Por Gonçalo Duarte Gomes Apesar do Verão não ter ainda aportado a estas bandas, o Algarve já vai aquecendo graças a alguns temas, cuja discussão na praça pública revela um muito algarvio almareio cívico. No que à questão da cidadania diz respeito, somos como o cão que persegue a própria cauda: não sabemos bem porque o fazemos, e se alguma vez a conseguirmos abocanhar… não saberemos o que fazer com ela! Pontapé de saída no dia do regional censor cívico.
Sai uma bica e uma indignação, em lume brando, quanto às opções urbanísticas na capital da região, passando inevitavelmente pela recente demolição dos edifícios na Rua Reitor Teixeira Guedes, que despreocupadamente reduziu a escombros mais uma parte da memória e identidade da cidade. “A cidade segue em roda livre, vendendo-se a pataco, sem que eles tenham uma estratégia ou ideia clara do que é identitário e de como o preservar e promover”, sentencia! De caminho, e enquanto o pastel de nata vem e não vem, um lamento pela falta de investimento na qualidade dos espaços exteriores, um resmungo relativamente à chatice que é a calçada à portuguesa, e um suspiro pela sua erradicação. Coerência oblige. Mais pela hora do almoço, toca de pôr o espírito crítico novamente a fervilhar, desta feita em torno da regeneração (ou gentrificação?) urbana de Olhão que, mesmo com reabilitações patrimoniais tecnicamente bem conseguidas, está ferida pela nacionalidade das carteiras que as financiam. Como o bacalhau à Zé do Pipo já arrefece no prato, resume: “avecs e quejandos, o que sabem eles dessa proletária condição elitista que é o olhanismo? Era fazer um muro de meter inveja ao Trump, e só entrava quem largasse um mó a preceito… e já agora, que afronta é esta de mexer nos espaços ribeirinhos da cidade, retirando a gamela dos patinhos?”. Conclusão incontornável: “a cidade segue em roda livre, vendendo-se a pataco, sem que eles tenham uma estratégia ou ideia clara do que é identitário e de como o preservar e promover”! À hora do lanche, baterias apontadas ao furo prospectivo que a Eni e a Galp estão autorizadas a fazer ao largo da costa de Aljezur em busca de hidrocarbonetos, por um Governo inocentemente distraído que não percebe que o que faz é o contrário do que prega, asininamente adiando a procura e consolidação de alternativas mais perenes e anacronicamente perpetuando um modelo energético que, embora nos tenha servido bem, e continue a servir, também nos corrói a qualidade ambiental. Poucas dúvidas há, pois “o ambiente é a base do turismo, a nossa galinha dos ovos de oiro, por isso é um bem comum e um direito que todos temos o dever de preservar”. Pelo menos até ao jantar, altura em que é tempo de parir as dores dos ocupantes do Domínio Público Marítimo nas ilhas-barreira da Ria Formosa contra a demolição das edificações ilegais, mantendo assim o status quo que permite que uns poucos se apropriem do que, sendo de todos, não deveria ser de ninguém, destruindo ecossistemas classificados e protegidos. “Umas casitas não prejudicam ninguém, e se dizem que vivem lá desde antes do Afonso Henriques bater na mãe, é porque é verdade, mesmo depois dos Tribunais confirmarem que não!”. Afinal de contas, “ambiente sim senhor, mas as férias das pessoas estão primeiro”. Já pela ceia, volta tudo à primeira forma, e será tempo de criticar as ocupações de Domínio Público Marítimo, mas as protagonizadas pela malandragem burguesa que indevidamente seguiu o exemplo dos pobrezinhos. Importa lembrar que “aquilo é de todos, e não apenas de alguns”. Nesta montanha-russa o conceito de certo e errado, de público e privado, de interesse comum ou particular, molda-se freneticamente, consoante o tema e as afinidades ou azias suscitadas pelos protagonistas. Um molho de brócolos que acontece muito quando, em vez de se tratarem as questões pelos princípios que representam, se tratam pelas afinidades, sejam elas pessoais, partidárias (mesmo que aquilo que se defende seja uma traição efectiva à ideologia propalada – neste caso é o populismo que assim oblige…), territoriais ou outras... Neste jogo do empurra, a arbitragem deveria estar a cargo dos eleitos políticos. Mas, e porque a democracia é representativa, os nossos decisores são apenas fruto e reflexo da sociedade. Mas nem por isso deixamos de esperar a expiação de todos os pecados nesse Nirvana que é a regionalização, como se, por artes mágicas de redenção, tal nos colocasse a salvo de nós próprios. O João Fernandes escreveu neste Lugar, há pouco tempo, um texto relativo à política, acompanhado por uma ilustração de um conjunto de pessoas proclamando o seu ódio a essa mesma política, com uma corrosivamente provocatória legenda de “anencefalia generalizada”. Ele que me desculpe, mas apesar do interesse do seu texto, é naquele boneco que vejo, com brutal eloquência, a nossa condição colectiva, ainda que não vá tão longe na classificação desta regional (e nacional) circunstância política como letal anencefalia, ficando-me, vá, por uma esquizofrenia. O melhor tratamento da coisa, estilo um neuroléptico social, teria sido a aplicação preventiva de uma educação pela e para a cidadania, pelo menos no pós-25 de Abril, sem qualquer concessão ao facilitismo, ao populismo, à demagogia, à capciosidade ou ao facciosismo. Fez-se precisamente o contrário.
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