). Temos capacidade. Falta-nos carácter. Temos muito para mudar, imenso para fazer. Em conjunto, com a responsabilidade e a noção do interesse comum acima do mero somatório dos interesses particulares de cada um, e até mesmo de cada geração. É essa a profundidade do problema, é esse o dilema perante o qual estamos colocados, com a resposta em aberto. Bom ou mau, seremos o que decidirmos ser. E o Algarve nisto tudo? Olhem para ele, com olhos de ver. Lembrem-se de passados recentes, percorram o seu interior, as suas serras. Agora imaginem algo tão fortuito como um raio que cai, em qualquer lado, a qualquer hora. Sentem-se confiantes?
1 Comment
MICHAEL FERRADA
23/6/2017 19:58:06
16 Fósforos num Algarve.. Um Barril de Pólvora! A razão dos Incendios... de Gonçalo Gomes de "Lugar ao Sul"... Subscrevo na Íntegra o Post! Parte do mesmo... "Porque é o nosso País que está Desestruturado, Desequilibrado, Largamente Despovoado, Abandonado e Inerte. E é por Falta de Gente, de Actividades, de Vida e de Vivência, que o Acaso ou o Deliberado, quando Surgem, Não Encontram qualquer Preparação, Nada Nem Ninguém, Nenhuma Estrutura, nenhum Sistema de Paisagem, Nenhuns Olhos ou Mãos Capazes de Encaixar as suas Consequências.
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