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Bem-vindo

No Algarve, goste-se ou não, manda a abstenção

1/10/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

​Sim, sim, é mais um texto sobre as recentes eleições autárquicas.

Desculpem lá, mas tem que ser, até para fazer um trio (em conjunto com este texto e estoutro), ou um tripé, que sempre é mais equilibrado.


Antes de mais, gosto sempre de recordar que, nestas coisas de eleições, não havendo fraudes ou falcatruas diversas, nem o cercear do direito de votar, os resultados são sempre bons, e os mais correctos, pois expressam a livre vontade dos que às urnas se dirigem.

Parecendo esta uma coisa simples, parece não entrar em muitas cabeças e estômagos, principalmente derrotados, que não ultrapassam a ignorância e fraco discernimento do povo que, tolo, neles não votou…

A democracia é um exercício de escolha, e não apenas de confirmação dos resultados apriorísticos que cada um desejava.

Portanto, parabéns a todos os eleitos, com votos de bom trabalho, na difícil execução dos mandatos agora conferidos e da pesada responsabilidade depositada sobre os seus ombros.

Mas o que resultou afinal da escolha dos algarvios?

Em termos de resultados, o panorama compôs-se desta forma, nos diferentes órgãos autárquicos (infografias Sul Informação, clicar nas imagens para ampliar):
As análises que desde então têm sido promovidas centram-se, naturalmente, nas mudanças de cor política de algumas autarquias ou na manutenção, reforço ou fragilização de outras.

Isto é compreensível, face à paixão, verdadeiramente clubística (em forma, substância e profundidade ideológica), que se vive em torno dos grandes blocos e interesses partidários. Mais ainda depois da autêntica governamentalização destas eleições autárquicas, em que a democracia local foi instrumentalizada e reduzida à condição de mero prolongamento do poder central, por exemplo com a famosa “bazuca” do Plano de Recuperação e Resiliência a ser acenada como “cenoura” reservada aos concelhos que, bem comportados, se alinhassem com a cor do Governo.

Mas o que é facto é que esse, bem como outros truques de prestidigitação propagandística, teve um único condão: afastar os eleitores.

O Algarve registou o segundo maior nível de abstenção entre os distritos de Portugal continental, com uma preocupante percentagem de 54,15%, atrás apenas do distrito de Setúbal (54,37%) e largamente acima da média nacional, de 46,35%. Dentro da região, e nos extremos da abstenção, Alcoutim destacou-se pela positiva (22,96%) e Loulé pela negativa (59,29%).

Mais, esta tentativa de polarização do voto resultou antes numa redistribuição de votantes, relativamente aos partidos veteranos (clicar nas imagens para ampliar):
Como é possível constatar, os ganhos de eleitores acontecem no PAN, nos movimentos de cidadãos (muitos deles com antigos responsáveis partidários à cabeça) e no grupo que engloba o CDS-PP e coligações (sem PSD), ao que não será alheio o que aconteceu em Portimão.

Junta-se a este quadro o resultado do estreante Chega, que conseguiu tornar-se a 4.ª força mais votada na região.

No entanto, pese embora a busca por uma maior diversidade na representação, nem novas nem velhas propostas foram capazes de atrair mais eleitores às urnas, relativamente às Autárquicas de 2017.

Na noite das eleições, quase todas as forças e candidatos perdem algum tempo a verter algumas lágrimas sobre o fenómeno da abstenção. Mas, iniciado o frenesim de reclamação universal de vitórias – grandes, pequenas, de Pirro e até… as que não o são – a coisa está esquecida, tornando-se no não-assunto preferido das oligarquias.

A principal utilidade da abstenção reduz-se à de uma zona cinzenta, onde muitos, iludidos, gostam de pôr a pastar bodes expiatórios – “se os abstencionistas tivessem votado, ganhava!” – ou agregar uma fatia crescente do eleitorado sob um atestado de menoridade e/ou irresponsabilidade.

Opta-se assim por ignorar que a abstenção é a sombra onde cresce a insatisfação com o esvaziamento moral da política, com o distanciamento entre os interesses dos partidos e os interesses das populações, com a sensação de que a voz dos cidadãos é ignorada, de que tudo se decide a outro nível, onde se esquecem as pessoas, os desfavorecidos, onde se agrupam os desencantados e os esquecidos pelo sistema que diz não deixar ninguém para trás, os que já perceberam que nunca lhes tocará a vez no elevador social. E é, principalmente, o substrato ideal onde medra o desespero que alimenta os extremismos (muitos dos quais já despontam, constando mesmo dos boletins de voto), à espera de canais adequados que, surgindo e servindo para dar voz à desesperança, nunca servirão nada excepto o caos e o oportunismo que a acompanha.

Entretanto, e porque o erro mora sempre nos outros, lá seguimos com o doce optimismo de Pangloss: “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”.

Até daqui a 4 anos.

P.S. - O Lugar ao Sul faz hoje 5 anos. Ao fim deste tempo, e como costumo dizer, continua a não dar dinheiro, a requerer tempo e esforço, e ainda nos expõe e sujeita à azia alheia. Tudo isto num tempo em que valores como o diálogo, a tolerância ou o respeito na discordância se encontram em profunda crise.  
No entanto, não altero a perspectiva de que, na sua reduzida dimensão, tem dado um contributo para a promoção e organização do pensamento em torno de uma região que se quer cada vez melhor, mais equilibrada e mais feliz.
Só por isso, continua a valer a pena!
Parabéns a nós e obrigado a todos vós.
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Dia de reflexão

24/9/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Cumpre-se amanhã o dia de reflexão que antecede a ida às urnas dos cidadãos, para depósito dos três boletins de votos que ditarão a escolha das pessoas que orientarão os destinos dos municípios portugueses, durante os próximos quatro anos.

O dia de reflexão serve para as pessoas terem um descanso da barrigada de promessas que o período eleitoral traz, permitindo a sua digestão, com calma, num período de trégua. Ora, face aos novos tempos, em que os canais de comunicação proliferam e operam com frenesim, 24 sobre 24 horas, são pessoais, personalizados e (quase) intransmissíveis e, acima de tudo, chegam a tudo e todos, estamos perante um arcaísmo eleitoral.

Mas a obsolescência do dia de reflexão corre cada vez mais o risco de ter uma outra faceta. Porque, num dia em que terminam as duas semanas de campanha (pelo menos oficial, porque nos meses antes, a campanha que se fazia era uma não-campanha), será que o esforço dos candidatos, e o conteúdo dos respectivos programas, deixa alguma semente de pensamento nos eleitores, merecedora de qualquer reflexão?

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No Algarve, são 16 os Municípios que vão a votos, numa região que, embora raramente fale internamente, só faz sentido se entendida como um conjunto.

Numa percepção – e apenas isso – muito pessoal, fica a sensação de que as preocupações para estas eleições autárquicas não passaram por uma discussão real de futuro. Esgrimiram-se ofertas para tentar seduzir votos, mas sempre, e apenas, centradas nos “umbigos” municipais.

Talvez deve ser assim, e nada mais do que assim. Provavelmente, uma discussão em termos mais alargados diria muito pouco aos eleitores de cada cubículo camarário.

Mas fica sempre a sensação de que estes momentos são oportunidades perdidas para construir um pensamento mais articulado na região, num adiamento perpétuo de uma conversa que, inevitavelmente, terá que ocorrer. Seria bom que fosse feita entre candidatos, cujo pensamento e discurso é sempre muito mais aberto do que depois, já convertidos em titulares de cargos decisórios, com toda a carga de responsabilidade e compromisso que implicam.

Numa insatisfação novamente muito pessoal, fica a ideia de questões como a paisagem e os desafios que sintetiza (desde a água ao ordenamento do território, passando pela habitação, gestão de risco ou economia) terem estado completamente ausentes.

Podem até ter marcado presença no discurso, mas sem real substância. Porque isso significaria pensar cada município na relação com os restantes.

Como se fala de adaptação às alterações climáticas, sem pensar as estruturas biofísicas no seu todo, percebendo que a ribeira que aqui desagua pode atravessar dois ou três concelhos a montante? Como se pode contribuir para a gestão da ocupação litoral, se municípios vizinhos não articulam opções que façam sentido no quadro das dinâmicas dos troços litorais? Como se pensa a revitalização dos territórios interiores sem abarcar a totalidade dos montes e vales que perfazem uma serra, espartilhando o pensamento na artificialidade dos limites administrativos? Como se discute a mobilidade sem juntar à mesa origens, destinos e percursos intermunicipais, olhando de forma integrada para questões como infra-estruturas, habitação e emprego, em cada um deles e no seu conjunto?

Parece que vamos ter que nos ficar por um “a ver vamos”.

Seja como for, no Domingo votem.

O cardápio tem algo para toda, mas mesmo toda, a gente. Para os que acreditam na candidata fulana ou no candidato sicrano. Para os que, de forma clubística, sempre votaram naquele, para os que querem experimentar o outro.

Tem até solução para os que não acreditam em ninguém ou em nenhum, bastando deixar o boletim em branco.

Só não encontra lá escolha quem não quiser saber do futuro.

​Mas lembre-se depois de que também isso é uma escolha.
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“Quem é tê pai, mê menine?”, ou quem vai afinal a votos?

17/9/2021

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“A eleição municipal a Zé Povinho”, por Raphael Bordallo Pinheiro (1881)
Por Gonçalo Duarte Gomes

Começou esta semana a campanha eleitoral para as próximas eleições autárquicas.

Ou antes, começou oficialmente. Porque, na verdade, já corre há meses. O que muda, então? Não muito, excepto, claro está, a necessária dispensa oficial das pessoas, concretamente dos seus compromissos profissionais, para se poderem dedicar às lides de seduzir e convencer o povo a confiar-lhes o seu voto.

No Algarve, são 16 os Municípios em que se confrontarão opções para a orientação futura das autarquias.

Mas e que afinidade existe entre essas propostas e os anseios das pessoas?

A julgar pela evolução da abstenção em eleições autárquicas, não muita.
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Evolução da taxa de abstenção em eleições autárquicas. (Fonte: Pordata)
Este gráfico ilustra o que tem sido o distanciamento das pessoas face ao voto, mesmo quando este se destina a eleger os titulares dos cargos que mais directamente podem afectar o quotidiano, ao nível da rua de cada um. A nível nacional, a abstenção em 2017 (45%) reduziu ligeiramente face ao acto eleitoral anterior (47%), mas a tendência anterior é de notório crescimento. No Algarve, entre 2013 e 2017, manteve-se constante, nos 52%. Seja a que nível for, é preocupante verificar que praticamente metade das pessoas não querem saber.

Dentro dessa massa de gente, seguramente há muitas razões. Desde as pessoas que confiam plenamente em qualquer candidatura até às que desconfiam igualmente de todas, passando por outras que entendem que os interesses dos partidos – que dominam o cenário eleitoral – não têm nada a ver com os das comunidades ou as que são simplesmente negligentes face a um direito que é simultaneamente um dever.  

Transversal a toda essa panóplia de motivações é a profunda degradação da confiança no processo democrático e nas suas instituições. O que vai causando estragos cada vez mais profundos.

Os partidos ditos tradicionais têm respondido a isto com um encolher de ombros, invertendo um clássico dos rompimentos de relação, e afirmando ao eleitor “o problema não sou eu, és tu”.

Essa soberba é o erro de palmatória que, deixando cada vez mais vazios, tem alimentado fenómenos de populismo e extremismo – em vários quadrantes – que, sem verdadeiro programa ou propostas para além de pegar fogo à tenda (mesmo que queime toda a gente no processo), capitalizam sobre o descontentamento daqueles que são tantas vezes menorizados e desprezados pelo status quo partidário.

E qual a propriedade dessa oligarquia?

Vejamos a representatividade dos partidos com assento na Assembleia da República (o Livre perdeu-a entretanto, com a passagem da deputada Joacine Katar Moreira a não inscrita), confrontada com os resultados das últimas eleições legislativas.
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Nota: a percentagem de "Eleitores votantes em partidos" incorpora já o desvio da abstenção
Este é um exercício muito simples, e sempre relativo, mas que, não obstante a desactualização dos dados referentes ao BE e as lacunas relativas a PAN e Livre (com um apelo ao fornecimento de melhores informações, com indicação de fonte, mas arriscando dizer que os seus números não excederão os dos demais), permite constatar que os partidos não podem, nesta fase, afirmar-se representativos de muito mais, para lá das suas estruturas internas. Mesmo sendo inquestionável que podemos concordar com determinado ideário sem estarmos inscritos na estrutura que o promove, a ausência de filiação nos partidos é significativa.

Isto é relevante mesmo a nível local, onde tantas vezes se diz que interessam mais as pessoas que os partidos, pois os blocos partidários não assumem as autárquicas como um somatório de resultados micro, mas antes como divisões de um resultado macro, lutando de forma encarniçada para alcançarem o estatuto de “maior partido autárquico nacional” – afinal o importante é o partido.

Em certos locais e comunidades no Algarve, mais importante do que a pessoa que se apresenta a outrém, é a filiação parental, exigência materializada pela magnífica expressão – variável consoante seja no interior, litoral, barlavento, sotavento – do “quem é tê pai, mê menine?”

No caso das eleições autárquicas, regra geral, as pessoas que integram as listas são bem conhecidas. Nossos vizinhos, do dia-a-dia. Conhecemo-los. Ainda assim, e talvez para garantir o importante aval do conhecimento de “tê pai”, é certo que hoje em dia os partidos ensaiam cada vez mais a integração de independentes nas suas listas – estas eleições são exemplo disso – mas esse mecanismo tarda em produzir efeitos ao nível da aproximação, seja porque a desconfiança face aos partidos se sobrepõe à confiança nos rostos, seja porque a independência dos independentes não é assim tanta, ou porque não tem peso suficiente face ao restante.

As estruturas partidárias tentam igualmente outras vias, como a composição e/ou enriquecimento dos seus programas com recurso a auscultações directas à população, num exercício em que o equilíbrio entre prós e contras é delicado.

Mas, mesmo assim, parece cavar-se um fosso que nos pode conduzir a cada vez mais poder local, e menos democracia local.

Na noite de 26 de Setembro teremos mais informação. Até lá… é ouvir o que nos propõem.
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De acordo com os Censos, o Algarve é um balão

30/7/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Foram recentemente divulgados os resultados provisórios dos Censos 2021 (aqui), e ficou a saber-se que, a nível nacional, entre 2011 e 2021, das duas únicas regiões (NUTS II) a registar aumento populacional, o Algarve foi líder, com 3,7% de crescimento
(ainda que continue a ser a menos povoada do território continental), deixando a Área Metropolitana de Lisboa, com os seus míseros 1,7%, a milhas!
 
A notícia parece estar a gerar algum entusiasmo, ou pelo menos a causar algum impacto, neste nosso canto. Verdade seja dita, posta assim a coisa, pouco ou nada diz. Estando a silly season mesmo aí à porta, também não interessa grandemente.
 
Mas devia, porque de pouco adianta ter mais gente, se isso servir apenas para diluir a qualidade e acessibilidade aos serviços de interesse geral (ver a potencial importância do tema aqui), já de si profundamente desequilibrada.
 
De qualquer modo, vamos a números.
 
Dos 16 municípios algarvios, 11 aumentaram a sua população, enquanto que 5 perderam. O campeão dos ganhos foi o município de Vila do Bispo (8,8%), com Albufeira (8,2%) e Lagos (7,9%) a completar o pódio. Na ponta oposta da tabela, Alcoutim (-13,6%) liderou as perdas, seguido de Monchique (-9,6%) e Castro Marim (-4,6%). Pelo meio, uma surpreendente – ainda que não muito significativa – perda populacional em Olhão (1,7%). No “top 10” dos crescimentos concelhios a nível nacional, o Algarve conta com 4 representantes: Vila do Bispo (5.º), Albufeira (7.º), Lagos (8.º) e Portimão (9.º, com 7,7%).
 
Desenhado sobre um mapa, o panorama é o seguinte:
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Variação populacional nos Municípios algarvios 2011-2021 (Azul - perda / Salmão - ganho. Fonte: INE)
​Se a distribuição populacional pelos concelhos já revela uma tendência preocupante de perdas populacionais no “interior” (conceito muito relativo no Algarve, em que a distância máxima ao litoral se mede em meia centena de quilómetros) e nas periferias, e um consequente acentuar das assimetrias regionais, interessará ainda mais olhar para o cenário ao nível das freguesias.
 
Aí verificamos que há um esvaziar global do interior algarvio, com as freguesias interiores a apresentarem perdas significativas, conforme ilustrado no mapa seguinte:
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Variação populacional nas freguesias algarvias 2011-2021 (Fonte: INE)
​Recorrendo novamente aos “tops” para tentar ter uma ideia do enquadramento da realidade algarvia no contexto nacional, a região conta com 4 das 10 freguesias de maior crescimento: União de Freguesias de Conceição e Cabanas de Tavira (Concelho de Tavira, em 4.º lugar, com 36,2%), Barão de S. Miguel (Concelho de Vila do Bispo, em 7.º, com 30,6%), Armação de Pêra (Concelho de Silves, em 9.º, com 23,3%) e Luz (Concelho de Lagos, em 10.º, com 22,9%).
 
Em sentido inverso, conta com a 4.ª freguesia que mais perdeu população em Portugal: Giões, Concelho de Alcoutim, com 40,6% de perda populacional. Fora do “top”, mas com números muitíssimo preocupantes, temos também as freguesias de Cachopo (Concelho de Tavira, em 14.º, com perdas de 34,2%) e de Vaqueiros (Concelho de Alcoutim, em 20.º, com perdas de 33,0%).
 
A tabela completa das freguesias algarvias apresenta-se de seguida (incluindo também os municípios, identificados com códigos de 4 algarismos):
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Fonte: INE
​O cenário populacional algarvio, naquilo que foi a sua evolução na última década, é então o de um balão: aumentou o volume, inchou, mas no meio é vazio, tendo apenas ar.
 
O aprofundar das assimetrias da distribuição populacional regional, com o aumento da concentração litoral, vem apenas confirmar uma das doenças demográficas crónicas do Algarve, que é a desumanização das paisagens interiores, maioritariamente associadas a tecidos rurais, social e economicamente deprimidos.
 
Ora, minha gente, sem gente não há gestão de paisagens. E aí, deixamos estas áreas entregues a dinâmicas que podem não ser, do ponto de vista da competitividade, da coesão territorial ou da gestão do risco, as mais agradáveis. Por exemplo, se calhar é mais fácil combater fogos com escolas e centros de saúde em Giões, Odeleite ou Alferce, do que com aviões e bombeiros a arriscar a vida. E mais barato, e mais saudável.
 
Há muito que se fala nisto – houve inclusivamente umas Comissões Técnicas Independentes que até escreveram uns relatórios – mas pouco se tem feito. Ou conseguido fazer, sejamos justos.
 
De caminho, fica também demonstrado que ideias como coesão territorial (perdoem-me a repetição do chavão), reforço da atractividade do interior, e outras coqueluches de oratória, não conseguem passar do papel, e os modelos que realmente se implementam na paisagem, inclinam a região em direcção ao mar. E, mesmo dentro desse modelo, importa perceber que fortes apostas na terciarização (principalmente associadas ao turismo e ao imobiliário para fins turísticos), mesmo em freguesias urbanas, resultam em perdas populacionais (por exemplo, a freguesia de Olhão, com uma perda de 4,7%) e esvaziamento vital – mesmo que o dinheiro circule, não há gente a viver – das próprias urbes.
 
Estas tendências – importa dizê-lo – são muitíssimo mais amplas que o Algarve. A nível nacional, cerca de 50% da população nacional concentra-se em 31 municípios, sendo que a fatia de leão se localiza maioritariamente nas duas principais áreas metropolitanas (Lisboa e Porto).
 
Esta análise, muito simples, carece naturalmente de complemento e ponderação com outros factores e indicadores. Mas, para já, é inequívoco o progressivo e inexorável esvaziar populacional do interior algarvio.
 
É agora necessário saber se queremos fazer algo quanto a isso, se o conseguimos fazer, quando estamos a pensar fazê-lo, e se vamos novamente esperar resultados diferentes da aplicação das mesmíssimas receitas do passado.
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Escapismo urbanístico

16/7/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Olhando a mais recente intervenção de “arte urbana” na Vivenda Vitória, em Olhão, é impossível não experimentar sentimentos mistos, oscilando entre a admiração e o lamento.

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​Este edifício integra a História contemporânea da cidade, e por ela passam memórias da indústria conserveira, que marca o Século XX olhanense – mais alguma informação disponível aqui. Mergulhado num processo de degradação que a posse pública não estancou ou reverteu (não foi sequer alvo de classificação como imóvel de interesse municipal), o seu estado de conservação agudiza-se continuamente. Eis então o lamento.

Como forma de mitigar visualmente (apenas) esta situação, têm sido promovidas algumas acções de arte urbana nas fachadas. A mais recente, em linha com anteriores, denota traços de enorme talento por parte dos seus autores – os quais, desconhecendo, saúdo, revelando a admiração.
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​As aspas que anteriormente enquadraram o conceito de arte urbana para identificar estas pinturas prende-se com a ideia, meramente pessoal e nada especializada, de que essa forma de expressão artística tem uma forte componente de activismo (social, ambiental, económico, etc.), destinada a provocar, no espaço público, debates geradores de novos discursos e gestos culturais, urbanos mas não só. Ou seja, tem uma forte componente de análise crítica, muito para lá da mera estética – ao ponto de se poder questionar se uma obra de Banksy, expoente máximo desta circunstância artística, exposta em galeria, respeita ainda o espírito da sua criação.

Arte urbana não é assim um prenúncio de morte sussurrado aos edifícios ou espaços intervencionados, como parece acontecer, por exemplo, em Portimão, onde há um mês foi noticiada a intenção de aquisição de imóveis devolutos (desconheço a sua relevância arquitectónica, ou falta dela) que há já longo tempo haviam sido objecto de intervenções artísticas, tendo como fim a sua demolição para abertura de uma nova rua entre o Largo do Dique e o Largo 1º de Dezembro. A arte urbana é antes a tentativa da sua inserção num contexto, ou criação desse mesmo contexto, razão pela qual também não pode nunca ser confundida com o mero vandalismo, ou deixar que esse tente parasitar aquela. Mesmo quando intervém sobre edifícios degradados ou outras situações dissonantes, e mesmo que o contexto pareça discutível, o que, desejavelmente, será sempre.

Quando, há mais de uma década, o Programa Crono – de que Alexandre Farto [Vhils] era um dos curadores – ocupou, por exemplo, as fachadas de edifícios devolutos na Av. Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, com obras de grandes nomes internacionais da street art (em inglês tem sempre mais élan), como Blu, “Os Gémeos” ou ARM Collective, marcou aquele que é, porventura, o primeiro grande momento de “turistificação” deste fenómeno na capital. Sabemos, por amarga experiência própria, que o turismo como fim em si próprio, tende a esterilizar o substrato em que germina (tanto mais que, 11 anos volvidos, os edifícios continuam devolutos e as obras... foram conspurcadas com tags, graffitis e o tal mero vandalismo!). Mas, sendo a questão lançada a um debate que é público e aberto, tem o seu espaço.
​
Outro exemplo positivo, a intervenção do artista Styler (João Cavalheiro) na Av. Estados Unidos da América, no final do ano passado e também em Lisboa, criando um mural de homenagem ao Arq.º Paisagista Gonçalo Ribeiro Telles, por ocasião da sua morte.
​Igualmente, em Faro foram recentemente instaladas obras de Bordalo II (Artur Bordalo), no campus de Gambelas da Universidade do Algarve e também na Praia de Faro, com o cavalo-marinho e ameaças que sobre a espécie impendem na Ria Formosa, como mote.

Estes escassíssimos exemplos demonstram como a arte urbana tem um – forte – papel a desempenhar nos diálogos que o espaço público promove, devendo ser encarada como manifestação de toda uma circunstância social que procura os seus canais e linguagem, de forma a contribuir para a construção do seu tempo.

Por isso mesmo, e independentemente do seu valor intrínseco, não deve nunca servir como escapismo urbanístico.

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Razão pela qual importaria que o magnífico trabalho gráfico que hoje decora as paredes da Vivenda Vitória, e outros casos similares, um pouco por toda a parte, não fosse apenas uma mortalha, enquanto se aguarda pelo colapso...
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Kit de Sobrevivência à Vacinação

5/7/2021

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Por Vanessa Nascimento
Um tsunami de elogios têm sido feitos ao Almirante Gouveia e Melo pelo seu exímio desempenho na vacinação contra o Covid-19. Mal sabia eu que a vacinação propriamente dita, podia também ser toda ela uma “experiência de cariz militar” (quase).
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A missão estava agendada para 16h32 do 05/07/2021, cheguei era 16h10... Para perceber o decorrer das operações e em escassos minutos a única coisa que me inteirei foi que tínhamos sido lançados na selva e no meio do caos. A fila dos agendamentos parecia uma píton gigante entrelaçada em volta do pavilhão de vacinação, quando achávamos que o fim da fila estava à vista, a cobra serpenteava e continuava. Um verdadeiro filme de terror até para quem não tem medo das ditas cujas. 

Não consigo deixar de pensar que pelo menos os militares quando vão em missão vão preparados, nós os que esperamos mais de 4h para ser vacinados, levamos apenas a nossa moral... Sem sombra, água, comida e casa de banho durante 4h percorremos o serpentear da fila. Eu diria que o Chuck Norris, o "Rambo" ou o Bruce Willis ficariam orgulhosos dos 700 resistentes que estavam agendados para o dia 05/07/2021, até porque o tempo que esperamos para sermos vacinados dava para ver pelo menos dois filmes destes senhores.
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"Agendamento" fui ver o que isso significava no dicionário, não fosse eu ter apanhado demasiado sol na cabeça e ficado baralhada das ideias... Até porque ouvi a frase... "O agendamento é meramente indicativo e por ordem de chegada". Não sei hesito...
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Fiquei confusa! Se a coisa é meramente indicativa mais vale dizer o dia e depois vamos quando quisermos…Não? E irmos preparados para tudo... dita a minha experiência que um   “Kit de Vacinação” é recomendável:
  • Chapéu de sol
  • Protector solar
  • Água 
  • A “bucha” a.k.a. comida
  • Opcional mas recomendado uma cadeira
  • Música e/ou um livro, sudoku, palavras cruzadas… é ao gosto do futuro vacinado 

O mais dantesco é que a Task Force veio a público dizer: 

“Já era expectável que isto acontecesse esta semana, face ao número de vacinas que vamos dar, mas é indesejável que as pessoas estejam tanto tempo na fila e vamos tentar melhor o processo”, disse à Lusa o vice-almirante Gouveia e Melo, que coordena a ‘task-force’ responsável pelo processo de vacinação contra a covid-19.”

​E porque criticar sem dar solução é na minha perspectiva lançar palavras ao vento fica aqui os meus 2 cêntimos de recomendações em caso de espera prolongada: 
  • Arranjar staff para orientar as pessoas, organizar as filas e dar informações;
  • Fornecer água a quem está na fila à mais de 45 minutos, o lanchinho que me ofereceram à saída da vacinação às 20h47 da noite tinha sido uma mais valia durante a espera;
  • Identifiquem pessoas prioritárias ao longo da fila (grávidas, idosos, pessoas com handicaps temporários) e tenham cadeiras para dispensar em casos que se justifique;
  • Providenciem zonas de sombra estamos em pleno verão no Algarve;
  • E por último mas não necessariamente em último, peguem no tempo médio de atendimento de uma pessoa agendada, equacionem o staff disponível e calculem o número médio de não agendados que é possível atender. Pessoalmente matemática é o meu calcanhar de Aquiles, mas até um leigo consegue identificar que é necessário haver um “tecto” no número de atendimentos. Deixo a imagem da hora que sai do centro de vacinação, recordando que cheguei às 16h10.
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​
​Faço ainda a ressalva que isto não significa que a vacinação seja assim todos os dias… e vai na volta apanhei um dia excepcionalmente mau, a minha descrição depreciativa depreende-se sobretudo com a falta de adaptação no momento e com a incapacidade de dar condições a quem teve que passar por esta experiência. 

Quero terminar a agradecer ao casal que me ofereceu uma garrafa de água ao final de 3h30 ao sol e todo o staff do centro de vacinação que fez horas extraordinárias no meio do caos para dar resposta a esta situação.

Sintoma global do pós-vacinação falta de paciência extrema... Quanto aos restantes possíveis efeitos secundários terei alguma dificuldade em perceber se foram da vacina ou do tempo e condições de espera para a mesma!
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O fungágá da bicharada

2/7/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

O Parque Natural da Ria Formosa (PNRF) tem andado nas bocas do Algarve, em tempos recentes, pela aparente impotência face a diversos atropelos que ocorrem nesta área protegida, em plena luz do dia e de forma reiterada e perfeitamente descarada.

Já (aqui) houve oportunidade de tentar analisar as causas para as limitações e desautorizações que afectam o PNRF e o seu organismo tutelar, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P. (ICNF). Entre elas, e talvez à cabeça, encontra-se o desfasamento entre a magnitude das suas atribuições e os meios – humanos, materiais e financeiros – afectos à tarefa.

A ajudar à festa, a publicação do Decreto-Lei n.º 46/2021, de 11 de Junho, veio também, entre outras alterações, acometer ao ICNF competências no domínio... dos animais de companhia!

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Assim, a um Instituto humana e materialmente já assoberbado no desempenho das suas normais competências, decidiu-se assim atribuir um novo conjunto de incumbências, com implicações ciclópicas e que, na prática, se antecipam inexequíveis.

​E que fundamentalmente introduzem, a martelo, nos afazeres do ICNF matérias que nada têm a ver com o seu âmbito e que, sob vários aspectos, são antagónicas à sua essência.

Entre estas encontram-se a definição e aplicação das políticas de bem-estar, detenção, criação, comércio e controlo das populações de animais de companhia, a definição de estratégias adequadas à protecção desses mesmos animais de companhia em situações de acidentes graves e catástrofes, ou ainda assegurar o cumprimento das regras aplicáveis à detenção, criação, comércio e exposição de animais de companhia.

Coisa pouca, portanto.

Na génese do que hoje é o ICNF está o Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, fundado em 1975, no âmbito da organização da Secretaria de Estado do Ambiente. Destinava-se a inventariar, estudar e gerir paisagens e sítios e respectivos elementos caracterizantes, definindo áreas de protecção e a promulgação de medidas que protegessem os respectivos valores presentes (naturais e culturais), entre as quais a constituição de Áreas Protegidas e a elaboração e dinamização dos seus planos de ordenamento. Tudo isto numa óptica de valorização paisagística, cultural, cívica e física, sempre orientada para as populações e inserida numa lógica de coesão territorial.

Desse organismo de visão abrangente, de organização política, territorial e de perenidade, hoje pouco resta. Por circunstâncias várias (que aqui não cabem), a sua missão está sectorialmente mais restringida, centrando-se em matérias de conservação estrita, nomeadamente em termos de áreas protegidas e classificadas.

Com a presente alteração, ainda menos sobrará.

Para além das óbvias questões ontológicas encerradas no confronto entre perspectivas urbanas e rurais que a atribuição destas competências traduz, há questões imediatas, práticas, que saltam à vista.

Hoje em dia, o fenómeno dos animais de companhia assilvestrados (seja por fuga, por abandono ou por desorientação) representa uma ameaça séria para a conservação de várias espécies da fauna selvagem que se tornam alvo de comportamentos predatórios, bem como factor de desequilíbrio para as dinâmicas de certos habitats e populações.

Quando confrontado com o dilema entre ter que salvaguardar espécies selvagens e conter populações ou comunidades de animais de companhia assilvestrados, o que fará o ICNF?

Mais, atentando na redacção do novel Artigo 2.º-A do Decreto-Lei n.º 46/2021, lemos que, bem-estar animal é entendido como “estado de equilíbrio físico e mental de um animal em relação às condições em que vive e morre, incluindo a ausência de fome, sede e má nutrição, de desconforto físico e térmico, de dor, lesão e doença, de medo e stresse, bem como a oportunidade de expressar o seu comportamento natural”.

A conceptualização num tema destes não é fácil, muito menos consensual mas, à luz desta visão, não terá então o ICNF a obrigação de, por exemplo, libertar todos os animais enclausurados em apartamentos exíguos ou outras condições inadequadas e até insalubres, onde passam boa parte dos seus dias fechados, sozinhos, impedidos de “expressar o seu comportamento natural”? E se, ao “expressar o seu comportamento natural”, estes animais colocarem em risco outras espécies, concretamente espécies protegidas, como se sana este conflito, desde logo interno, do ICNF?

Torna-se claro que este acrescento orgânico é uma resposta à pressão política que cresce em torno dos animais de companhia. Esta traduz, no seu cerne, uma evolução positiva relativamente à forma como a sociedade encara os animais e à ética que devemos emprestar ao seu tratamento. No entanto, se esta visão se desconectar de um quadro mais amplo e, principalmente, se descontextualizar de princípios ecológicos (como, por exemplo, as relações de predação ou a dominância de espécies), e a sua concretização passar pelo prejuízo de uma política integrada de conservação da natureza, seja por conflito de competências ou desvio/reafectação de recursos manifestamente escassos, representará apenas um retrocesso.

As instituições da Administração representam e servem o Estado, não o Governo.

Assim, se há um interesse, por exemplo partidário, no quadro de alianças parlamentares, em ceder a agendas animalistas – que, regra geral, acrescentam zero – e outras visões sectoriais e sectárias nesse domínio, seguramente que o ICNF não é a sede própria ou veículo adequado para tal.

Até porque, a médio e longo-prazo, tanto a inviabilidade do modelo como a sua contradição intrínseca não só não representarão qualquer mais-valia para os animais de companhia e para a resolução das faltas de que são vítimas, como gerarão um efeito diametralmente oposto.

Entre bichanos e bicheza há diferenças fundamentais, que também institucionalmente devem ser preservadas.

Caso contrário, tudo se tornará um fungagá da bicharada.
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Um novo tempo velho

25/6/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes
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Sendo este um espaço de partilha, e preferencialmente sob a forma escrita, é interessante também, de tempo a tempo, parar para breves – mas fundamentais – reflexões.

Num tempo em que as palavras correm soltas, percorrendo instantaneamente geografias insondáveis através desse espaço que as não tem, que é a internet – concretamente nas redes sociais virtuais – e, ao mesmo tempo, censores e inquisidores de pacotilha as dissecam militantemente em busca da descontextualização mais conveniente à promoção de agendas que, na sua base mais profunda, contêm apenas ódio (aos vocábulos e ao Homem que as profere), é cada vez mais importante pensar nelas.

Sem falar do estado lastimável da ortografia (esse sim, tema capaz de sugar toda a alegria de qualquer pessoa que minimamente goste das palavras).

Para essa reflexão ganha, nesta fase, crescente atractivo – pelo menos para este escriba – o exercício de escrita “à moda antiga”, com recurso a ferramentas que obriguem, no próprio gesto de escrita, a uma maior reflexão e cuidado, um mais apurado critério de pensamento e selecção das palavras.

Foi assim que, em complemento à imortal escrita à mão, me decidi a trazer de volta ao activo uma veterana máquina de escrever de família, ferramenta de trabalho de antanho que, fechando uma circunferência de proverbial economia circular, se vê de volta às lides.
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Em busca de maior sentido e propriedade para as palavras, num tempo em parecem valer pouco, e cada vez menos.

Porque houve neste processo um contributo significativo dos maravilhosos poemas dactilografados de José Carlos Barros – alguns deles aliando à poética uma estética sublime – para o agudizar desta curiosidade e inquietação, impõe-se um sincero agradecimento e, modesta e insignificantemente, a dedicatória desta publicação.
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Há 80 anos o Algarve era bom para passar férias… no Inverno!

16/6/2021

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Por Andreia Fidalgo

Não há muito tempo, num destes debates em formato remoto a que a pandemia já nos habituou, ouvi alguém afirmar convictamente que tínhamos todos de nos começar a libertar do discurso clássico e, aparentemente já muito fora de moda, de que “o Algarve é mais do que sol e praia”.

Esta reivindicação, como sabemos, é muito comum por entre todos os que consideram que a região tem muito potencial para além do clássico turismo estival centrado em torno das praias mais badaladas. Ou seja, em termos turísticos, há mais para oferecer, seja uma oferta mais vocacionada para o interior algarvio, ou até para as suas singularidades históricas, culturais e patrimoniais; e em termos não-turísticos, o Algarve ou está largamente subaproveitado noutros potenciais sectores económicos, e/ou verifica-se uma discrepância gritante entre as actividades que se praticam e a necessária preservação dos recursos e valores naturais e patrimoniais da região (como, por exemplo, o rumo que leva a exploração agrícola intensiva).

Confesso que fiquei algo perplexa com a peremptória afirmação, embora compreenda o seu alcance. A evidente noção de que o Algarve tem de ser mais do que sol e praia já é antiga e, em termos teóricos, o “sol e a praia” constituem um paradigma que já está mais do que ultrapassado, de tal forma é óbvio que se encontra esgotado. Mas, e em termos práticos? Considerando que climas amenos e praias bonitas há muitos pelo mundo fora, tem a região algarvia realmente apostado numa oferta turística realmente diferenciadora, que valorize as suas singularidades próprias, ou continua a depender quase única e exclusivamente de um turismo mais massificado que tanto poderia ir para Albufeira como para Biarritz?

Eu apostaria mais nesta última hipótese, por isso não creio que o paradigma esteja já, de todo, ultrapassado, de tal forma não existe realmente uma mudança substantiva que concorra num sentido diferenciador. Ou, pelo menos, ainda não… A prova maior é que, chegada a época estival, já só se fala da retoma turística durante os três meses de Verão, da lotação dos hotéis, do problema das hordas de ingleses que ora chegam, ora partem, consoante as luzes verdes dos corredores aéreos… Se a estratégia de retoma da economia regional, fragilizada pela pandemia, se centra somente nos três meses de Verão, o que teremos nós, afinal, para oferecer noutras épocas do ano, de forma a combater a sazonalidade?

Cumpre aqui recordar que o paradigma turístico a que nos habituámos a partir da massificação das décadas de 60-70 do século passado nem sempre foi este. Em períodos anteriores, quando as qualidades turísticas da região se começaram a evidenciar, os motivos que se invocavam para fazer do Algarve um destino turístico estavam sobretudo relacionados com a beleza da sua paisagem, com as suas especificidades culturais e com a tipicidade das suas gentes e localidades. O clima, sim, também era frequentemente invocado, mas – e espante-se o leitor! – dizia-se que o Algarve era bom para passar férias no Inverno!

Um excelente exemplo destas virtualidades turísticas regionais, que hoje parecem tão distantes da nossa realidade, encontra-se bem espelhado na Panorama, Revista portuguesa de arte e turismo, que se começou a publicar em 1941. O nº 23, publicado em 1945, era parcialmente dedicado à região algarvia e o autor desse artigo, Américo Nogueira, num lampejo clarividente, referia-se ao algarve como a “Grande zona turística do futuro”, escrevendo que “se há região que reúna avultado número de condições para uma intensa e progressiva exploração turística, é, sem nenhuma dúvida, essa luminosa e suave faixa algarvia, com as suas três zonas geograficamente diferenciadas: a Serra, o Barrocal e o Litoral”. 

As condições a que o autor se referia e que explica, que a posteriori se revelaram muito menos clarividentes do que a acepção inicial, eram as seguintes: o clima, o património histórico-cultural, a tipicidade de algumas localidades algarvias e a paisagem natural. Para se justificar, recorria às descrições detalhadas do Guia de Portugal, de 1927, alusivas a esses tópicos, acrescentando oportunamente as suas próprias considerações.
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Assim, quanto ao clima, relembra que o Algarve é particularmente requerido no Inverno, embora isso não deva dissuadir o visitante de aí ir noutras épocas do ano:
​“Diga-se, embora, que o Algarve «é uma das mais admiráveis estações de inverno de toda a Europa, muito superior, pela amenidade da temperatura hibernal, à Côte d'Azur e à Riviera di Ponente» - corno se lê nos guias que não mentem; mas nem por isso deixe de lá ir quem deseje e possa, noutra qualquer estação do ano, gozar as delícias da beira-mar”.

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​A singularidade do património edificado, fruto de uma herança histórica muito específica, não fica esquecido nas considerações:
​“A própria arquitectura urbana, nas mais características povoações algarvias, onde a impecável brancura das casas, as açoteias e as chaminés rendilhadas evocam a longa permanência dos árabes e o poderoso influxo da sua civilização”. 

​Para o autor, o Algarve merecia visita turística sobretudo pelas suas povoações mais típicas: Olhão, Loulé, Alcantarilha, Moncarapacho e, como curiosidades arqueológicas, Silves e Milreu; a estas, acrescenta Alte, que considera estar ainda por descobrir e valorizar:
​“Assim, quando há anos se dizia: - «Se vai ao Algarve, não deixe de visitar Olhão, a terra cubista por excelência, que se diria inventada por Picasso na sua primeira fase inovadora; e vá também apreciar as açoteias e as chaminés de Loulé, que são das mais bonitas que se encontram em toda a província; e gaste algumas horas a desfrutar as graças plásticas das aldeias de Moncarapacho e Alcantarilha... » sabe-se, agora, que esse conselho era incompleto, devendo-se acrescentar que se impõe, para se fazer uma ideia mais ampla e mais justa do pitoresco algarvio, um passeio pelas ruas de Alte, numa noite de luar”.
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​Da paisagem, invoca-se o arvoredo “quase cosido à terra”, composto de figueiras, alfarrobeiras, amendoeiras, e invoca-se o extenso cultivo, que se multiplica em vinhedos, hortas, searas, vergéis, onde amadurece a melhor laranja, a melhor romã e a melhor uva do país. Uma paisagem com uma flora de grande variedade:
​“Junto do litoral, predominam os pinheiros mansos, baixos e de espessas copas; nas serranias abundam os sobreiros, os azinheiros e os medronheiros, encontrando-se ainda noutras zonas - principalmente nas terras de Monchique - carvalhos e castanheiros. Ninguém ignora que a figueira é uma das mais típicas espécies botânicas da província, mas poucos sabem que a paisagem algarvia é valorizada por outro atractivo singular: a adelfeira (ou loendro), pequeno arbusto de flores cantantes e de macia folhagem que prefere adornar as margens bucólicas dos ribeiros”.

Em suma, naquela época a região era valorizada turisticamente por motivos que hoje, em vão, invocamos como importantes, nomeadamente pela sua paisagem natural e pela sua herança histórica e cultural.  É óbvio que não podemos desvalorizar o facto de as nossas praias e clima serem um dos maiores atractivos que actualmente temos para oferecer… Mas essa não pode ser a única aposta estratégica do turismo na região, tal como o turismo, per se, não pode continuar a ser a única aposta estratégica da economia regional. 

*Fonte bibliográfica das imagens aqui reproduzidas: Panorama, Revista portuguesa de arte e turismo, nº 23, 1945. Disponível online na Hemeroteca Digital de Lisboa.
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A co(n)gestão da Ria Formosa

11/6/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Nas últimas semanas, têm-se sucedido os alertas, por parte de grupos de cidadãos, relativamente a intervenções nas margens da Ria Formosa, que violam as normas do Parque Natural da Ria Formosa (PNRF), concretamente as impostas pelo seu Plano de Ordenamento, para além de outras servidões administrativas.

Sendo os aspectos administrativos importantes, bem pior é a realidade que está subjacente a estes episódios. Movimentações de terras abusivas em zonas sensíveis, abate de árvores de porte significativo, perturbação de zonas consagradas a regimes de protecção, criação de situações que potenciam situações de erosão de margens e contaminação do plano de água da Ria, entre outras.

Na sequência dessas denúncias (ver aqui, aqui ou até aqui!), o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P. (ICNF), entidade tutelar do PNRF, desencadeou um conjunto de procedimentos, concretamente de levantamento de autos e embargando as obras em curso.

Como consequência disso... tudo continuou a acontecer, como se nada fosse.

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Ocorrendo dentro dos limites de uma área protegida como a Ria Formosa, estas situações são particularmente gritantes, mas o facto é que se repetem com crescente frequência, um pouco por todo o lado. O poder e autoridade das entidades públicas responsáveis pela salvaguarda de valores e recursos naturais está completamente minada, e verifica-se um desplante cada vez mais aberto por parte daqueles – empresas com alguma relevância e particulares com grande capacidade financeira e/ou de influência, bem entendido – que decidem violar planos e regulamentos a seu bel-prazer. Acresce a este panorama o facto da capacidade de intervenção destas entidades ser muito limitado.

As causas são bem conhecidas: uma reiterada fragilização política de áreas temáticas como ordenamento do território, ambiente, conservação da natureza ou paisagem, a par do desinvestimento nos meios e recursos ao dispor dos organismos públicos com responsabilidades na matéria.

Aqui, o caso do ICNF é paradigmático. Quando surge, em 2012, pela fusão do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade e da Autoridade Florestal Nacional, numa aplicação idiótica do Compromisso Eficiência, assumido pelo Governo de Passos Coelho – e da ministra responsável pela pasta, Assunção Cristas – na ressaca da bancarrota consumada pelo Governo de José Sócrates, representa um retrocesso de décadas em política de conservação da Natureza. Foi assim deitado ao lixo todo o esforço anterior para conseguir autonomizar, por pleno direito, uma política de conservação da natureza, subjugando esta ao poderoso sector florestal que, por definição, possui aspectos antagónicos – entre conservação e produção haverá sempre pontos de atrito, apenas conciliáveis se ambas as actividades se encontrarem em pé de igualdade, em termos de peso político.

Foi assim destruída uma herança que vinha de 1976, do pioneiro e francamente notável  Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico e de toda a política de ambiente que então, nas mais difíceis condições sociais e políticas, se conseguiu erguer, para as populações e com as populações.

Uma herança que nenhum Governo subsequente teve vontade ou sequer interesse em recuperar.

No meio deste processo, existe um vasto conjunto de pessoas que, trabalhando diariamente, tentam operar o milagre das omeletes sem ovos, ao serviço destas entidades. Com falhas – como todos nós no desempenho das nossas actividades quotidianas – que importam corrigir, mas que devem também ser enquadradas num aprofundamento do conhecimento das condições em que se vêem obrigadas a exercer as suas competências.

Neste cenário, e perante iniciativas que são financeira e procedimentalmente muito mais dotadas e ágeis, a luta pela procura do equilíbrio entre valores e recursos naturais e as actividades humanas, que justifica a classificação desta área como Parque Natural, é completamente desequilibrada. E, portanto, se é mesmo para continuar a ter áreas protegidas dignas desse nome, algo tem que mudar.

Há umas semanas, através de um artigo no jornal Público (ver aqui), o Professor Fernando Santos Pessoa alertava para os perigos do modelo de co-gestão das áreas protegidas, que agora avança, com grande entusiasmo autárquico. Ao título desse artigo – alterado relativamente ao original, já agora – foi chamada uma frase constante do mesmo, que comparava a co-gestão à entrada da raposa no galinheiro. Isto gerou alguma celeuma, por parte do sector da gestão autárquica, que entende não dever ser alvo de um clima de suspeita e falta de crédito relativamente à gestão que faz do tema conservação da natureza.

A história e a realidade, com o peso que têm, jogam de facto contra a credibilização da gestão autárquica em termos de conservação da natureza. Há lógicas de ordenamento e de planeamento, sectoriais e territoriais, que não podem ser pensadas como o somatório de interesses locais. São antes estratégias de larga abrangência espacial e projecção no longo-prazo, que vão enquadrando e articulando, numa perspectiva de maior alcance, questões mais focalizadas. Daí que não possam estar sujeitas à permeabilidade a pressões imediatas e muito localizadas que, por definição e vocação, marca a gestão autárquica.

Mas nunca é tarde para fazer mais e melhor, ou abrir novos capítulos, isso é inegável.  

Pois bem, eis que surge uma boa oportunidade. Quer o poder local demonstrar que a co-gestão não só não é assim tão má, como ainda os contributos dos Municípios, numa escala de proximidade, podem ser positivamente decisivos? Então apoiem as entidades regionais no esforço de fiscalização e punição de casos como este (ou outros similares e até piores, como por exemplo no caso de edificações ilegais). Apoiem-nas na procura de peso político para a conservação da natureza, de forma a poder ombrear mais equilibradamente com outros interesses. Apoiem-nas no estabelecimento de diálogos abertos, mas firmes, com os promotores das mais diversas actividades económicas incidentes sobre, no caso, o Parque Natural da Ria Formosa, em que a salvaguarda dos valores e recursos naturais deve ser a base inegociável.

Apoiem-nas numa verdadeira conservação da Natureza.

Será popular? Dará votos? Ainda por cima em ano de eleições?

A ver vamos.

Pelo sim, pelo não, guardemos memórias do espaço que corre o risco de um dia deixar de ser o Parque Natural da Ria Formosa.
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Gonçalo Ribeiro Telles e David Bowie, juntos num grande jardim a florescer em Portimão

21/5/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Manuel Teixeira Gomes, insigne portimonense, foi o sétimo Presidente da desastrosa Primeira República Portuguesa.

Eleito pelo Congresso em 1923, abandonou, voluntária e espontaneamente, o cargo em 1925, por sentir que o projecto republicano se desagregava e ruía, sem que ele dispusesse de adequados poderes para intervenção, no quadro legal constitucional de então. Abandonando a política em desilusão, embarca no paquete grego Zeus e deixa Portugal, para não mais regressar.

Quase 100 anos depois, numa escola baptizada com o seu nome, na sua terra natal, um grupo de jovens percorre um percurso inverso: desiludidos com os falhanços da política face aos seus anseios e expectativas, lançam mãos à obra, e um desafio à sociedade.

E é assim que a turma 10.º L, da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, de Portimão, tenta fazer política. Pela melhor e mais nobre via que há: a cidadã.

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Jardim Gulbenkian, em Lisboa, da autoria de António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles.

​A história é magnífica, e agradeço ao professor Carlos Café a partilha da mesma, que aqui reproduzo, pedindo desde já perdão se o não fizer com exactidão.

No âmbito do projeto de Cidadania e Desenvolvimento, e numa aula em que era necessária uma decisão acerca do projecto a implementar, foi feita referência à então recente morte de Gonçalo Ribeiro Telles, e ao seu trajecto cívico e profissional, que tanto legou a todos nós. Pegando na inspiração desse autêntico herói, e com a música “Heroes”, de David Bowie e Brian Eno em fundo, surgiu o repto: porque não ser este conjunto de estudantes ele próprio heróico, aproveitando o projecto para mudar o mundo?

E assim surgiu uma ideia simples: pedir à Assembleia da República, através de uma petição, a instituição do Dia Nacional dos Jardins.

Certo, nos dias que correm, petições há mais que muitas. Efemérides então, qualquer dia não há dias que cheguem. Mas parece-me que esta é especial.

Porque parte de jovens, que tantas vezes são acusados de estarem alheados da vida pública, da cidadania. Porque esta juventude sabe explicar muito bem o que quer, e porque o quer. Porque este apelo parte de uma região em que o espaço público e os quase inexistentes jardins – bem como os elementos naturalizados das paisagens, com as árvores à cabeça – são deliberadamente maltratados e a sensibilidade dos decisores para a sua importância é nula, ou até menos do que isso. Porque esta é a melhor homenagem que se pode prestar a Gonçalo Ribeiro Telles: dar continuidade ao seu espírito de intervenção cívica, de defesa de valores orientados para a comunidade, para o seu bem-estar e para a sua felicidade. Ao seu espírito combativo por aquilo em que se acredita.

Eu concordo com estes cidadãos. E convido-vos a lerem a sua petição e, obviamente, assinar, se também concordarem:

CRIAÇÃO DO DIA NACIONAL DOS JARDINS (aqui)

Para além desta iniciativa, está previsto o lançamento de um e-book (prefaciado por Viriato Soromenho-Marques) sobre a vida e a obra de Gonçalo Ribeiro Telles, numa criação coletiva da turma, com ilustrações alusivas ao tema dos jardins da autoria de crianças do Jardim de Infância do Fojo e da EB1 Major David Neto, de jovens estudantes da EB 2,3 Professor José Buísel e da Secundária Manuel Teixeira Gomes, e ainda de jovens da estrutura de Educação Especial, numa congregação de todos os níveis de escolaridade e ensino deste Agrupamento.

Isto para além do envolvimento de encarregados de educação, e do apoio de empresas concelhias e das autarquias (Câmara Municipal e Junta de Freguesia de Portimão).

Com isto, estes jovens, e esta comunidade, desde logo criam um jardim. Os jardins são, entre outras coisas, espaços de magia, reclusão, isolamento, paz, serenidade, microcosmos em que as realidades se transfiguram, invariavelmente para melhor. Hoje em dia, nem sempre é fácil acreditar no que quer que seja, e muitas vezes temos dificuldade em encontrar exemplos inspiradores, e sinais de esperança para o futuro.

​Pois bem, independentemente do resultado desta petição, o esforço destes jovens é um jardim de abrigo face a tal aridez, um farol de esperança, que se espera possa inspirar muitos outros.

Por isso mesmo, e independentemente do desfecho da petição, desde já obrigado.

P.S. – agradeço também ao Tiago Águas, através de quem tive conhecimento desta inspiradora iniciativa, que ignorava por completo.
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Finalmente, censura de bem.

14/5/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptada pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas em 1948, é um documento marcante, e zenital, na História da Humanidade.


Destinado a promover relações amigáveis entre todas as nações e consolidar a paz mundial através da noção de igualdade e fraternidade entre todos, e a procura da libertação dos indivíduos da opressão e restrições a que são frequentemente sujeitos, consagra os direitos e liberdades de todos os seres humanos, sem excepção, estabelecendo tais valores como inalienáveis.

Nascida da ressaca do horror da II Guerra Mundial e, concretamente, do regime Nacional-Socialista de Hitler, entre os valores que a Declaração defende encontram-se 3 liberdades fundamentais: de discurso, religiosa e do medo.

Passadas mais de 7 décadas, há muitos locais no mundo onde estes direitos e liberdades continuam por implementar. Mais grave ainda, continua por fazer prevalecer, nas mentes e corações de todos, a visão humanista da fraternidade entre povos e indivíduos, na busca de uma felicidade partilhada. É por isso que, clara e diariamente, assistimos à violação dos mais básicos direitos e liberdades das pessoas, um pouco por todo o mundo, mesmo em países e sociedades ditas evoluídas.

Sob esse pretexto, esta base universal tem sido alvo de múltiplos desenvolvimentos de agendas de nicho, que se centram em visões sectoriais (ou intersectoriais) e sectárias, quer dos direitos, quer das liberdades. Num esquema de raciocínio que, no fundo, funciona como o roubo de automóveis para desconstrução e venda à peça, esses movimentos cuja inspiração radica no pós-modernismo, pretendem fragmentar a sociedade em retalhos cujo conjunto se torna ininteligível. É assim que vemos a defesa de direitos sectoriais (sendo as questões da sexualidade, do género e da raça as mais notórias, mas não as únicas) como se estes existissem desligados de uma lógica global da Humanidade enquanto todo.

Isto constitui uma espécie de cartesianismo tribal alimentado a ácidos, que seguramente fará o próprio Descartes dar voltas na tumba pois, ironicamente, o seu pensamento, basilar para o Iluminismo, é hoje grotescamente deturpado para servir o fim desse tempo de excelência humana.

A pandemia, cuja gestão, muito para lá dos fundamentais aspectos de saúde pública, tem sido deliberadamente alimentada a medo, fragmentando e minando as relações sociais, bem como a proximidade e afectividade em que a coesão de qualquer sociedade assenta, tem servido como o Cavalo de Tróia perfeito para a disseminação dessas agendas.

O resultado dessa fragmentação, e desse medo, é a erosão rápida das referências que orientam a nossa sociedade que, sendo altamente imperfeita, não carece de implosão, mas antes de continuada construção.

Isto abre espaço para mais um passageiro no Cavalo de Tróia.

Em tempos de perturbação, surge recorrentemente uma outra agenda: a securitária. Seja para nos “proteger de nós próprios” no meio de um período conturbado em que podemos não tomar as melhores opções, ou para nos “proteger de ameaças externas”, surgem invariavelmente os discursos autoritários e de promoção de políticas securitárias. A primeira vítima de tais agendas é, invariavelmente, a liberdade.

De resto, os pesos são colocados na balança de forma despudorada: sacrifiquemos alguma liberdade em nome da segurança (no caso sanitária), mesmo que na verdade não se vá além da mera ilusão desta última.

A primeira linha de defesa contra tais ensejos ditatoriais é a coesão social, assente nas relações interpessoais e na proximidade ao outro, que gera o sentimento de fraternidade e entreajuda que une as pessoas, independentemente das suas diferenças e dos riscos que, basicamente, estar vivo acarreta. É esse sentimento definidor que nos dá a garantia de que não é medo nem muros o que deve organizar a nossa sociedade, mas sim a esperança e o trabalho contínuo para a concretizar.

No passado Sábado, o Presidente da República promulgou uma coisa chamada a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, em cumprimento do Plano Europeu de Acção contra a Desinformação – que nós somos muito obedientes. Oscilando entre a mais perfeita inutilidade, pequenos apontamentos de interesse e a simples redundância – face à Declaração Universal dos Direitos Humanos – este documento, que havia já sido aprovado na Assembleia da República em Abril (sem votos contra, o que é profundamente perturbador), abre também caminho para o regresso da censura, para já no meio digital.

O Art.º 6.º da redacção final do documento (ver aqui) que será entretanto publicado em Diário da República estabelece que, resumidamente, o Estado estabelecerá e defenderá o que é a verdade e que todos os conteúdos que atentem contra essa verdade, bem como os seus promotores, serão alvo de acção punitiva.

Desde logo, a redacção é curiosa, pois se o n.º 2 desse Art.º 6.º fosse levado à letra, arrisco dizer que a esmagadora maioria dos membros da Assembleia da República teriam que ser processados, e poucos decisores políticos a nível nacional ficariam impunes:
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Mas já sabemos que, em Portugal, as leis são iguais para todos, mas são mais iguais para uns do que para outros...

De forma magnânima, o Estado deixa, através do n.º 4 do mesmo artigo, que os portugueses continuem a rir, permitindo, por decreto, a comédia, sob forma de “sátiras ou paródias”.

E como vai o Estado fazer isto? Para além dos seus recursos próprios, estabelece o n.º 6 que será apoiada (com dinheiro dos contribuintes, portanto) a “criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”.

E quem pode almejar tal estatuto? Serão apenas os órgãos de comunicação social que aceitem o financiamento, perdão, a compra de publicidade por parte do Estado?

Não. É algo ainda mais tenebroso.

O n.º 3 do Art.º 21.º, estabele que “as pessoas coletivas sem fins lucrativos que se dediquem à promoção e defesa do disposto na presente Carta têm o direito a obter o estatuto de utilidade pública, nos termos da legislação aplicável às entidades de caráter cultural”. Ou seja, estruturas como, por exemplo, associações que se dediquem à fiscalização, delacção e perseguição daqueles que atentem contra o pensamento estabelecido como verdadeiro, serão automaticamente de utilidade pública e, nos termos do Art.º 6.º, revestir-se-ão de ares de regulador.

Uma espécie de guarda pretoriana voluntária e de génese espontânea, e nada idónea, que o Regime institui para controlo do pensamento. PIDEs de bairro, se preferirem.

Ironicamente, o Art.º 21.º da Constituição da República Portuguesa, é o Direito de Resistência. Se calhar não por muito tempo.

É que estamos no limiar de outros tempos.

Tempos como o do Decreto n.º 22:469, de 11 de Abril de 1933 (aqui). Este Decreto, emitido em desenvolvimento da Constituição Política da República Portuguesa, que serviu de base ao Estado Novo liderado por António de Oliveira Salazar, regulamentava a censura prévia às publicações gráficas.
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Esta censura era feita, de forma altruísta e abnegada, apenas para “impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social”, devendo ser exercida como defesa contra “todos os factores que a desorientem [à opinião pública] contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade”. E não era delegável fora da esfera do Estado.

Hoje, como em 1933, é enternecedor ver que há quem se preocupe com o que pensamos, dizemos e publicamos.

Hoje, como em 1933, a liberdade morre mais um pouco, sob um silêncio ensurdecedor.

A desinformação combate-se com educação, com o desenvolvimento de massa crítica, que permite critério na digestão e verificação da informação com que nos cruzamos. Mas isso não parece interessar. Mais do que promover conhecimento ou compreensão, importa apenas decorar:

“Manda quem pode, obedece quem deve”
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E se corre bem?

12/5/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Ninguém vive sem conceder ao irracional, ao inexplicável. Pode não ser sempre. Pode mesmo ser quase nunca. Mas, quer lhe chamemos fé, paixão ou mero escapismo, está lá, bem fundo, e emerge, mesmo que em, e por, momentos fugazes.

Este é um desses raros momentos de concessão.

Por isso, apelando à indulgência, falo hoje de futebol, utilizando-o mais como pretexto do que fim em si mesmo. Porque do ilógico também se extrai raciocínio.


Começo pela obrigatória declaração de interesses: sou inabalável sportinguista, e este título, por razões objectivas e de contexto, deixa-me muito feliz, apenas por "nós", enquanto comunidade abstracta, tribo ligada nestes estranhos, intangíveis e frágeis laços de afinidade que unem perfeitos estranhos – o Desmond Morris decifra. Ninguém perdeu, fomos apenas “nós” que ganhámos – o que imediatamente introduz a dívida de glória aos vencedores, mas sem que se possa negligenciar a merecida honra aos vencidos.

Existe algo de mágico no futebol. E existe e subsiste, mesmo no futebol que o negócio desalmadamente roubou ao desporto e que, eventualmente, irá matar. Para já, no meio de tanta artificialidade e materialismo, há ainda espaço para a magia das grandes histórias. Histórias de superação, histórias de inconformismo, histórias de não aceitar o peso da História, histórias de vencer as probabilidades. Histórias, no fundo, de acreditar. Que são aquelas que nos encantam.

Histórias que se contam com coisas simples. A minha conta-se com este cartão, datado de 1980.
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A Utopia de Ribeiro Telles, com os nossos pés na terra

23/4/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Partilho hoje, neste espaço, a sessão ontem realizada em torno da dimensão política de Gonçalo Ribeiro Telles, no contexto das comemorações do Mês Internacional da Arquitectura Paisagista.

O encontro, marcado pela dimensão e riqueza dos contributos que, generosa e carinhosamente, quatro enormes personalidades prestaram, foi, para mim, privilegiado por poder partilhar um espaço - ainda que etéreo - com tais vultos, motivo de grande felicidade.

Pela honra que se presta à memória de um grande e bom homem, principalmente, mas não só.

Momentos como este, reforçam a ideia de que a grande, justa e verdadeira homenagem a Ribeiro Telles continua por prestar. E consiste em continuar o seu trabalho, lutando pelas causas que, reconhecidamente meritórias, sempre defendeu.

Neste capítulo, a Arquitectura Paisagista, profissão que tanto amou, e à qual tanto deu, tornando-se mesmo, e agarrando em palavras suas, “a Arquitectura Paisagista com figura humana”, tem particulares responsabilidades.

O desaparecimento físico de Ribeiro Telles, no final do ano passado, marca uma condição de "orfandade espiritual" da classe, desaparecida que está a sua referência maior. Mas as suas ideias continuam em nós (e grandes figuras, felizmente, não nos faltam), nos instrumentos de gestão que delineou, no legado que deixou, na influência que teve sobre tantas pessoas, dentro e fora da Arquitectura Paisagista, no exemplo de coragem e integridade. 

Temos então dois caminhos: enrolar em posição fetal, chorando este desamparo, ou lançar mãos à obra, honrando a sua visão e o seu pensamento.

Assim, o desafio que se coloca, não apenas à Arquitectura Paisagista, mas a toda a cidadania inspirada por Ribeiro Telles, é honrá-lo verdadeiramente, sendo não o que sobra dele, mas sim a sua continuidade.

Como seus herdeiros e testamentários, verdadeiros jardineiros de futuros e de felicidade. 

A Utopia de Gonçalo Ribeiro Telles não cessa, mas os pés na terra devem agora ser, obrigatoriamente, os nossos.
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“Vendam o Estádio, façam um Hospital”

14/4/2021

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Por Andreia Fidalgo
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A reivindicação não é minha, embora me pareça justa. Está pichada em pleno Parque das Cidades, onde se ergue o fantasmagórico Estádio do Algarve, outrora construído para receber o Euro 2004.

Desse evento propriamente dito, o Estádio apenas recebeu três jogos: dois da primeira fase e um dos quartos-de-final. Depois disso, o espaço recebeu alguns outros eventos públicos que, com o passar dos anos – e nunca tendo sido abundantes! –  se têm tornado cada vez mais escassos.

A sua construção não foi isenta de controvérsias. Logo à época, muito se discutiu sobre a validade de um investimento de muitos milhões de euros para um evento necessariamente efémero, não apenas para a construção deste estádio, mas também de outros que pelo país fora se fizeram. O tempo viria a dar razão às vozes críticas, com os estádios a entrarem em processo de abandono e colapso. A discussão da utilidade destes equipamentos e as vozes que se erguem contra a ideia de que são um “sumidouro” de dinheiros públicos, ainda continuam, pois, actuais.

Em 2010, noticiavam-se as dificuldades da Câmara Municipal de Loulé e da Câmara Municipal de Faro para garantir o pagamento das despesas de manutenção do Estádio do Algarve, que rondavam os 10.000€ diários. Apesar de tudo, ao longo de todos estes anos, o facto é que os dois municípios algarvios se esforçaram, com sucesso e meritoriamente, para manter essa infra-estrutura operacional.

No entanto, eu não venho aqui hoje para falar do estádio propriamente dito, embora me pareça que, de facto, esteja largamente subaproveitado e necessite de revitalização (ou, em alternativa, de uma empreitada para o mandar abaixo de vez!). O que me traz aqui hoje é toda a envolvente dessa infra-estrutura, designada por Parque das Cidades.

Além das lógicas e necessárias zonas de parqueamento automóvel, o Parque das Cidades foi criado com o objectivo de constituir uma zona de lazer, na qual existe, inclusivamente um parque infantil, mas que é sobretudo vocacionada para a actividade física. O espaço verde é dotado de equipamentos de manutenção, de um campo de treino de basquetebol, de um campo de treino de futebol, além da passadeira vermelha bem longa que apela aos que praticam ciclismo e corrida.

À partida, todos estes elementos parecem altamente positivos e benéficos para os habitantes dos dois municípios que podem usufruir de todas essas vantagens… Sendo assim, qual é o problema?

Enquanto utilizadora regular do Parque das Cidades, onde vou fazer as minhas corridas, não posso deixar de me insurgir contra o elevado estado de degradação e abandono a que foi votada toda essa zona de lazer. Toda a zona verde e os equipamentos de manutenção estão degradados. Os parques de estacionamento, sobretudo os mais escondidos, indiciam serem palco frequente para actividades sexuais e, quiçá, para outras actividades menos lícitas. A sensação de insegurança, quer para um utilizador solitário – como é o meu caso – quer para um passeio em família, é tremenda, e confesso que a determinadas horas tenho mesmo medo de lá ir. Por isso mesmo, não posso deixar de me perguntar acerca da verdadeira utilidade daquele espaço, na medida em que, gerido com dinheiro público, deveria servir verdadeiramente para o usufruto dos cidadãos.

Ao longo dos anos, muito se tem falado sobre a necessidade de dinamizar o Parque das Cidades. O seu Plano de Pormenor prevê a construção de unidades hoteleiras, o que em muito beneficiaria o intuito de se fazer desse espaço um centro de estágios para equipas de futebol. Precisamente nesse mesmo sentido, em 2017 arrancava o projecto de construção de um centro de treinos… A obra, iniciada e alardeada pelos municípios de Faro e Loulé em ano de eleições autárquicas, parou pouco tempo depois e encontra-se agora totalmente ao abandono. Portanto, mais um excelente contributo para o estado de degradação generalizado.

O Plano de Pormenor do Parque das Cidades também previa albergar outras infra-estruturas de elevada importância, como o Hospital Central do Algarve. O tal Hospital Central prometido desde 2002. A cronologia desta saga, publicada no site da Administração Regional de Saúde do Algarve, é, no mínimo, insólita. Vejam-se as suas primeiras entradas:​
2002 – Por Despacho do Ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, são constituídos os Grupos de Coordenação Interdepartamental para o lançamento das parcerias público-privadas, que inclui o Grupo Interdepartamental para o lançamento de uma nova unidade hospitalar no Algarve a desenvolver no Parque das Cidades Faro/Loulé (Despacho 19946/ 2002 de 10 de Setembro de 2002);

2003 – O Ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, aprova a escolha do terreno para a construção do novo Hospital do Algarve no Parque das Cidades Faro/Loulé (11 de Março de 2003);
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 2003 – É celebrado um Acordo Estratégico de Colaboração para o lançamento do novo Hospital do Algarve a localizar no Parque das Cidades Faro/Loulé sob a forma de Parceria Público-Privada, entre o Ministério da Saúde representado pela Administração Regional de Saúde do Algarve e as Câmaras Municipais de Faro e Loulé (12 de Março de 2003)

Volvidos quase 20 anos, continuamos sem ver indícios do tal Hospital Central, nem no Parque das Cidades, nem em qualquer outro local. Mas uma coisa temos como certa: o Parque das Cidades continua a ser um sumidouro de dinheiro público. E isto, per se, é algo que nos devia preocupar a todos, cidadãos, e em particular aos munícipes de Faro e de Loulé.

Seria bom, e já que estamos novamente em ano de eleições autárquicas, apelar a que ambos os municípios e respectivos candidatos esclareçam os cidadãos sobre os projectos futuros para este espaço… E que não sejam meramente promessas vãs de projectos que nunca se concretizam. Porque seria excelente se, de facto, todos nós pudéssemos usufruir do Parque sem medos, tirando o máximo partido de todos os benefícios que tem para oferecer.
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Pode o Mediterrâneo salvar o Algarve?

9/4/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

No próximo Domingo, dia 11 de Abril de 2021, um conjunto de cidadãos, preocupados com as tendências de evolução da paisagem algarvia e, concretamente, com o seu distanciamento relativamente a uma matriz que era, na sua essência, mediterrânica, "reunirá" (virtualmente, em distanciamento físico, mas nunca social) para sobre esse tema conversar.
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Em jeito de contributo, partilho a conclusão da minha participação no II Congresso Internacional "Arquitectura Tradicional no Mediterrâneo Ocidental", realizado há pouco menos de um ano, em Mértola.

Nessa ocasião, perguntava precisamente se pode o Mediterrâneo salvar o Mundo.

E mantenho a pergunta, acrescentando se, de caminho, não salva também o Algarve.


O património mediterrânico está hoje em rápida erosão. “O desaparecimento das casas regionais (...) é também mais um aspecto desse movimento geral de nivelamento que caracteriza a nossa época, corolário fatal da industrialização, que marca o apagar de valores afectivos essenciais e da fascinante diversidade do mundo – o fim dum humanismo que foi uma filosofia da vida” (Oliveira & Galhano, 2003, p. 374), ao mesmo tempo que “está em curso, desde há algum tempo a esta parte, uma destruição sistemática dos sistemas tradicionais (...) fenómeno (...) promotor de uma profunda descaracterização da paisagem tradicional (...), concretamente da sua identificação com o cunho mediterrânico” (Duarte Gomes, 2017).

A vida moderna, obcecada com eficiência e velocidade (as distâncias medem-se em tempo, não em quilómetros) condena à morte as aldeias “alcandoradas e tranquilas, que se alcançam por caminhos em torcicolos, quando não em escadarias” (Ribeiro, 2011, p. 139), pois o primado do automóvel não se compadece de caminhos de gente, burros e bois.

A crítica encerrada na reflexão de Paul Virilio, que através da sua “ecologia cinzenta” ataca a poluição da Natureza-Grandeza que degrada as distâncias e as durações do tempo, assentaria perfeitamente numa defesa da mediterraneidade: “o mundo encolheu-se, encolheu-se terrivelmente, já não viajamos, deslocamo-nos” (Virilio, 2000, p. 92). Porque o Mediterrâneo conflitua, desfasando-se, com o mundo contemporâneo: “educado no respeito de muito antigos valores de civilização, o Mediterrâneo não sacrifica incondicionalmente ao tempo, ao dinheiro, à eficiência – os três grandes ídolos do mundo moderno – a razão da sua vida” (Ribeiro, 2011, p. 30).

Analisada em profundidade, esta essência mediterrânica, lenta e ineficiente, mas telúrica e humanista, fornece respostas e mecanismos eficazes para desafios contemporâneos, que questionam os modelos de crescimento infinito num mundo de recursos finitos. As suas características vão mesmo ao encontro dos princípios do decrescimento (Latouche, 2020), de entre os quais se destacam os valores da partilha e cooperação, a adaptação dos aparelhos produtivos às condicionantes do meio e o reduzido desperdício.

Para que a arquitectura de paisagem e a arquitectura de edificado possam contribuir para o sanar deste conflito, devem obrigatoriamente respeitar o ethos mediterrânico, (re)interpretando-o e (re)desenhando-o no tempo actual.

Recuperando, nos modelos de paisagem e de casa, os princípios do nível mínimo de energia e o respeito pelos recursos e seus limites, explorados com parcimónia, que o habitar mediterrânico adopta. Recuperando o respeito pela escassez e valor da terra, algo que contrasta com a contemporânea displicência na gestão do espaço e do solo, sem os compreender como reserva estratégica de fertilidade e capacidade produtiva, não aumentável por mera vontade.

Recuperando e reacendendo talvez o farol de humanidade que a cultura mediterrânica representou durante tanto tempo para a Europa – que fundou e educou – e para o Mundo, e a cujo eclipse não será certamente alheia a periclitância da União Europeia.

Recuperando o fundamento do próprio sucesso da mediterraneidade.
Bibliografia
Duarte Gomes, G. (2017) ‘O Algarve arrancado pela raiz’, Sul Informação, 2 Agosto. Disponível em: https://www.sulinformacao.pt/2017/08/o-algarve-arrancado-pela-raiz/ (acedido: 22 Maio 2020).
Latouche, S. (2020). Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno. Lisboa: Edições 70.
Ribeiro, O. (2011). Mediterrâneo. Ambiente e Tradição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Veiga de Oliveira, E., & Galhano, F. (2003). Arquitectura Tradicional Portuguesa. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
Virilio, P. (2000). A velocidade de libertação. Lisboa: Relógio D’Água Editores.
 

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Não, a água não é um bem económico...

26/3/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Em visita ao Algarve, para promoção de um roteiro da água, e segundo citação nos meios de comunicação social (aqui), o Ministro do Ambiente e da Acção Climática declarou que ”a água é, de facto, um bem económico, quando chega às nossas torneiras”.

Será?

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O dia em que sonhámos limpar Portugal!

20/3/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Há 11 anos, Portugal dizia a si mesmo que se ia limpar!

Não, não se propunha erradicar a corrupção, esse lastro que nos submerge e impede de rumar a uma condição de maior desenvolvimento e justiça social, mas apontava a um objectivo igualmente lírico: num só dia, a população iria lançar mão à obra para limpar o lixo que, um pouco por todo o lado, feria as nossas paisagens!
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Do ódio às árvores

19/3/2021

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Esquema representativo do que é uma árvore - "A árvore em Portugal" (1999). Caldeira Cabral, F. e Ribeiro Telles, G.. Assírio & Alvim.

Por Gonçalo Duarte Gomes

No Algarve, num momento em que a pandemia da Covid-19 parece dar sinais de aliviar um pouco, corre, à rédea solta, uma outra, que vem de trás: a do ódio às árvores.

Os casos de mutilações e abates indiscriminados, arbitrários e, acima de tudo, injustificados, de árvores sucedem-se, um pouco por toda a parte, eventualmente numa grotesca inspiração originada pela reabertura de cabeleireiros e barbeiros. Em meio urbano as p(h)odas camarárias (muitas vezes ao nível do colo) são já uma instituição - de horror - que marca indelevelmente o subdesenvolvimento e atraso da visão e da gestão do espaço público. Esta febre dendrofóbica tem vindo entretanto a alastrar ao meio rural, numa voracidade de biomassa difícil de explicar, porque em nada relacionada com a necessária limpeza e/ou abate de árvores associado às tradicionais actividades neste contexto.

Cortar ou deformar uma árvore devia ser uma decisão difícil, por respeito a tudo o que representa, do ponto de vista biofísico, emocional e cultural. Devia requerer uma justificação e uma ausência de alternativa. Devia obrigar a contextualização e explicação (principalmente para defesa de quem tem que tomar tais decisões), para lá de compensação.

Pelo contrário, ocorre invariavelmente sob silêncios ensurdecedores.

Que nós, nós os muitos, deixamos ecoar. Sem questionar, sem reclamar. E muito menos penalizar.

A questão é apenas até quando, e o que é que vai restar, se e quando decidirmos fazer algo quanto a isso.

Até lá, não esquecer de comemorar o Dia da Árvore, que é já no Domingo.

Todos os que possuem conhecimentos científicos compreendem que um trecho musical e uma árvore têm algo em comum: ambos são criados por leis igualmente lógicas e simples.

Tchekhov
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"Nestes ermos, ouvindo a voz das fontes"

12/3/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Para a breve nota de hoje, pedi emprestado, como título, o primeiro verso do poema "Sombra", do sambrasense Bernardo de Passos (1876 - 1930).

Marcadamente influenciado por um lirismo de forte base telúrica, Bernardo de Passos parece-me, neste seu poema, ajudar a traduzir os valores etéreos que, na paisagem, acabam por também ser importantes.

Por exemplo, "a voz das fontes" pode reportar-se não apenas às fontes propriamente ditas, mas também, em sentido lato, à água que, correndo nas ribeiras, é, efectivamente, a voz que depois ecoará em nascentes, chafarizes ou bicas.

Muito se fala de água, mas quase sempre na óptica do consumo humano. Vital como é nesse sentido, importa - e nisto sou muito repetitivo - nunca esquecer uma ética paisagística que obrigatoriamente devemos considerar ao pensar neste recurso: a do valor ecológico da água. Que se cumpre deixando a água fluir livremente na rede hidrográfica, irrigando, destruindo, desobstruindo, arrastando, erodindo, fertilizando, transportando, descobrindo, cobrindo.

Um agente modelador da paisagem de primeira ordem, através do qual o fundo de vitalidade se alimenta, com recurso a uma panóplia de funções que, em anos de generosidade hídrica como o presente, saltam à vista.

Para os ver, basta abrir os olhos.
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SOMBRA

Nestes ermos, ouvindo a voz das fontes,
de humildes alegrias fui pastor;
meus rebanhos guardava com amor,
contemplando os longínquos horizontes...

Árvores maternais, que ergueis as frontes
verde-tristes, num gesto criador,
junto a vós semeei sonhos em flor,
que vestiram de rosas estes montes...

Mas tudo - riso e sonho - me levaram...
Perdi meu gado, meus jardins secaram,
já neles não há rosas nem alfombras!

Doura a tarde estes ermos de abandono...
E eu passo - folha morta dum Outono,
sombra vaga a errar por entre sombras!

Bernardo de Passos

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O Reino do Algarve: uma geografia da indiferença

10/3/2021

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Por Andreia Fidalgo

Nos últimos tempos, não têm faltado notícias sobre os efeitos nefastos da pandemia e do confinamento obrigatório no Algarve. Por ser uma região altamente dependente do sector turístico, é também a região portuguesa mais afectada economicamente, com o desemprego a atingir valores muitíssimo elevados e preocupantes.

De acordo com os dados do Instituto do Emprego e Formação Profissional, no final de Janeiro estavam inscritos, no Algarve, 33.571 trabalhadores. Nada mais, nada menos, do que mais 61,3% do que no mesmo mês do ano passado, quando a pandemia ainda não nos tinha assolado.

No ano de 2020, a taxa de desemprego no Algarve foi a mais elevada de todo o país, na ordem dos 8,3%, quando a média nacional se fixou nos 6,8%. A somar a este cenário desolador, o risco de micro e pequenas empresas falirem é muitíssimo elevado… Muitos negócios não se conseguirão certamente reerguer depois de tantos duros golpes.

Seria de esperar que, perante uma situação tão complicada em que as fragilidades regionais ficaram a descoberto, o Governo tivesse uma especial atenção para com o Algarve. Nesse sentido, a 21 de Julho do ano passado, António Costa anunciava um “programa específico para a região do Algarve” de 300 milhões de euros destinado ao apoio da economia regional. Mas, como as palavras, leva-as o vento, mais de seis meses transcorridos e parece que do dito apoio, nem há sinais. No entretanto, a população algarvia que se amanhe…

A famosa “bazuca” de que tanto se fala, isto é, o Plano de Recuperação e Resiliência, parece que pouco contemplará as necessidades específicas do Algarve, nem apresenta para a região qualquer visão estratégica, nem grandes indícios de qualquer tentativa de coesão territorial. Ao Algarve caberá directamente a magra fatia de 1,7% dos milhões que estão destinados ao país. Parco, muito parco perante uma situação calamitosa e que tenderá a agravar-se nos tempos vindouros.

Serve este preâmbulo para iniciar aqui uma breve reflexão sobre os contornos históricos da evidente negligência e indiferença do “centro” perante as necessidades das regiões “periféricas” – nas quais o Algarve se inclui, mas não é exemplo único. O binómio centro-periferia aplica-se tão bem aos dias de hoje como se aplicou durante séculos à história algarvia: um centro que absorve e esgota recursos, promovendo os seus próprios interesses –  raras vezes coincidentes com os interesses do todo –, e uma periferia que é sucessivamente negligenciada e escamoteada.

Em suma, o Algarve encerra em si o exemplo perfeito, pelos piores motivos possíveis, da máxima queirosiana “Lisboa é Portugal. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!”. Ou seja, na sua versão popularizada, “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”.

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Mapa do Reino do Algarve, c. 1760. Disponível em https://purl.pt/1384

Já é sobejamente sabido que o Algarve foi a única região do país que teve a designação simbólica de “Reino”, como se de um Reino à parte de tratasse, mas sem nunca o ter sido efectivamente. A designação simbólica de “Reino do Algarve” perdurou desde a conquista cristã do território algarvio, nos meados do século XIII, até à implementação da 1ª República, em 1910.

Mas o simbolismo teve repercussões mais efectivas. Passado o fulgor das expedições marítimas, no século XV e primeira metade do XVI, em que o Algarve saiu temporariamente da situação de periferia para se tornar centro e palco das navegações, rapidamente foi relegado, nos séculos seguintes, para uma posição periférica e secundária, totalmente esquecido pelos poderes do centro.

Em períodos anteriores da nossa História, em que as vias de comunicação eram altamente deficitárias, o Algarve apresentava-se como uma região distante, de difícil acesso e contacto, muito devido às suas condições geográficas, em que a delimitação administrativa coincide com a delimitação biofísica de extensas serranias a norte, o rio Guadiana a este e o Atlântico a sul e a oeste.

Assim, durante grande parte da Época Moderna, o Algarve não foi, de facto, um Reino à parte, mas fosse devido ao isolamento, ou fosse devido ao esquecimento, acabou por desenvolver idiossincrasias muito próprias que em muito o aproximavam dessa condição individualizada: a sociedade algarvia tinha condutas diferenciadas, pagavam-se aí impostos como se a região fosse um reino estrangeiro, e até a correspondência que para aí seguia pagava os portes de envio iguais à que ia para Castela.

A situação diferenciada era de tal forma evidente que, durante o pombalismo e numa estratégia absolutista de reforço do poder do centro, o Algarve iria despertar o interesse da Coroa. Seria então criado, nas décadas de 60 e 70 de Setecentos, um plano de reforma económica e administrativa da região, no qual se intentaria acabar com a diferenciação regional, integrando o Reino do Algarve no restante Reino de Portugal. Foi nesse âmbito que se procurou abolir, por decreto, a “odiosa diferença” entre o Reino do Algarve e o Reino de Portugal plasmada numa discriminação aduaneira que era largamente prejudicial à região.

Porém, a diferença não cessou com um plano que se gorou. Nem tampouco a indiferença. Findo o ímpeto reformista pombalino, a região algarvia retomou a sua posição periférica, permanecendo negligenciada e esquecida pelo centro. Quer-me parecer, aliás, que nunca saiu dessa condição até aos dias que correm.
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E perante a sucessiva negligência das necessidades regionais, ano após ano, década após década, muitas vezes dou por mim a pensar se parte dessa atitude de desprezo do centro perante a periferia algarvia não estará, efectivamente, imbuída de raízes muito mais antigas, com séculos e séculos de existência. Será caso para perguntar: até quando? 
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Tem um minuto para escutar a Palavra de São Abacate?

26/2/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

A Algfuturo, um lobby empresarial – sem qualquer sentido pejorativo – regional, que se reveste de forma associativa, veio recentemente publicar uma “carta aberta em defesa da honra e bom nome do Algarve e seus agricultores”, que endereça “aos responsáveis oficiais regionais e nacionais e outros detratores das culturas de regadio no Algarve, em particular a do abacate, que falsamente afirmam ser de carácter intensivo” (aqui).

Trata-se portanto de uma defesa da honra da cultura do abacate, que tão badalada tem sido na região, fundamentalmente devido à questão do consumo dos recursos hídricos.

E o abacate anda ofendido.

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Planos há muitos, seu palerma!

19/2/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

​Foi lançado à consulta pública o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR - aqui), o documento para a recuperação pós-Covid, que define os alvos para as “bazucadas” dos 14.000.000.000 € de dinheiro fresco que aí vem, direitinho da União Europeia!  

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A refeição de Gargântua (Gustave Doré)

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Quem tem medo de livros?

12/2/2021

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Por Gonçalo Duarte Gomes

Sendo esta pandemia, que tão dramaticamente afecta a vida de todos nós, uma anomalia pegada, não deixam de se conseguir destacar, dentro dela, estranhas anormalidades.

Foram ontem anunciados pelo Presidente da República e pelo Primeiro-Ministro os termos gerais do novo Estado de Emergência que vigorará entre 15 de Fevereiro e 1 de Março. Em mais uma arroba de dias de normalidade feita de excepcionalidade, parece que não há grande novidade.

Ou até há.
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Adaptação cinematográfica de Fahrenheit 451 (1966, François Truffaut)

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O Elogio da Loucura que há em nós

10/2/2021

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Por Andreia Fidalgo
Fala a Loucura: O que quer que os vulgares mortais digam de mim – e não sou tão tola que não saiba quanto de mal se ouve dizer da Loucura, mesmo entre os mais loucos – no entanto sou eu, só eu, a única que com o meu espírito alegro os deuses e os homens. A prova é evidente, pois mal apareci diante deste numerosíssimo auditório, logo os olhos de todos brilharam com uma súbita e insólita alegria, tão de imediato aliviastes o sobrolho carregado, e o vosso amável riso me aplaudiu alegremente que, na certa, me parece que todos os que vejo ao meu redor estais, como os deuses de Homero, ébrios pelo néctar, misturado com um pouco de nepente, enquanto instantes antes estáveis sentados, ansiosos e tristes, como se tivésseis escapado do antro de Trofónio.

​Erasmo de Roterdão, O Elogio da Loucura

Quem nunca ouviu falar de Erasmo de Roterdão ou d’O Elogio da Loucura? A obra foi escrita pelo humanista em 1509, publicada pouco tempo depois, e tornou-se numa das obras mais famosas do Renascimento europeu, ainda lida nos dias de hoje.

Erasmo de Roterdão foi um dos mais destacados intelectuais do seu tempo. O seu percurso deve ser entendido no âmbito de um movimento cultural que dominou o Renascimento e que ficou conhecido por Humanismo. Depois de uma época medieval marcada pelo teocentrismo, o Humanismo, muito inspirado pelos ideais da Antiguidade Clássica, devolveu o protagonismo ao homem, colocando-o no centro do mundo, numa postura marcadamente antropocêntrica.

Numa perspectiva abrangente, o Humanismo corresponde à valorização do papel do homem neste mundo, à valorização das suas capacidades enquanto ser racional, e à valorização da sua acção transformadora.

Nada disto significou, porém, que o Cristianismo tivesse perdido primazia. Erasmo de Roterdão dialogava particularmente com o Humanismo Cristão – a que, por sua causa, também podemos chamar de Erasmismo, uma vez que foi ele o seu principal percursor.

O Humanismo Cristão, na visão erasmiana, pautava-se pela ideia de que a prática religiosa formalista da Idade Média deveria ser transformada numa prática religiosa interior e pessoal. Isso só seria possível de atingir, em pleno, pelo homem que fosse formado pela literatura clássica e transformado pelo Evangelho. As línguas e as literaturas clássicas seriam, pois, essenciais na formação do homem, mas era na Bíblia se encontrava a moralidade e o sentido da vida.

Este pensamento erasmiano encerrava em si a ideia de que era possível a renovação e reforma da sociedade daquela época através da síntese entre a cultura clássica e o pensamento cristão. Erasmo era, assim, crítico do seu próprio tempo. Porém, enquanto pacifista que era, nunca defendeu uma cisão da Cristandade, como a que viria a acontecer com a Reforma de Lutero.
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Ilustração de Hans Holbein, o Jovem, para O Elogio da Loucura, 1515.

O Elogio da Loucura insere-se precisamente nesta lógica reformista e crítica de Erasmo. Através da ironia, do sarcasmo e da sátira, o humanista cria uma personagem mitológica, a Loucura, filha de Pluto, deus da riqueza e de Neotetes, ninfa da Juventude, que se faz acompanhar pelo Amor-próprio, pela Adulação, pelo Esquecimento, pela Preguiça, pela Volúpia, pela Irreflexão, pela Moleza, pelo Festejo e pelo Sono Profundo.

Erasmo utiliza a Loucura para explicar o comportamento de todos os que são criticados ao longo da sua obra, e a sua crítica passava por toda a sociedade, sendo que nem o Papa, nem os Príncipes escaparam incólumes. A Loucura, que fala na primeira pessoa, afirma que “nenhum homem pode viver de modo feliz se não for iniciado nos meus ritos e se não me tiver por propícia”.
“A Fortuna ama os homens insensatos, os mais audazes, e agrada-lhe os que dizem: «A sorte está lançada!”. A Sabedoria, por outro lado, torna-os tímidos e é por isso que vedes os sábios no meio da pobreza, da fome e do fumo; vivem esquecidos, sem glória, sem simpatia. Os loucos, pelo contrário, nadam em dinheiro, tomam o governo do Estado, numa palavra, prosperam sob todos os aspectos”.

​Erasmo de Roterdão, O Elogio da Loucura

​Diria que a leitura de O Elogio da Loucura surpreende ainda nos dias de hoje pela sua actualidade. É certo que a sociedade é, actualmente, muito diferente daquela que Erasmo criticava, assim como os problemas que nos assolam são muito distintos. No entanto, a natureza humana parece não ter sofrido grandes alterações. Não raras vezes dou por mim a pensar que tanto do comportamento errático, alucinado e completamente amoral que por aí se vê, inclusivamente nas mais altas esferas, só se pode dever à presença de uma boa dose de loucura.

Não será esta uma boa forma de o explicar? Na Loucura se contém a ganância, a sede de poder, de riqueza e de fama, o “salve-se quem puder”, a falta de amor ao próximo, a falta de humanidade. A Loucura exclui a sabedoria, exclui o bom-senso, exclui o racionalismo. A Loucura exclui o Humanismo e os seus valores intrínsecos de defesa da dignidade humana. A Loucura corrompe e destrói. Alastra-se, essa, sim, numa verdadeira pandemia difícil de exterminar.

Mas, ainda há que a contrarie, quem lute contra essa corrente, quem coloque os valores humanistas à frente de tudo…

Termino, recordando as palavras de António Rosa Mendes, grande Mestre que me iniciou no pensamento de Erasmo de Roterdão:

“Para Erasmo, só a moral poderia salvar o mundo da autodestruição. As suas lições não perdem a sua premente actualidade e todos os que hoje reclamam a subordinação da política à moral são seus discípulos”.
​


NOTA: A edição citada neste texto foi: Erasmo de Roterdão, O Elogio da Loucura, edição bilíngue, trad. do latim e notas por Alexandra de Brito Mariano. Lisboa: Nova Veja, 2012.
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